segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013


COM O LIVRO SE FAZ GENTE

Com as invasões bárbaras a tradição da leitura e da escrita no Império Romano foi grandemente afetada, prática inexistente para os merovíngios francos, falantes do germânico, que tinha as runas como alfabeto. A transmissão oral. Diante da iminente dissolução da Igreja romana, o renascimento carolíngio trata de dar boa formação aos padres, a educação através do latim, o que foi decisivo para a civilização ocidental. Era em latim que as pessoas eruditas liam no medieval, em especial a Bíblia. A leitura como um ato sagrado em si. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós” (João 1:14).
O cristão lia a Bíblia em latim, leitura restrita, até a reforma protestante, quando o texto sagrado foi vertido para o alemão e passou a ser impresso na língua de cada nação, e difundido em grande escala. O Cristianismo torna-se a religião do livro, herança direta da veneração judaica à palavra escrita, uma vez que os protestantes consideravam-se herdeiros dos hebreus. Para os judeus talmúdicos, que viam no texto sagrado uma fonte infinita de inspiração e aprendizado, a leitura era uma ato devocional, uma revelação em si. Desde sempre a vida dos judeus focada na leitura e na escrita. No medieval ensinavam aos meninos num ritual: “Que o Torá seja sua ocupação”. Povo inteligente porque devotados à leitura.
Na efervescência cultural do século XI patrocinada pelo Islã, o grande cientista conhecido como Al Hazen elabora sua teoria sobre ótica, onde faz a distinção entre “sensação” e “percepção”. Ao contrário da sensação, a percepção demanda um ato voluntário de reconhecimento, como ler um texto. Pela primeira vez era dada uma explicação formal para o processo da atividade consciente que distingue “ver” e “ler”. “Palavras, palavras, palavras” responde Hamlet ao seu mordomo quando esse lhe indaga sobre “o que lê o senhor?” Mais sensação que percepção do jovem príncipe, a quem falta maturidade para depurar a leitura que faz evoluir a alma, enriquecer a mente. Não é o que acontece atualmente com muita gente lendo um livro, uma revista, ou diante do computador, sufocados de informações que mal podem digerir? Amplo o acesso aos livros, que abarrotam as livrarias e bibliotecas, a maioria best sellers.
As almas cada vez mais sedentas nesse mundo maravilhoso em que vivemos atolados de tecnologia e informação, onde num simples toque estamos conectados, recebendo e mandando mensagens através das redes de relacionamentos na internet. Outra leva de vândalos querendo invadir nossas vidas, nossas almas, desalojar-nos de nós mesmos? Empreendemos uma viagem coletiva na internet, aventura cada vez mais sedutora. Nas páginas dos livros nossa mente faz outro tipo de viagem como navegador solitário. Com o verbo se faz gente. Mas, na tela virtual, Narciso muitas vezes está ali para ver sua imagem refletida no lago. 

domingo, 24 de fevereiro de 2013


Neste domingo do Oscar 2013 minha homenagem ao cinema: CHOCOLATE de Lasse Hallstom

Sexta-feira, e lá estão Antero e Aurora, acompanhados da prima Mara, comodamente sentados nas confortáveis cadeiras da sala 12 do recém-inaugurado complexo Cinemark do Pier21. Iam ser transportados a uma outra dimensão numa das mais moderna salas de cinema do país. A projeção excelente, logo constataram. O filme, Chocolate, baseado no livro homônimo de E. Annie Proulx, ganhadora do prêmio Pulitzer. Como protagonista Juliette Binoche, no papel da instigante personagem Viane. Iam conferir.
Na tela mãe e filha chegam à cidadezinha francesa de Lansquenete em dia de forte ventania, com a pretensão de se estabelecerem na localidade com seu comércio de chocolate, produto desconhecido para uma gente que logo implica com a novidade. Difícil uma forasteira ser bem aceita ali, o que logo se verá. Vamos, então, assistir a luta da própria imaginação contra os poderes estabelecidos, as mentes apegadas ao cotidiano medíocre. Mas, determinação é o que não falta às recém-chegadas. Além do mais elas estão vestidas respectivamente como bruxa e chapeuzinho vermelho, alusão às personagens da medieval história infantil, que remota a antigas lendas.
Percebe-se naquela pequena cidade – à primeira vista tão pacata -  que as coisas não andam nada bem, com o que ninguém parece se dar conta. Para Viane e os espectadores a pista está na estátua erguida no centro da praça principal, em frente à Igreja, homenagem a um herói do passado. A imponente figura empunha um livro, arma contra a ignorância, que se revela cruel por aquelas bandas. Que racionalidade era aquela? A resposta vem no desenrolar da trama. Acontecem descaminhos tanto do conhecimento quanto da fé, pelo fervor dos poderosos, que infernizam Deus e todo mundo. Na cena seguinte o templo aparece vazio, pois difícil a convergência das ideias. Em flash-back vemos os huguenotes sendo expulsos da cidade, numa revolta que deixara um ranço da intransigência religiosa, de ambas as partes.
Lansquenete jaz parada no tempo. E à medida que a câmara de Lasse Hallstrom trabalha, vai mostrando os contrastes nos costumes de uma comunidade provinciana, apertada entre montanhas, no seio da qual se impõe o cruel Caim com face de Abel. As belas e antigas imagens dos santos na Igreja davam testemunho de uma fé de abnegados, e que ficara para trás, pois desde algum tempo o que ali reinava era a desconfiança, principalmente contra estranhos, de certa forma justificável, pois irracional e perigoso se tornara o mundo, principalmente dentro daquele meio fechado, supersticioso, mesmo assim, se dizendo racional. A visitante não pretende desistir de abrir sua chocolataria, e aceita o desafio, pois já enfrentara obstáculos maiores, o que vai ser mostrado daí para frente.
O trabalho de Viane Rochê é produtivo, lhe dá prazer e com ele ganha o necessário para sua subsistência. Espírito prático, hábil na confecção de um produto que mexe com o gosto e a imaginação das pessoas, disso logo os moradores da vila se darão conta, ou seja, da existência da “artista”, e seu fabuloso empreendimento que passa a funcionar numa antiga casa abandonada, reformada para tal fim. Foi com o que aconteceu nos primórdios do cinema, o que não é mera coincidência. Aos poucos o prestigio da produtora se consolida. As sedutoras maravilhas oferecidas aos olhos e ao gosto de cada consumidor.
Aos poucos a comunidade aceita as maravilhas produzidas pela artífice, em seu primitivo encanto, mas nem todos. Na tela, a magia do cinema, da própria artista, mas que seria uma corruptora dos costumes, para o chefe da congregação religiosa, que lhe impõe impiedosa censura. Em tal contexto, só por força da sedução que a arte provoca nas pessoas é que o empreendimento se consolida, e as cenas seguintes acontecem, até um inusitado desfecho. Torna-se um sucesso a Chocolataria Maia, nome em homenagem ao povo Maia, que extraíam do fruto do cacau uma bebida para os dias de comemorações religiosas. Os Maias donos de primitivos e mágicos encantamentos. Encantados eles também ficaram ao fim da projeção.
A alguns passos do cinema de onde acabaram de sair, Antero convida as mulheres para irem à cafeteria. Ao lado delas comenta a provocação daqueles seios de Vênus expostos na vitrine da loja de Viane, ou os negros castelos enfeitados de confeito coloridos para serem saboreados, como nos filmes de sexo e de terror. Ali estava a magia, que retorna através do chocolate, produto da inventividade humana, assim como o cinema. Principalmente, meio de vida honesto, capaz de resgatar a dignidade, e conseqüentemente o prazer de viver de muitas pessoas que trabalham nesse entretenimento. Na minúscula fábrica de Viane, profissionalismo e dedicação, são capazes de produzir delícias para ávidos consumidores, como um estúdio de cinema nos seus primórdios. Gostosuras para serem consumidas com prazer em qualquer lugar do mundo.  
Antenor comenta o fato intrigante da mulher maltratada pelo marido, que cria coragem de abandoná-lo para se dedicar à chocolataria, conquistando sua própria autonomia, impossível sem esse trabalho.
– E como vimos – conclui o marido de Aurora – há marchas e contra marchas na consolidação de um projeto, fiascos a superar, o que vemos no filme. O dos excessos que é cometido no consumo do chocolate, e foi justamente quem o censurou que acabou por cair de boca, se intoxicar.
– Acontece o mesmo com os doces prazeres da vida, dentre os quais o cinema - confirma Mara, que demonstra de ter entendido muito bem a mensagem do filme. Fala aos amigos que trata-se de uma homenagem à criatividade humana, aventureira e ambiciosa, boa ou má, de acordo com o que se faz dela, inclusive a própria religiosidade. Lembra, então, que em criança o que lhe enchiam os olhos eram os doces de sua avó, à base de ovos e muitos outros ingredientes saborosos, como o chocolate. Adoçaram sua vida, além das festas de aniversários, bodas e batizados na sua cidade natal. Disse por fim:
- Os doces sempre apreciados, mas o sabor exótico do chocolate se impôs, assim como o cinema, por tornar a vida mais prazerosa. Assim como o pão nosso de cada dia nunca deixará de ser alimento especial e imprescindível. Também a fé. 
Na cafeteria o casal observa melhor a prima ao lado, seu jeito sofisticado que lembrava a protagonista da tela. Além de chique, Mara era uma mulher empreendedora, e logo pediu licença aos amigos para dar uma olhada nas lojas, verificar melhor o ambiente, tinha um plano, avisou misteriosa. “O cafezinho estava ótimo”, fez questão de elogiar.
Antero e Aurora levantaram-se a seguir para ver de perto o Lago Paranoá, o que gostavam de fazer quando vinham almoçar, e iam ao cinema no Pier. Um ventinho gostoso percorria as alamedas por onde andavam. Ela falou com o marido que a mãe dela telefonara para comentar uma festa com as amigas, sempre animadas, sozinhas ou acompanhadas de seus “respectivos”. Para Aurora era o sinal de que o prazer estava no ar.  Os filmes estavam aí mesmo, assim como as novelas, e toda sorte de bens de consumo direcionados para o lazer, incitando o prazer. Os costumes mudados.
 Antero achava muito bom que a mãe dele tivesse uma vida independente, fosse uma cabeça boa e produtiva, mesmo de idade avançada, o que era também o caso da mãe de Aurora. Acontecia com eles próprios. Voltou a comentar o filme: “Como nos livros infantis, aparece quase sempre um lobo mau, ou uma bruxa. João e Maria foram atraídos para a casa de chocolate da bruxa má que os queria seduzir para depois matar os dois irmãos, vítimas da pobreza e do abandono.” E continuou, enveredando pela história do chocolata: “Há uma lenda segundo a qual no séc. XVI um jovem de nome Diego, em busca de fama e fortuna, luta ao lado de Cortés, conquistador do México, quando então ele teria conhecido uma nativa que o inicia nos afrodisíacos segredos do chocolate nativo, especial prazer em primitivas terras da América. Quando a mulher desaparece, ele  parte com seu cão pelo mundo em busca desse verdadeiro amor, ou um sentido para a vida”.
 - O prazer pelo prazer tem seus perigos – Aurora concordava com o marido, os dois agora sentados em um banco perto da praça de eventos. E deu curso ao que pensava sobre o filme: “O chocolate de Viane não seria uma coisa negativa por ser saborosa, ao contrário. Ruim é a maldade e a miséria que existe desde que o mundo é mundo, o caso de mulheres e crianças vilipendiadas, abandonadas. O mundo parece que ficou mais pobre desde a invenção do cinema, que não tem culpa de nada. Aurora recordava de um tio que dizia: “A questão da mulher mais do que individual é uma questão social”.
Antero toma a palavra: “A sensação moderna é que o lobo mal anda por perto. No filme, o marido raivoso ateia fogo na casa, para se vingar da mulher. Havia resquícios de medo nele, assim como em quase todas as ´pessoas daquela comunidade, onde cada um vivia desconfiado um do outro, a violência sorrateiramente infiltrada em todos os lugares.”
A prima chegava sobraçando alguns pacotes de compras. E outra vez integrada na conversa, deu sua opinião ao final das palavras do amigo:
– Sabe de uma coisa, a verdade é que se precisa dar um sentido à vida, principalmente, sentir prazer por estar vivo. Acontece que, quando não se tem inteligência, nem educação, e a tendência é agir mal, como o incendiário do filme, ou como aquele tarado do Metro Tijuca que eu e Aurora encontramos no cinema décadas atrás. O mesmo se vê hoje em dia, com ladrões, traficantes, ou mesmo cineastas pornográficos, todos malfeitores, que em maior ou menor escala existem por aí. Devo contar a vocês que eu e Gustavo estamos separados, ele trocou-me por uma moça que tem a metade da idade dele, uma ninfeta, por quem se diz apaixonado. Vim visitar vocês, com a intenção de me estabelecer em Brasília, quero abrir um negócio, acabei de ter a ideia de um café.
– A maldade – confirmou Aurora – pode estar em toda parte, tanto nos cinemas, como dentro das casas, dentro das próprias igrejas. Importante no filme é mostrar a mulher estar disposta para a luta, para ser feliz. O próprio casamento pode modificar muita coisa, trazer felicidade, mas também causar decepção e transtorno, o que se tem de superar, como qualquer contratempo na vida. A dedicação à família, à profissão que escolher, é o segredo do sucesso para a mulher, como para o homem, de acordo com a capacidade de cada um. O importante é que a mulher não depende mais da sorte num relacionamento. O casamento pra nossos avós como acertar na loteria.
Do seu passeio pelas lojas Mara havia comprado, sabem o quê? Chocolate. Uma caixa lindamente embrulhada que ela presenteou seus anfitriões. Antero agradeceu dizendo:
- Após um bom filme e um saboroso café, só mesmo o próprio chocolate, “doces e inocentes prazeres”. Melhor que isso só o amor ou a amizade entre as pessoas.
Não demorou muito o filho de Antero e Aurora virem buscá-los para irem todos à missa naquele domingo.


quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


SEMPRE MEMORIA II



Nossa juventude apaixonada, como todas, e podia ser por alguma causa nobre, por exemplo, o “Movimento das Missões”, a que se dedicavam as alunas do Colégio Santa Teresa no segundo semestre do ano letivo. Às vezes expostas a sermos abusadas coletando dinheiro, o caso de uma aluna que pediu para um contraparente furar um número na cartela e ele passou a mão na menina. Isso não abatia as jovens entusiastas que éramos. Os africanos não eram batizados, passavam necessidades? Ao lado das freiras íamos cuidar da salvação espiritual e de livrar da fome essas pessoas. O trabalho em favor dos povos da África, de onde muitos vieram como escravos para Brasil, sangue que impulsionou nosso progresso. Também nossa miscigenação, forte na população maranhense, que conta ainda com a contribuição do índio. Toda semana eu levava para o colégio alguma gostosura feita por Nazária para vender no recreio, e arrecadar dinheiro para enfrentar as “batalhas” travadas entre as meninas, ver quem dava mais para as obras de caridade.

Falava-se ainda a linguagem da guerra, e no fim do ano, lá estava eu com minhas medalhas, ganhas nas tais batalhas. Se dependesse de nós não haveria fome no mundo e preservada seria a fé. A paz retornara, e doravante poderíamos viver sempre assim. A miséria ainda não havia feito tantas vítimas, senão as da extinta escravidão e da guerra que findara. O mundo civilizado saía vitorioso da luta contra primitivas maldades, com nossa geração esperançosa de um futuro mais brilhante, que, todavia, passaria o  a sofrer outras guerras, outras escravidões. Os  interesses nem sempre justos, com o que se perderia para sempre a capacidade de viver em paz de verdade. Pessoas e nações envolvidas em eternos conflitos, o que se refletia na vida como um todo. A África ainda hoje grandemente afetada pela miséria, região de natureza ingrata que sofre o descalabro de ter chefes tribais como governantes. 

Exceto aos domingos, sempre no fim da tarde, após os deveres escolares - cumpridos à risca – eu ia com minha amiga Leila andar na sua linda bicicleta prateada, um luxo, que ela me deixava compartilhar. Dar voltas no fim da tarde em frente à recém-inaugurada Biblioteca Benedito Leite. Meu irmão precisava se desenvolver e ganhara a sua de varal, impedimento para minhas saias rodadas e anáguas. As calças compridas ainda veste só para homens, sem o jeans. A praça ficava repleta de jovens; os dois sexos em confraternização, uma modernidade. Os carros em menor número, e mesmo uma raridade. Experiência única equilibrar o corpo e comandar tão elegante mecânica. A tecnologia começava a deslumbrar o mundo, e me fazia feliz nos meus onze e doze anos, a desafiar a gravidade numa bicicleta, sem levar tombos.

Andar de bicicleta e de bonde era uma delícia, veículos dos meus primeiros passeios públicos. Também podia fazer passeios intelectuais, introspectivos, nos livros, guardados naquele imponente edifício de arquitetura neoclássica. Minha intenção era ler todos os livros. Teria tempo? Devia apressar-me. Mas o certo é ler durante a vida bons livros, de acordo com a idade, e se possível relê-los sempre, o que aprendi. A família sempre residindo em local nobre; durante décadas perto da Igreja, até a morte prematura dos  chefes, em duas gerações seguidas, quando então a morada-inteira em frente à encantadora Praça Odorico Mendes foi deixada para trás antes de eu nascer. A herdeira era uma tia-avó que, por questão financeira, alugava a casa, local  onde hoje funciona um colégio. Com as perdas a família passou a habitar uma meia-morada, a poucos passos do lar antigo. A mudança de endereço condizia com os novos tempos, e se devia tirar proveito do saber dos livros, que recebiam em São Luis especial abrigo. Do jardim de casa observara a formação dos alicerces para o prédio dedicado à lavra das letras, logo apelidado de “bolo-de-noiva”, devido a graciosidade do prédio, que se harmoniza com o belo casario imperial, revestidos de azulejos portugueses, eleito Monumento Universal de Arquitetura e Urbanismo.

Ter treze anos não é o mesmo que ter onze, doze, a vida quase uma miragem. Aos treze as aspirações começam a se manifestar, o amor chegando ao coração. Deusdete de olho em Leila desde o domingo no cinema. O amigo Vicente dedicando-se com afinco aos estudos, lendo em inglês e francês, o que me impressionava. Mas longe ainda os namoros de verdade.  Da rua vinha aquele cheiro de chão molhado das tardes de chuva, quando então eu ficava a cismar olhando a água cair das telhas. Lia e relia Louisa May Alcott, autora preferida da minha juventude, após o encantamento da infância com Monteiro Lobato. Da autora americana meu avô trouxe de Portugal os dois primorosos volumes de capa vermelha, para minha mãe  se habituar a ler, o que ela me disse ao passar-me o presente dos dois volumes: As Quatro Raparigas e Alguns Anos Depois. Atualmente conhecidos como Mulherzinhas. Quatro jovens em seus anseios: Jô, a menina intelectualmente  talentosa, quer ser um menino, certamente por conta do desprezo ao talento feminino na época; a doce Guida, desde cedo com o dom de ensinar, até se casar com um homem de caráter, por ela mesma escolhido para fazê-la esposa e mãe, ideal abraçado de coração; May, a criança voluntariosa, que se transforma em adorável mulher e casa com amigo de infância Lourenço, capaz de lhe satisfazer a ambição, menos  de sucesso artístico, por lhe faltar talento, o que ela tinha de sobra para brilhar em sociedade. No meio da narrativa a fatalidade da morte prematura de Beth, o anjo da família, quando então chega ao fim, silenciosamente, a inocência, representada por essa irmã, contraponto ao desejo de realização pessoal e liberdade das outras. Com Beth a intenção da autoria é trazer o sentimento de devoção e caridade presentes na jovem para o confronto com suas irmãs que seguem lépidas e fagueiras, desejosas de progredirem. Uma heroína cristã e católica (a decantada pobreza de espírito?). E quem mais admira Beth é a irmã Jô – o seu oposto – espírito inquieto, que recusa Lourenço, um par perfeito, não para ela,  que se casa mais tarde com o professor alemão Baher, filho do prático e resoluto país do protestantismo, ou do ideal racionalista.

Ainda da minha infância e da minha mãe, guardo a preciosa herança dos três livros da Condessa de Ségur: Os Desastres de Sofia, As Meninas Exemplares e As Férias. Que bom se eu fosse como Camila, Madalena, ou Margarida, crianças virtuosas, pensava com os meus botões. Metáforas das virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade? Já Sofia seria a desastrada mente humana, infantil, curiosa, filosófica e cheia de arte. Martirizava-me ser parecida com a menina  que é capaz de experimentar por a boneca de cera – presente do seu querido pai – para aquecer ao sol, e  que se derrete. Limites que a mente criativa deixa de  observar nas suas experiências. Trágica personagem, que procede como mitológico Pégaso, no seu desejo de alcançar o sol com asas de cera, mas que se desfazem ao calor do astro rei. A certa altura Sofia parte do interior da França com os pais para residir na América, na companhia do primo  Paulo e sua devota família. Sofrem um naufrágio, onde morre a mãe de Sofia,  sobrevivendo ela e o pai.  No novo mundo, sem mais notícias de Paulo, acontece o casamento do pai com a malvada Fichini (feiticeira?). Logo depois, morre também o pai, deixando Sofia sob a tutela da madrasta, ao lado de quem ela vai sofrer toda sorte de desditas, até que na idade adulta retorna à Europa, ou às origens.

Ao ler O Tronco do Ipê  repleto de mistérios, fiz o paralelo entre a bondade do pai Benedito e a maldade da Fichini. O escravo, guardião dos segredos da fazenda Boqueirão, era a imagem do “feiticeiro bom”, sob as bênçãos de quem Alice se casa com Mário. Para o naturalismo de José Alencar, o bem estaria na natureza, e o mal perto do homem civilizado, como o barão, pai da moça. Ao contrário do que acontece com a narrativa da Condessa de Sègur, que faz Sofia retornar à Europa, onde ela se casa com outro amigo de infância, o civilizado João de Rugès, que lhe dará paz à alma inquieta, dentro da tradicional fé católica. O Novo Mundo, todavia, mais virtuoso que bárbaro, foi o que testemunhou Nazária, sobre meus antepassados europeus no Brasil, filha de escrava  alforriada com pai branco, tendo acompanhado o tranquilo sucesso financeiro da família, assim com sua elegante decadência.

Gonçalves Dias em A Canção Dos Tamoios canta que “A vida é combate/ que os fracos abate/ que os fortes, os bravos/ só pode exaltar”. Os fortes e bravos de espírito. Mas a robustez física torna-se apreciada, após uma geração em que bonito era ser frágil e morrer em plena juventude.  Minha avó a se gabar da própria fragilidade. Após a morte prematura do marido, comerciante próspero, foi uma mulher exemplar no caráter e determinação. O trabalho para a viúva torna-se um bom combate, não sendo adepta da ideia da dor como um bem, falsidade ideológica, que levava à cultura do sofrimento, da passividade, diante dos revezes da vida. A dor não seria o melhor aprendizado, nem o prazer coisa inconsequente. “Só é feliz de verdade quem se sente bem consigo mesmo!” diziam minha avó e minha mãe, certas de que o sofrimento prolongado avilta, assim como a luxúria, de que são possuidores os escravos das honrarias e dos prazeres, pessoas suscetíveis de tornarem-se vítimas do medo, da inveja e da cobiça.

Convenção, modismo, numa geração de mulheres que jamais admitiam ter saúde. Quanto à minha intrépida avó – nem gorda, nem magra, e com boa saúde – mesmo assim, se gabava de estar com a vida por um fio. Algumas mulheres obrigadas à inatividade - não minha avó. Talvez se dissessem doentes para legitimar sua fraqueza, e serem interessantes, até para se livrarem das sucessivas gestações. As mulheres nos desmaios escondiam  sua fortaleza, geração após geração sem vontade própria, nem disposição para enfrentar a vida. Discriminadas, aceitavam, o que acontecia antes da emancipação feminina. O que ainda se vê nos dias atuais, a justificar que se apregoe como real vocação da mulher a utópica tranquilidade do lar, o que contraria os ideais de modernidade. Quanto à nossa geração, éramos uma fortaleza em todos os sentidos, e podíamos até nos orgulhar da nossa capacidade mental sem sofrer grande   censura.

Telefonia e telegrafia precárias, e minha avó recebendo mensagens telepáticas, como a notícia da morte de uma amiga que acabara de falecer a léguas de distância, sem acreditar que fosse coisa do outro mundo. Havia poucas maneiras de nos livrar da dor, contra a qual o homeopata receitava a Nazária, seus incipientes medicamentos tirados de uma preciosa maletinha de doutor. Não muitas as dores da nossa infância, até  mesmo as inventadas para impressionar e sermos tratados com mimos, o que mais importa em caso de doença. A farmácia aperfeiçoando-se para combater as doenças, e nada mais alvissareiro que a promessa de uma vida prolongada e quase sem sofrimento. Nossa condição de seres racionais, que deve pautar seus atos na reflexão. As decisões tomadas conscientemente, sobre o que se quer da vida, não obstante muitas coisas aconteçam independentes da nossa vontade. Trabalhar a nosso favor e não contra, ter responsabilidade para conosco e para com os outros seres, principalmente, nossos semelhantes. Seria uma resposta sobre o sentido da vida humana. Ainda não bem acordada, uma voz feminina me fala,  certamente vinda do passado, que por um bom tempo escutei, mesmo sem entender. Aquela voz amiga me dizia algo importante, e penso que ela refletia todas as vozes que me falaram durante minha vida, na vida real e na ficção. Concluí que  ainda esperavam muito de mim, pelo que me deram, e não foi pouco.”



quarta-feira, 13 de fevereiro de 2013


QUARTA FEIRA DE CINZAS


Depois da folia carnavalesca é hora de fazer balanço dos acontecimentos. Estamos na segunda década do século XXI e continuamos a festejar o carnaval, a juventude foliã como  era na década de cinquenta do século passado. Devo dizer que sou uma cabeça que não envelheceu, embora já tenha alguns anos de vida, o que considero vantagem sobre as mais jovens que ainda têm muito que vivenciar. Em Pirenópolis tive a surpresa de apreciar uma festa digna de todos os elogios, onde revivi antigos carnavais, com suas marchinhas. A alegria dos moços e das pessoas mais velhas por conta da organização na cidade, que propiciou a brincadeira tranquila, fato que o  Padre na missa do domingo de carnaval creditava às autoridades, por terem tomado as devidas providências, para que não acontecesse a baderna dos anos anteriores, a tal ponto que não podia mais ser suportada. Extensivo a todo  país, de acordo com um comentarista empolgado na TV: “Só um grande povo se organiza a partir da alegria.”
Mas não eram apenas dias de folia e de descanso, também de surpresas. Na pousada de Pirenópolis, a mais frequentada pelos brasilienses, o conforto de sempre, onde ali dentro nada acontece além do previsto, é o que se espera. O mundo lá fora continuaria girando, as coisas acontecendo, sem que se possa controlar. Tanto assim que tomamos um susto com a  notícia da renúncia do Papa, que deixará o trono de São Pedro no último dia de fevereiro, para que seja eleito novo papa. Novo, mas não em idade, pois todos os cardeais têm mais de sessenta anos. Bento XVI alega que suas forças, devido a idade avançada, não são mais ideais para um adequado exercício do ministério Petrino, e que ficará na clausura do mosteiro das carmelitas no Vaticano.  Depois dessa notícia de real relevância, veio a de menor ou nenhuma relevância, ou seja, que a atriz global Bruna Marquezine e o jogador de futebol Neimar haviam assumido o namoro numa festa de carnaval. Foi o que comentou na luxuosa pousada uma amiga para a outra, como se fosse a mais importante das notícias. Não é sem razão que o Papa, como representante do poder espiritual dos católicos, queira  retirar-se... 
No domingo de carnaval foram celebradas cinco missas na matriz de Pirenópolis, todas elas cheias de fieis. O povo de Goiás muito religioso, de fé católica em sua maioria, que crê na Mãe divina, cuja imagem de Nossa Senhora das Graças tem o corno=crescente aos seus pés. Justamente os cornos do boi que faz parte do folclore, não só nessa cidade, mas em todo o país. Na festa das Cavalhadas em Pirenópolis os cavalheiros de duas facções lutam mascarados com a cabeça do boi.  No Maranhão tem os festejos do Bumba-meu-Boi. Concepção arcaica do  sagrado, seu espírito masculino e combativo, que passou a fazer parte do folclore nacional. São festas populares, sendo que a do carnaval precede o tempo pascal.
A Igreja católica entra em tempo de penitência, e que o novo papa eleito com a inspiração do Supremo Pastor Jesus Cristo e sua sagrada Mãe Maria, como implora Bento XVI em sua carta renúncia, chegue com todo vigor para comandar o seu imenso rebanho.      
         

quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013


                  COISAS DA VIDA

                          conto


     A chuva parou de cair, forte naquela época do ano, o céu ainda com  nuvens escuras, Jandira tinha pressa de chegar à clínica distante duas quadras antes que caísse outro pé d’água. Levava um frasco bem acondicionado contendo material recolhido pelo médico para exame de biopse, após extração de um pólipo no útero. Já deixara os dois filhos no colégio. Para que táxi? Ia caminhar e poder melhor refletir. A mãe viera visitá-la, e era sempre uma alegria acompanhá-la nos passeios e visitas a parentes, os quais pouco via. Até que sentiu aquele mal-estar, depois de um longo passeio. Jandira residia há pouco tempo no Rio, sem ver dificuldade, apesar de cidade grande, cheia de histórias boas e ruins, que seduzia as pessoas, lugar de oportunidades, capital federal. Estava ali por força das circunstâncias, e podia proporcionar aos três filhos boas experiências nessa fase da infância, dentro de poucos anos estariam crescidos.
Jandira deixara um bom emprego para acompanhar o marido, e não via sacrifício nisso, mesmo com pouco tempo para pensar em si mesma, a prole já definida, um homem e duas mulheres. O tempo não parecia ter muita importância, a vida correndo para sua família, igual a qualquer outra. Sentia-se confortável na situação de dependência total do marido, o que algumas mulheres já começavam a contestar, queriam menos filhos e ter uma atividade fora da casa. Não que elas tivessem  uma vida de passividade, pois cuidavam do lar, onde a mulher podia realizar-se  na maternidade. Lógico que seria um céu se os maridos ajudassem mais com as crianças, se incentivassem a mulher no sentido do estudo e de uma profissão. Acontecia de Jandira viver em paz.
 O feriado do dia anterior, com exaustivos passeios, de repente aquela indisposição, quando foi atendida pelo médico em casa. Os carros alvoroçados na ida e vinda para o almoço. Estava até arrependida de não ter tomado uma condução, temia o novo aguaceiro que se formava no céu. Cismara com a recomendação do Dr. Arruda para que fizesse com urgência aquele exame. “Sinto falta do dr. Filogônio”, a mãe falou à saída do consultório do antigo médico da família, já falecido. Ela conhecia bem a nomenclatura médica, e arregalou os olhos quando o médico falou “biopse”, o que impressionou a filha, agora mais aflita por conta da mãe, até esqueceu que a doente era ela. Se estivesse mesmo com câncer? A cura uma  promessa distante, e Jandira agora estava apreensiva por ter deixado a mãe sentada frente à janela, a dizer que não ia mais lugar algum, o olhar perdido, num silêncio assustador, seu interior certamente em turbulência. Mais razão tinha sua filha. Acontece ter a avó de Jandira morrido da doença poucos anos antes, e todos ficamram apavorados com a suspeita de terem na genética aquela semente. E não adianta palavras de consolo, nada. A morte como que rondando por perto, parece até que abraça a pessoa. Maior que essa dor só a felicidade da cura. É como renascer para a vida, o que quase todos experimentam um dia.
“Só daqui a quinze dias” murmurava de volta para a casa. Agora era esperar pelo resultado. O triste passado não lhe saía da cabeça. Mais um motivo de apreensão. Estaria a tragédia se repetindo? O resultado do tal exame só sairia dali a quinze dias, foi o que o disseram no laboratório. Até lá teria, uma vez mais, que levantar o astral de casa, além do seu próprio. Principalmente tinha que convencer a desalentada senhora que nem ela nem a  filha iam morrer de câncer, o que realmente Jandira achava. A chuva foi-se, mas o dia continuava abafado. A cabeça a pesar-lhe. Parou para atravessar a rua. Só daqui a quinze dias, repetia para si mesma. O sinal de trânsito lá adiante, mas estava com pressa, atravessaria ali mesmo. Os carros numa corrida desenfreada, os condutores, audaciosos em suas máquinas, ultrapassavam uns aos outros. Cada um por si e Deus por todos.
Parou alguns minutos na calçada, e nada de poder alcançar o outro lado. Enquanto isso continuava pensando sobre a morte inevitável, e o medo que temos dela. O pavor que acompanhou a mãe pela vida afora, o que não era o seu caso, nunca pensou em morrer. Lembrou-se do psiquiatra falando na televisão, que “a morte é o processo de nossa vida e o fim dela; tentar vencê-la enseja os esforços mais criativos do ser humano”. Belas palavras. Enfrentar o mal é o que faria daí para frente, estava justamente numa cidade onde existiam os melhores recursos.
Antes de tudo vencer o medo. “É preciso ter coragem”, diz o poema de Olavo Bilac. O medo de morrer, quase patológico na mãe, tinha raízes profundas, da infância. Aquele pai bondoso, mas ao mesmo tempo um quase tirano com os filhos, como todos os pais eram na época. Vê-lo tão moço e ativo, deitado inerte no caixão foi desesperador. Paradoxal o amor que se ela sentia pela vida, e ao mesmo tempo conviver com o pavor da morte, como se estivesse preste a acontecer. A tia Nazária, antes de partir, disse, apertando a mão de Jandira: “Eu nunca quis sair de perto de vocês e sinto que tenho de deixá-los.” Missão espinhosa fazer alguém, num momento de desalento, acreditar num bom diagnóstico, ter confiança.
“Uma ida sem volta, a única coisa que se pode dizer que é para sempre”, repetia dezenas de vezes sua aflita tia Olga após a perda do marido. O pensamento de Jandira indo longe. Mas não é bem assim. Podemos dizer que permanecemos na memória das pessoas, na descendência. A vida tem de continuar. O resultado do exame seria negativo, tinha certeza. O trânsito parecia pior que nos outros dias. Voltou a chover, uma chuva chata, miúda. Daqui a quinze dias ia busca o resultado do exame. E atravessa a rua. Logo estava na entrada do prédio, o porteiro vendo a romântica novela Cabocla na pequena televisão em preto e branco, a comentar com alguém que ele mesmo não perdia um capítulo, por nada. Não a viu passar. A atenção grudada no amor dos protagonistas. O romantismo que pode servir de consolo para a dura realidade da vida, até mesmo para a morte. O amor como a razão do viver; não só entre duas pessoas, mas o amor em nível superior, maternal, filial, etc. Escuta ao longe a cantoria: “Cabocla teu olhar está me dizendo/ que você está me querendo/ que você gosta de mim”.
Jandira não estava com pressa, atravessa o cuidado jardim do prédio, como que observando tudo pela primeira vez,  tantas vezes ficara sentada naquele banco de ferro lavrado, enquanto as crianças brincavam. Coisas banais que de repente chamam sua atenção: a paisagem derramada de folhagens, a  decoração, mas faltando algo, as flores. Cadê a alegria? O elevador de serviço, logo naquele dia estava enguiçado, para onde se dirigiu fugindo dos olhares sempre indiferentes, e que agora podiam se tornar perscrutadores; temia que percebessem sua angústia.  Teve mesmo de pegar o social. Que pelo menos subisse vazio. Os moradores de bem com a vida, ela também, até àquele momento. Muito bom o imóvel na burguesa Tijuca, dois espaçosos quartos, uma linda cozinha, varandão, único alugado no prédio quase de luxo, o preço dentro do orçamento, o proprietário na assinatura do contrato de aluguel afirmando que fez questão de escolhê-los como primeiros habitantes.
Entrou antes do casal de namorados, absortos um com o outro, aos beijos e abraços; uma novidade esses arroubos de ternura em frente a estranhos. Namoro moderno. O pensamento dela agora voltado para os dois enamorados, que fossem sensatos, com tanta liberdade (da AIDS, nem se tinha notícia da existência, mas que iria grassar, logo, logo - no fim do século).  Não pareciam promíscuos, mas nunca se sabe. Os jovens hoje se acham espertos, mas como são tolos; no passado pareciam tolos, mas eram bem espertos. A mente de Jandira analisando tudo numa compulsão.
  Saiu apressada do elevador. Que estranho o hall de entrada! O que havia acontecido? Mudaram o piso, trocaram o forro da parede. Assim mesmo pegou a chave para enfiar na fechadura, que resistiu bravamente. Foi quando a porta se abriu, e junto com ela um sorriso de surpresa, mas acolhedor. Ainda mais intrigante as pessoas que estavam  sentadas na sala, os dois grandes sofás no centro de uma decoração vista de relance e que lhe pareceu flutuar. Da janela, parcialmente coberta pela cortina, saia um facho de luz. Uma cadeira de estilo medieval logo na entrada? O que fizeram? Preferia a decoração de antes. Sentindo um torpor acomodou-se entre duas senhoras. Todos muito atenciosos. Ou estavam embaraçados, como acontece quando se está diante de um intruso. Algo estava errado. Que pessoas inconvenientes!  Esperaria que se retirassem para que pudesse falar com a mãe sobre a demora de quinze dias na entrega do exame. Nem sua empregada aparecia para dizer algo.
Ia beber água e logo sair outra vez para pegar os filhos de volta no colégio. Deu por si! Entrara na residência errada, no apartamento abaixo do seu, no quarto andar. Apressou-se a pedir desculpas, alegando que estava com pressa saiu sem maiores explicações. O que teriam pensado dela nem valia a pena elucubrar, as preocupações que tinha já eram bastante.
Quinze dias depois Jandira foi buscar o resultado do exame. E, como era esperado, deu negativo; não havia câncer algum.   
     Conto premiado, no II Prêmio Literário da Livraria Asabeça -2003” 

quarta-feira, 6 de fevereiro de 2013


     O LADO BOM DA VIDA















                  Filme indicado ao Oscar de 2013 em 8 categorias, O Lado Bom da Vida tem a direção de David O. Russel, com roteiro adaptado do romance homônimo do americano Matthew Quick. Trata de uma família da classe média americana, cujo filho mais novo, Pat (Bradley Cooper), sofre o trauma de um casamento desfeito, mas quer sua mulher de volta, por conta disso age de modo irrefletido, obsessivo. O diagnóstico no caso dele é bipolaridade.  De volta à casa paterna o comportamento do rapaz não melhorou com tratamento no hospital psiquiátrico, o que os pais tentam compreender, principalmente o pai ( Robert De Nilo ), que acha ter negligenciado com esse filho, enquanto teria dado maior atenção ao outro. A mãe de Pat com vocação para o amor, numa interpretação primorosa da australiana Jacki Weaver, suporta docilmente as loucuras do filho, assim como as idiossincrasias do marido. É uma mulher que  se sacrifica como pessoa em benefício do compromisso amoroso, afetivo, para com a família e também seus amigos, o que constitui um lado bom da vida. Mas há o outro lado.
Pat tem, pois, o exemplo da mãe, que vive em função dos outros, com pouca autonomia para agir. Principalmente, sem amor próprio, sentimento que deve vir em primeiro lugar, não o do dever. Essa mãe à moda antiga, condicionada a não fazer o que gosta, nem ser feliz.  Sacrifício que deve ser na medida certa, não infelicidade, frustração. A  ex-mulher já proibiu na justiça que Pat se aproxime dela, se não quiser ir para a prisão, ou então voltar ao hospital, onde esteve internado por oito meses. Sabe-se dos crimes que  acontecem quando antigos parceiros matam o outro, por não se conformarem com a separação. A grande paixão que se transforma em  ódio. No filme a mania do rapaz é correr, o que é sintomático. Mas é numa dessas corridas pelo bairro ele encontra a jovem e encantadora viúva Tiffany (Jennifer Weaver) que havia perdido o marido num acidente, e desde então sofre outra obsessão, a sexual. Quando Tiffany conhece Pat, ambos estão vivendo o lado mau da vida. O encontro entre eles é providencial.  A sintonia logo percebida pela moça, enquanto o rapaz demora a ver algo importante nela, para ele apenas uma mulher chata querendo se aproximar.
A verdadeira parceria dos dois começa na dança, na qual  vão se exercitar, seguindo passo a passo um roteiro, delimitada a trajetória de aproximação, embalados pela música . O lado bom da vida significa aprender a viver, a amar, no ritmo certo, comprometido com beleza e a harmonia das atitudes, para ser mais feliz. De outro modo é enlouquecer de tanto se entrega ao amor, ao sexo, a tudo, sem limites, sem haver o aconchego de almas. Acontece muito nesse nosso mundo bipolar, que só tem compromisso com o prazer, mesmo dever, a tal ponto que não se ama e, sim, usa as pessoas. Seria o caso de Pat e a ex-mulher, que teriam tido um obscuro encanto um pelo outro? Enquanto com Tiffany as coisas acontecem de modo mais claro, consciente, pelo aprendizado, de modo positivo, que eles tiveram um com o outro. Aprender a estar ao lado de quem se gosta e te faz feliz. O Lado Bom da Vida, não é um filme romântico, o que a Academia não gosta de premiar. Concorre com Os Miseráveis, também Lincoln, de Spilberg. Páreo duro!