terça-feira, 30 de abril de 2013


       TRABALHOS DE AMOR E FORTUNA






Os povos ibéricos, de fé católica preponderante, desprezavam os ofícios mecânicos, o que não ocorria na parte setentrional do continente europeu. Tanto na intransigente Alemanha, quanto na condescendente Holanda, duas laboriosas nações, de maioria protestante, foi adotada a ética do trabalho. A Rendilheira exalta de modo claro o trabalho feminino, tecendo o fio, comodamente sentada. O mesmo acontece em A Leiteira que está de pé derramando leite no tacho para fazer o pão de cada dia. Além do que está oculto nas duas pinturas. Concentradas em suas tarefas, as mulheres transmitem dignidade pessoal e ao trabalho a que se dedicam,  em cada ação embutido valor moral e econômico. O ethos do trabalho nos dois quadros para libertar as pessoas de poderes arbitrários, consoante o que determina a sociedade utilitarista protestante. As duas mulheres em atividades que podem até subjugá-las, vulgarizá-las, mas também pode torná-las livres de cair nas tentações do mundo. A robusta leiteira está vestida de modo simples, com as mangas da blusa arregaçadas, deixando ver a alvura do antebraço, a pureza do seu corpo, que tem a mesma cor do leite, o que certamente não se trata de racismo.
Questionamos ainda se a rendilheira não seria uma mágica ledora de renda, dessas que foram queimadas como bruxas, torturadas. No século das almas, além do trabalho nas oficinas, havia o de cunho espiritual, mágico, e o quanto as mulheres foram perseguidas por isso, precursoras que foram da ciência moderna. Fruto de especial magia, por exemplo, é a moderna técnica psicoterápica de “reinstalar a fiação” (rewied), como remédio contra a depressão, e que é usada para provocar “mudanças metabólicas cerebrais regionais adaptativas”. O trabalho de “mentalização” capaz de curar o cérebro depressivo.  O trabalho como método de cura, uma vez que a mente ocupada pode prevenir contra os males psicossomáticos. Exemplares as personagens de Vermeer habilitadas nos ofícios, quando menos, para fugirem do vazio existencial, pelo bem estar que oferecem a si próprias e a outras pessoas. A saída honrosa contra a miséria estaria na rotina do trabalho, tanto do corpo quanto da alma, o que Calvino incentiva para as mulheres. O aprendizado dos ofícios seguindo rígida disciplina, uma vez que a insegurança se faz presente mesmo no melhor dos mundos.
A ética protestante, segundo Max Weber, é por um ideal de vida que exige autocontrole e precisão de conduta. Assim, por trás das duas trabalhadoras, as paredes estão nuas, apenas um prego denuncia que algo esteve suspenso ali e foi retirado, e poderia ser algum mapa geográfico, uma tela de cupido, uma paisagem, ou mesmo um famoso quadro da fé católica, que servem de fundo em outros quadros de Vermeer. Todos varridos do local, por representar aos puritanos e calvinistas coisas de ímpios, de desonestos. Intrigante o pontilhado luminoso que aparece no azul-escuro da manta de lã ao lado da redilheira. O mesmo pontilhado do pão produzido pela leiteira, salpicado de pequenos pontos dourados. Exprimem obscuridades que vêm à luz. O invisível quer se tornar visível e fazem parte da natureza e suas leis; humanidades saídas da obscuridade, tornadas mais claras possíveis. Diz Aristóteles em sua Metafísica: “Indicar a substância de uma coisa nada mais é do que indicar o ser próprio dela”. O pontilhado de Vermeer, uma tentativa de revelar o sentido oculto das coisas, metafísico e moral, também, as ínfimas partículas da matéria, que a ciência não tardaria a revelar, tal como o valor vitamínico dos produtos, necessário para o bom funcionamento do corpo, o que os valores espirituais representam para a alma. Na Holanda, à época, o inventor Leeuwenhoek de Delf deixa todo mundo abismado, principalmente os humanistas, ao fazer as primeiras observações sobre a natureza dos tecidos, servindo-se a princípio de uma lupa, depois com um microscópio rudimentar por ele inventado.

segunda-feira, 29 de abril de 2013


                                




Enquanto Salve Jorge continua no vai e volta das personagens entre o Brasil e a Turquia, Guerra dos Sexos chegou ao fim. Tony Ramos e Glória Pires e mais Irene Ravache, Marilu Bueno proporcionaram alguns momentos hilários aos espectadores da Globo. Uma trama leve no horário das sete, sem temas para discussão, no caso, remake de um sucesso, passado 30 anos. Estranhei a impunidade do Kiko, que não sofreu nenhum castigo pelos maus feitos, fabricante clandestino de explosivos para detonar desafetos. Um erro tratar como simples rebeldia procedimento delituoso como esse, e sabemos o que aconteceu em Boston. Ou o castigo dele foi se apaixonar pela Flor e casar com ela? A essa altura quase todo mundo ligado nas novelas, que as redes de televisão transmitem uma atrás da outra, pena que nem sempre as tramas estão à altura da tecnologia empregada.  
A nova novela anunciada é Sangue Bom, o tema sobre crianças de abandonadas em um orfanato, que serão adotados, e levados a seguir  padrões de comportamento ditados pelos novos pais e o ambiente onde passarão a viver. Só um permanece no abrigo, enquanto os outros vão ter uma educação de pouca qualidade nos novos lares. Assunto próprio para o horário juvenil, todavia, os adultos é que são aficionados. Lendo o resumo da novela nos meios de comunicação temos a impressão que Maria Adelaide Amaral, como sempre, reserva momentos de reflexão ao telespectador ao mostrar crianças adotadas, que vão continuar como jovens “abandonados”.
Charmosos os novos habitantes do planeta Terra. Mas quão agitados, confusos, esses filhos do mundo moderno, quer sejam adotados ou biológicos. O mundo, a sociedade atual, focada no sucesso financeiro, na fama, que leva à busca por notoriedade a qualquer custo, e acaba por formar uma geração de pessoas fracas de caráter. Quanto à nova novela das nove, já se sabe que vai ter um patriarca de origem árabe, Antônio Fagundes, cuja mulher é o máximo em termo de glamour, e só podia ser Susana Vieira no papel. Bandido peruano e mocinha também não vai faltar, com cenas no exterior, como sempre, no caso, em Machu Picchu. Muda o cenário, os artistas, mas a “churumela sempre a mesma, com um grande vilão, ou vilã para se odiar. 
Ainda em suspense o final da atual trama televisiva, ou seja, que a filha encontre afinal a família biológica, da qual foi arrancada da mãe pelo tráfico Aisha vai ter que conviver com uma mãe destrambelhada que nutre paixão por um presidiário em condicional, enquanto a adotiva é cúmplice do crime de sequestro. O perdão deve dar o tom final desse folhetim. O capitão Theo será perdoado, um sentimental a todo vapor. Mas como diz Benedetto Croce: “o sentimento é uma categoria espiritual ambígua, uma força negativa, que não expressa a verdade interior”. A natureza humana é mesmo complexa, mas é difícil entender o mundo das novelas, pessoas que não evoluem, não amadurecem, e transitam sem parar de uma relação amorosa para outra, de lugar em lugar, até de coisa para coisa, o caso da delegada Helô, consumista compulsiva. O que eles têm a ver conosco? 

domingo, 21 de abril de 2013


                          UM MUNDO IMPOSSÍVEL

Havíamos chegado ao melhor dos mundos, afinal. Viveríamos doravante numa sociedade onde todos teriam seus direitos respeitados, o que se pensava até há pouco tempo. Ninguém olhava para o outro com desconfiança, pois não havia culpados, só justos.  O contrário do que acontece hoje, quando somos todos acusados de alguma coisa. Em cada olhar, em cada palavra, quase sentenças de vida ou morte, pois há os que se intitulam defensores do “bem” contra o “mal”. Fanáticos levantam bandeiras que expressam sua rebeldia contra as pessoas comuns, que viraram seres delituosos, inimigos públicos número um, racistas, homofóbicos, no mínimo, insensíveis aos problemas das minorias. Cada vez em maior o número os que se acham dentro dessa intrincada rede criada para acusar, onde ninguém pode se dizer inocente. Bandeiras são levantadas para infernizar quem cuida do seu trabalho, da sua vida. Formou-se uma legião infernal de desocupados, em sua maioria. Ou simplesmente pessoas que se deliciam em passar por bonzinhos, o que o brasileiro adora ser, bonzinho, sem ter que assumir responsabilidades maiores. Tudo isso estimulado pela comunicação através da internet.


Militantes de causas escolhidas ao acaso para ocupar a mente vazia, já que não querem se dedicar a nada mais concreto, como a família, o trabalho, o estudo, e assim darem sua contribuição para o real bem da sociedade que dizem abominar. Querem inventar outra vez a roda. Ninguém tem mais direito a pensar, senão nas coisas apontadas como do “bem”, ou então se tornam cúmplices do “mal”. Uma liberdade que só serve para a contestação. Isso talvez seja resultado dos anos de ditaduras, dos totalitarismos, que pairam sobre o mundo como uma sombra. Seria cômica se não fosse dramática a situação, com consequências nada agradáveis na vida real das pessoas que querem viver em paz e não conseguem. Impossível alguém ter tranquilidade, quando pode ser acusado disso ou daquilo. Ai de quem, por algum motivo, mesmo remoto, possa ter dito algo incorreto para a cabeça desses tais acusadores de plantão. “Façam o bem”, postou na internet o terrorista Dzhokhar do atentado em Boston, numa espécie de aviso prévio para o que ia fazer junto com o irmão mais velho.
  Amaldiçoar, até jurar de morte a quem pensa diferente, é como agem os intitulados rebeldes, que gozam de um prazer doentio ao apontar esse e aquele de racista, de crueldade com os animais, destruidores da natureza, inimigo dos negros, dos índios, e por aí vai. Tais defesas seriam importante, se bem abalizadas, e não fossem feitas por destrambelhados, principalmente na internet, a distorcerem tudo, por falta de um bom raciocínio.  Pensar para que? Coisa que eles evitam é raciocinar, ter lógica. O bom é reagir a tudo numa confusa mistura de amor e ódio, espécie de cruzada que movimenta legiões de pessoas a se julgarem autoridade em tudo. Mas contra os fatos não há argumento, o caso do casamento gay não gerar filhos. Não adianta colocar o bloco na rua, ou organizar passeatas que não vai mudar nada. O pior é a vulgaridade da ação, da comunicação. Pessoas há que se sentem superiores, ao professarem tal ou qual crença. E há os que se põem a defender causas nobres, esse veio de ouro para os falsos benfeitores da humanidade. Desse modo estamos caminhando para um mundo impossível, se já não estamos dentro dele.  A menininha Emira Myer, ao lembrar de  Martin, o amigo vítima da tragédia de Boston, declarou: “Eu nunca sei onde as pessoas da mal estão.”
                

sábado, 20 de abril de 2013


             “ISSO NÃO TEM O MENOR SENTIDO”




Foi como o papa Francisco manifestou pesar ao saber do recente atentado em Boston nos Estados Unidos. As mesmas palavras que expressaram a dor da mãe de duas vítimas: um garotinho de 8 anos, Martin, que morreu, e sua irmã que teve um membro amputado. A família Richard estava no lugar errado e na hora errada? Não, estavam no lugar certo, acompanhando a tradicional maratona da cidade, à sombra da árvore. Justamente ali onde foi deixada a mochila com uma das duas bombas, que as evidências indicam ser dos irmãos Tamerlan Tsanaev de 26 anos e seu irmão Djokhar de 19 anos. Do outro lado da avenida explodia a outra bomba, onde um maior número de pessoas estavam reunidas para assistir ao evento que acontece em Boston desde o século XIX. Houve três mortes e mais de 180 pessoas feridas.
Os dois rapazes foram fotografados através de filmadoras e celulares, sempre acessados nessas ocasiões, dos quais os criminosos não escaparam. Lá estavam eles bem vestidos e de boné, chegando e saindo dos locais onde haviam colocado as mochilas com a bombas dentro de uma panela de pressão, para aumentar o potencial da explosão. Descobertos de imediato, o mais velho dos irmãos, considerados agora terroristas, morreu no tiroteio com a polícia, e o mais novo está ferido em um hospital de Boston depois de resistir à prisão e se esconder em um barco. Os chechenos naturalizados americanos tinham explosivos junto ao corpo, o que é típico dos que têm ligação com o terrorismo internacional. Estudantes universitários eles optaram pelo inferno do terrorismo, a viver tranquilos num país que os acolheu ao pedirem asilo político, uma vez que a Chechênia luta pela independência da Rússia.
Parece um mundo impossível esse em que vivemos. Há poucos dias um assalto seguido de morte de um jovem revoltou os brasileiros. Victor Deppman chegava tranquilamente em casa depois das aulas e foi surpreendido por um menor de idade, que ia completar 18 anos dois dias depois. Uma barbaridade que vimos acontecer diante das câmeras, o “menor” matar covardemente o jovem estudante, que não reagiu ao assalto, entregou o objeto, mesmo assim sofreu um tiro na cabeça. A visão de crime tão covarde tornou maior a indignação, para que fosse diminuída idade penal. Seria a lei João Vitor, o que é muito justo, e que seja em plena comoção, sim. O menino João Hélio foi outra vítima de assassinato brutal ocorrido em 2007. Acontece que as coisas não são simples de resolver. A CNBB já se manifestou contra a diminuição da idade penal. É uma voz abalizada sobre assuntos humanos que temos de escutar, mas não a única.

domingo, 14 de abril de 2013


                  
                   UMA NOVA LEI ÁUREA?

 


O serviço doméstico considerado como uma espécie de semiescravidão, que a dona de casa dividia com sua empregada dentro do lar, as duas mulheres solidárias e amigas, principalmente devido a procriação. Desde priscas eras as mulheres sujeitas ao trabalho, dito inferior, que é cuidar do lar e da prole, as mais aquinhoadas contando com as empregadas, em condição favorável para ambas as partes. Ou mesmo desfavorável quando a empregada não tinha condições de assumir tal tarefa, em sua maioria. A nova lei anunciada pelo presidente do Senado dá direitos às empregadas domésticas, como qualquer trabalhador, com horas extras e outras coisas mais, que serão contabilizadas nos custos desse empregado. A pretensão é fazer justiça a uma classe esquecida e requer cautela do outro lado da mesa, não apenas das refeições, mas das negociações. 
A mulher que tem filhos pequenos e precisa trabalhar fora não pode prescindir de ter uma empregada, enquanto estiver ausente, até mesmo para pagar a empregada. Um ponto crucial, também para a outra parte. Se a lei das domésticas for para valer, tem de furar a resistência arraigada em certos costumes do brasileiro. Se a família não puder arcar com as despesas, a mulher vai ter de ficar em casa, ou então o marido. Um acordo entre homem e mulher que tem de existir. A sociedade que promove igualitarismo geral e irrestrito. Verifica-se nos comentários masculinos na imprensa e de boca em boca, que são eles, homens, os mais intrigados com a PEC das domésticas.
 O bom é que a nova lei pode, inclusive, promover a cooperação da família na divisão das tarefas do lar, no que for necessário, abolindo a distinção, coisa atípica para o machismo brasileiro. A própria mulher não se sente muito à vontade com o homem na cozinha, ou fazendo a cama. Acerto que acontece na relação de trabalho entre empregador /empregada doméstica, que passa a ser menos pessoal e afetiva, e  mais profissional. O lar gerido com competência, como deve ser. Que assim seja! É ver para crer.    




quarta-feira, 10 de abril de 2013


                        

                   AOS 96 ANOS DE MINHA MÃE – QUASE MEMÓRIAS

  





Ela quis dar uma mexida na vida, os filhos praticamente criados, ia fazer concurso público. O antigo sonho de Ivone que retorna, ter uma profissão, seu próprio dinheiro, depois de uma década dedicada exclusivamente ao lar. Desconfiava do constrangimento que ia causar, inclusive para a mãe, com as filhas das amigas sustentadas pelo marido... Saía de casa para trabalhar por necessidade, iam dizer! O marido mandando na mulher dentro do lar e no mundo lá fora, igual aos outros homens. Eles, sim, seres evoluídos. A vida pública o “elo perdido” da evolução feminina, o que a mulher de Herculano acabara de descobrir, disposta a pegar condução rumo aos novos tempos. Os bondes elétricos sumiram, agora só veículos motorizados corriam nas vias urbanas asfaltadas: ônibus, carros, para transportarem as pessoas com a rapidez necessária na corrida progressista. Os automóveis prestigiavam a individualidade, para quem na época podia adquirir tão maravilhosa máquina, o cobiçado Fusca, o pioneiro da fabricação nacional. Ivone desejava ter um branquinho com forração vermelha, a família prestes a ter um desses, adquirido num consórcio. Era o máximo! Ia andar de carro com a família, ótimo, mas queria deixar de ser apenas dona de casa, embora feliz por estar casada com aquele   homem, pelos três filhos, e pertencer à classe média, ainda não de todo esmagada por compromissos a mais e recursos de menos. Uma classe média preste a se extinguir, o que diziam os pessimistas, mas vivia seu auge, e que sairia prestigiada da crise.
                            
                                    ****
Pela terceira ou quarta vez ela passava por ali em direção ao curso noturno de contabilidade, foi quando avistou atrás do balcão o bem apessoado rapaz, olhos azuis da descendência inglesa, a padaria de sua propriedade em vias de fechar as portas. Nem podia imaginar que os dois pudessem um dia estar unidos para sempre. Nem tão separados socialmente, mas quão diferentes, difícil a convivência. O pai da moça, médio comerciante e português, intransigente com a filha que ele almejava ver formada em ciências domésticas, na conceituada Escola Doméstica de Natal, o que seria a educação mais avançada para a mulher no mundo científico, com o dever de cuidar da família. Continuaria seu trabalho dentro do lar, uma mais expedita “mulherzinha”, pondo a grandeza do conhecimento adquirido a serviço exclusivo da procriação. Mãe coroada pela ciência. O destino da mulher cuidar do marido e da prole, cumprido, em parte, pela mãe de Delzuíte, que teve de trabalhar fora, não por gosto, mas necessidade. E chegou a lamentar o desejo da filha, já casada, seguir a carreira de funcionária pública.  Nas aflições (quem não as tem?) ela recorria aos Santos e aos Salmos. Nas missas a mais fervorosa, não por carolice, sempre em seu lar entronizado a imagem dos corações de Jesus e de Maria, que deviam ser os verdadeiros donos. Teve sucesso na condução da família, na educação e amor aos filhos biológicos e da adoção.
                                                    ****
                   
                  Elas nunca apelavam para as lágrimas, pois as virtudes estoica deviam prevalecer sobre qualquer poder advindo do sentimentalismo e seus exageros. A burguesia dera a largada para o progresso econômico, da produção e do consumo, mas teria formado pessoas acomodados e sem maiores arroubos, apenas pacatos partícipes da evolução dos acontecimentos. A classe protestava, dizendo que a exibição era para os burocratas corporativos, em ascensão social, mas a quem se deve o processo de consolidação das instituições. Diderot havia declarado do alto do seu iluminismo: “Tudo deve ser sacudido, sem exceção e sem timidez”. As filhas de diona Dezinha, Célia e Ana, não eram atingidas por aquele iluminismo redivivo, sob forma de feminismo, e bem longe dos arroubos românticos, de sentimentalismo e pessimismo desgastante, desses atuais rebeldes, que infernizam a sociedade de prosperidade e controle burguês. No século XX os comunistas, ao fugirem da ganância da burguesia, caíram na armadilha do poder e ambição dos burocratas comunistas. É a civilização que cria meios de evoluir, e sempre com capacidade de corrigir a rota quando as coisas degeneram.
                                 
                                  ****
                    Cleonice tinha o coração não tão largo quanto o de sua mãe, que parecia abrigar toda a humanidade, indiscriminadamente. Sobre isso a filha refletia que, um coração para agir assim, só tinha uma razão: amar todo mundo para não ter é de amar ninguém em especial, e com isso estaria livre da carga de sofrimento que um tal amor egoísta carrega consigo. Em contrapartida, experimentaria um amor universal. Dona Dedinha apaixonada pelo marido e cuidando muito bem dos filhos, mas parecia querer o impossível para ela e o mundo. Ao sofrer um assalto, não o único em sua vida, disse despreocupada: “Mais tem Deus para dar!”. Para Cleonice a mãe queria se livrar do “vil metal”.  Seria melhor se fosse pobrezinha? E parecia avisar: “Não me peçam nada, não deem nada para mim, não posso fazer nada, sou apenas uma pobre mulher, ou em outras palavras: sou um nada”. A filha menos desprendida que a mãe, e sem toda aquela ambição da amiga Paula, de quem recebeu conselho para escolher uma carreira que desse muito dinheiro. Melhor cada um construir sua vida, realizar um trabalho meritório, com esforço e bom senso, priorizando a boa consciência. 
                                     ****
S. Luis do Maranhão, Rua Rio Branco, que voltou a ser Rua dos Remédios. A filha de dona Carmelita quando passava de bonde via sempre Yeda na janela. O bonde e a vida que não saiam dos trilhos. A aparência excessivamente cuidada da janeleira, sempre sorridente... Ou ela estaria chorando? De um modo geral as mulheres impassíveis, numa premeditada falta de expressão, consumidoras de lingerie de luxo, quando na Europa os sutiãs estavam sendo queimados em praça pública. Yeda ria de que? Podia ser da felicidade por ser mulher. E quando parecia chorar, seria pelo mesmo motivo.  As mulheres com pouco estudo – certamente para não perderem a feminilidade, o que achavam possível de acontecer com aquelas que desenvolvessem alguma atividade cerebral e produtiva, considerada na época inimigas da função reprodutiva. Assim os homens não perderem a ilusão sobre a mulher, e o mundo sempre o mesmo...Mas como haveria de mudar!
                                                      
                                                      ****
 A prima com vinte e três anos estava temerosa de ficar para o caritó, ou seja, encalhada. Era o fim das que não se casavam na época considerada a certa. A mãe de Ilva, pessoa evoluída, amiga, mesmo assim, com indiretas, que a filha mais velha aos vinte e um anos já estava casada, “e muito bem casada”, ponderava. E a mais nova não tardasse em conquistar um bom marido para ter filhos, enquanto para tudo o mais a mulher tinha todo o tempo do mundo, e tinha mesmo. Únicas responsáveis pelo sucesso ou fracasso dos familiares, as mulheres, em sua maioria, vivam uma espécie de zona sombria, tramando a favor de cada um, sempre tentando fazer as coisas acontecerem, e com real influência sobre tudo. Mães sem uma realização profissional, ou escondendo tais ambições, que as novas gerações começavam a almejar. A luta primeira, todavia, vencida por dona Deusa que teve autonomia sobre o próprio corpo, controlando o número de filhos, sendo corriqueiro que as mulheres engravidassem mais de uma dúzia de vezes, quando não morriam antes, os partos um atrás do outro. Pouco se ouvia falar de Simone de Beauvoir para quem a mulher não nascia mulher, se fazia mulher. Lógico que não se pensava em deixar de ser mulher por não casar, nem ter filhos. Hoje se fala abertamente em casamento entre pessoas do mesmo sexo, fazendo pouco caso da família, constituída de pai, mãe e filhos. Amar e procriar era prioridade para a mulher e o homem, que mereciam a compensação de uma vida completa no seio do lar. O compromisso maior com a vida, com a sociedade. Impossível a mutação desses novos “casais” em famílias de verdade, inclusive, com filhos, pois não há como abolir a distinção entre homem e mulher e sua reais funções. Igualar os casais héteros e gays, no que se refere à reprodução, é uma engenharia social que beira a aberração, e uma simples lei civil não pode consolidar. Ideologia libertária absurda para reascender a chama do marxismo, anarquismo, e outros ismos, mas que coloca lenha na fogueira do terrorismo. Ou são apenas velas acesas para os mortos, inclusive, para a família?                           

segunda-feira, 8 de abril de 2013


                                        CONVERSA AFINADA
                      
Somos um Estado laico. Mas as ideias se entrecruzam e devem ser debatidas com todos os membros da sociedade, crentes ou não. Isso é democracia! A seguir o pensamento de duas grandes autoridades religiosas sobres assuntos polêmicos, como ateísmo, união homossexual, aborto, entre outros.      
                  
                              


  
          Antes de se tornar papa com o significativo nome de Francisco, o arcebispo de Buenos Aires, Jorge Bergoglio, manteve encontros sistemáticos com o rabino Abraham Skorka, quando então as duas maiores autoridades religiosas da Argentina trocaram ideias, dialogaram, sobre os assuntos que atualmente causam grande polêmica, como o ateísmo, celibato dos padres católicos, homossexualismo, aborto e divórcio. Avaliaram conjuntamente a liberdade moderna sob a luz das crenças que eles representam, o catolicismo e o judaísmo. A revista Veja publicou trechos dessas conversas, publicados no livro Sobre o Céu e a Terra, dos quais fiz um resumo.
         ATEÍSMO- Uma das questões mais graves para a igreja católica é o ateísmo que Jorge Bergoglio diz ser uma questão de honestidade, ou não, de quem se diz ateu, ou apenas agnóstico. Melhor observar as virtudes humanas dessas pessoas e não condená-las, afinal todo homem é imagem de Deus, seja crente ou não. O agnóstico mais coerente com essa condição, pois a fé merece que as pessoas sejam coerentes, duvidando em vez de serem categóricas. Quanto ao rabino Abraham Skorka, ele é mais duro com o ateu que acredita ser uma pessoa arrogante, assim como aquele que diz ter certeza da existência de Deus. Ter fé em Deus não obriga a que se deva provar que Ele exista, o que seria impossível, como é impossível assegurar que Deus não existe.    
   UNIÃO HOMOSSEXUAL- Para Skorka o casamento entre pessoas do mesmo sexo se enquadra numa figura jurídica nova, e não se trata de uma questão de crença mas de cultura. Em primeiro lugar ter consciência da disparidade que existe entre o casal homossexual e o heterossexual.  A lei judaica é clara, a relação sexual ideal para o ser humano é entre um homem e uma mulher, base do processo civilizatório, que tem base antropológica e a nova lei (o casamento homossexual aprovado na Argentina) não convence o rabino, que aconselha, todavia, o respeito à intimidade das pessoas. Para Brgoglio temos que falar muito claro nos valores, nos limite, nos mandamentos de Deus. Do ponto de vista sociológico e antropológico, não é uma boa coisa equiparar a união homossexual com aquele entre um homem e uma mulher que tem base na condição natural do ser humano.
ABORTO-  O direito à vida é o primeiro dos direitos humanos, do qual Bergoglio não abre mão. Abortar é matar quem não tem condição de se defender, e ponto final. Em nenhuma circunstância a igreja católica aceita o aborto. Skorka fala que, por mais que seja de início apenas uma célula, ela vai se desenvolver para que surja um ser humano, o que não pode ser interrompido sob pena de se faltar com o respeito pela vida. Mas no judaísmo é permitido à mãe abortar quando sua própria vida corre risco e em outras situações em que a lei permita.
CULPA- Sentir culpa é normal desde que haja uma transgressão e se precisa pedir perdão, não para suprir um sentimento religioso, o acontece com algumas pessoas, que precisam viver em culpa, são “culpogênicas”. Transformam o encontro com a misericórdia de Deus em algo como ir à tinturaria para tirar a mancha de uma roupa, degrada as coisas.  Skorka cita a mãe “culpogênica” na cultura hebraica. A essência da concepção judaico-cristã é acontecer uma mudança íntima após a transgressão, seguida do arrependimento. E não voltar a cometer o mesmo erro.

quarta-feira, 3 de abril de 2013


 VEJAM  ESSAS MANGAS!



A Lição de Música é um quadro surpreendente pela modernidade. Apresenta uma jovem de pé a dedilhar um piano, enquanto mira a própria imagem no espelho de dimensão invulgar para a época, fabricado apenas em Veneza detentora da especialíssima técnica. Outros objetos de valor estão ali expostos, para serem negociados ou fazem parte da coleção particular de alguma família abastada. Trata-se de um membro da elite comercial, a fortuna que ela possui e o foco dos seus desejos. No tampo do piano uma frase sintomática: Musica Laetitiae Comes Medicina Dolorum (Música Companheira da Alegria e Bálsamo para o Sofrimento). A elegante veste da jovem com mangas que dão ilusão de asas preste a alçar voo, um estilo de roupa que, em 1678, mereceu uma nota ao pé de uma gravura: “Vejam essas mangas, posso assegurar que nunca houve mangas como essa ante”, o que anunciava o famoso comentarista de moda  Donneau de Vise. À época, difunde-se a crença nos anjos, ou nos sentidos que criam asas através da música. Também o sonho moderno de consumo de bens para satisfação pessoal.
A busca pela riqueza e realização de cada um individualmente, acontecia na recém-criada República protestante. A mulher educada, instruída, com segurança financeira, estaria apta a realizar melhorias no plano social. Por estar de pé no quadro, ela finge interpretar uma música, acompanhada por um mestre, ou o próprio artesão do instrumento musical e seu vendedor, apoiado numa bengala, os dois personagens estrategicamente colocados no fundo da sala. Um terço da cena tomado pelos objetos agrupados à frente, alicerce da vida financeira das cidades urbanas, que se modernizam. São produtos do trabalho contínuo, competente, com que os comerciantes ganham dinheiro e as famílias conceito ao negociar, ou possuir em casa, o que fabricam os artesãos, em suas várias especialidades. Aposta-se no comércio e no intercâmbio material e cultural entre as nações, propiciador da consciência burguesa. Sólidos burgueses, cultores de valores espirituais, para que os bens materiais amealhados não levem ao egoísmo, à ambição desmedida, mas se tenha reais interesses pelo mundo.
O trabalho artístico e artesanal de objetos de consumo com valor intrínseco e conceito. A dialética burguesa ao lado da dialética das coisas. Os objetos com sentido abstrato embutido, além do que eles representam como arte. Utilitários   do comércio, também fontes da transcendência. Para Espinosa “a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas.”  A cadeira que aparece nesse quadro de Vermeer era objeto que merecia cartas decantando suas qualidades.  Por estar vazia e voltada para o expectador, diz que a atenção deve se dirigir ao objeto de consumo ali exposto. A arte como veículo de propaganda, principalmente, no desejo de chamar atenção para os comportamentos, sujeito à admiração ou censura, estando em curso a evolução da sociedade, a liberdade.
O que sabemos dessa mulher do passado, não tão distante de nós, a dedilhar um instrumento musical? A felicidade real ou imaginária que ela busca, bem como outras mulheres nos quadros de Vermeer, ainda é a nossa, na superação das adversidades, para não sermos vítimas do destino. O processo de emancipação e realização concentrado em grandes ambições, mas que pode, de súbito, se transformar em equívoco, no dizer de Ronaldo Lima Lins em seu livro A Indiferença pós-Moderna, para quem o equívoco do caráter da fé no amor, ou do romantismo, já estava sendo preparado no século XVII, do amor na fé, que estaria figurado na imagem tosca da vidraça em outro quadro de Vermeer. Emma Bovary de Flaubert, na ânsia de atender aos seus desejos, por querer demais satisfazê-los, caminha para a ruína. Os excessos da personagem Emma, ou do próprio autor da obra literária que, na ânsia de desejo de sucesso, pode se perder, e chegar mesmo à prisão, como aconteceu com o célebre francês. E sabemos muito bem que grandes vitórias e grandes prazeres podem não trazer felicidade e aprisionar a alma. Como calvinista, Vermeer parece avisar da importância do bem material, que está à frente do palco da vida, desde que reservado o melhor papel ao espiritual.
O quanto de mal pode provocar o excesso ou escassez. O quanto pode nos afetar negativamente se não temos desejos, ou se os temos muito intensos. Muito confiar não nos fortalece, assim acontece se perdemos de todo a confiança. A força que ganha o mundo com a moderna liberdade de ação, mas faz com que se corra graves perigos.  Na pós-modernidade pode acontecer o desastre de se querer saciar desejos sem limitação e sem o real interesse pela vida. Instalada a desagregação, perde a família, a sociedade o mundo como um todo. Os excessos do mundo contemporâneos, como no passado romântico, podem fazer o mundo sucumbir outra vez à barbárie. No século XVII Vermeer pinta seus belos quadros do barroco alegórico, mensageiro da paz e da prosperidade. Quase na mesma época Leibniz fala no melhor dos mundos possíveis. Hoje temos apenas o possível. Ou já chegamos ao impossível?