sábado, 31 de agosto de 2019




CONTO



                                  VITAMINA E AFETO NA REFEIÇÃO



  


Ester se pôs de pé e abraçou a irmã antes de lhe falar:

— Sinto muito, Maria. Eu devia ter pensado melhor sobre tua situação, ser mais solidária e ajudado mais. Sinto muitíssimo!

— Ainda bem que não te ocorreu nada disso. Eu tinha que aprender a suportar com coragem aqueles momentos difíceis. Não estava doente nem nada, era só enfrentar a separação com a cabeça erguida, daí me afastei um pouco para assimilar melhor a situação. Mas de todo jeito já passou. Você também, Ester, passou por um momento difícil no trabalho, o que eu soube, e se saiu muito bem. Felizmente você tem o Paulo para sua segurança. Agora é seguirmos em frente com a vida e nossa amizade.

Maria afastou-se um pouco, foi até a janela, era a mais velha, sentia algo de novo em suas vidas, estiverem as duas algum tempo afastadas, voltavam a  se ver. Observou o céu de Brasília, que coloria de forma especial a cidade, banhada por uma breve chuva de fim de verão. Esperava a filha chegar para o encontro de fim de tarde na casa da mãe. Nívea só podia comparecer às quintas-feiras. Escutou a irmã chamar:

-- Maria, venha para a mesa, como você sabe é hora da famosa sopa. A mãe já colocou a sopeira na mesa e está sentada com o pai à espera dos filhos, ansiosa para ver todos juntos.

— Zeca ainda não chegou? Ele com a mulher e as gêmeas já deviam ter chegado, não?

Chega o irmão do meio, antes havia passado na confeitaria, trás pães, bolos e docinhos, como sempre faz para agradar a família. Colocou as compras sobre a mesa e comunicou que a mulher e as filhas iam demorar um pouco. Pegou o prato para se servir.

As sopas dos fins  de semana na casa a mãe eram receitas da avó, vindo de geração a geração, tendo o aipo como ingrediente indispensável, sem faltar o tempero principal, o amor. Vitamina e afeto na refeição do fim do dia, a família  reunida,  quando todos aproveitando para trocar ideias, abordar os assuntos do momento. Evitavam falar de política, e também da vida alheia, como se fossem neutros nesses assuntos. Nívea acabara de chegar e já estava saboreando sua porção de alimento e afeto.

Ester olha para o centro da mesa e diz:

— A sopeira da mamãe fez-me lembrar o caldeirão da bruxa das histórias vindas da Idade Média. Pode começar a falar, mãe, já que é expert no assunto comida e bruxaria.

Dona Diva, a mãe, não se fez de rogada:

— Parece que os filhos adivinham o que os pais pensam, e vice-versa. É isso aí, estamos sentados em volta de uma sopeira de porcelana, se fosse no passado seria um caldeirão de ferro, e tem o caldeirão da bruxa. Essa sopeira não tem mistério algum, apenas contém uma mistura de ingredientes, que faz o alimento  ser tão saboroso e por demais substancioso. Não há bruxaria, nem magia, que possa competir com o poder dos produtos  frescos e saudáveis, com as vitaminas certas para alimentar o corpo. Ainda mais  feitos com dedicação e amor, que alimentam  a alma, assim com o afeto entre os aqui presentes.

A mulher e as filhas menores do Zeca tinham acabado de chegar. Depois que se serviram, os outros voltaram a repetir mais uma porção da sopa, e suprir ainda mais a alma do afeto da família. Os doces muito apreciados,  Maria agradecendo a atenção do irmão, que costumava percorrer os vários locais onde pudesse encontrar novidade, para surpreender os familiares.

Falar em eternidade é dizer das sopas de dona Diva, servidas com carinho e amor na Ceia em sua casa.  



quarta-feira, 28 de agosto de 2019






conto


                      AINDA ONTEM






Aquele olhar, o que queria dizer? Eulália a se perguntar sobre aquele marido que mirava sua mulher com se a estranhasse, foi o que lhe ocorreu na ocasião. No fundo dava para simpatizar com eles, pareciam recém-casados, estavam sentados  a sua frente. Afinal, o quanto se sabe sobre essa ou aquela pessoa, mesmo aquelas com quem convivemos? Pensando assim, Eulália enche-se de esperança, que tudo ia sair bem para aqueles dois. Passaram-se os anos e ela continuava  a pensar na moça sorridente e feliz ao lado do rapaz, ele talvez a se questionar se ambos tinham ao seu lado a pessoa certa. Estavam numa festa, e pelo que Eulália percebeu, a jovem esposa, por intuição e até mesmo por sua credulidade feminina, acreditava que os dois foram feitos um para o outro. Seu marido é que parecia estar menos confiante na vida que ora iniciavam, o futuro em aberto para ele e suas conquistas. Já a realização da mulher ficava por conta da felicidade familiar, então vigente.

Firme o chão que então se pisava, tanto para o casal, quanto para  Eulália,  que já chegava aos trinta anos e ainda solteira, mesmo assim cheia de esperança no futuro, plena de fé no casamento. E sendo assim, naquele dia viu a sua frente uma futura mãe corajosa, que acreditava no passo que dava, sem qualquer imposição pessoal ou de fora. Tudo haveria de correr como devia ser, sem qualquer ressentimento da parte da mulher para com o homem e seu machismo, contra o que as feministas começavam a protestar, não aquela ali. Só estava intrigada com aquele olhar de medo, quase sádico, do marido em direção a sua tranquila e segura mulher. Mas eleó sabia que ela não era nem uma Poliana nem uma Malévola

Eram dois jovens indefesos, predestinados, que inconscientemente pressentiam de forma diferente a salvação, ou a perdição, vinda do futuro. E Eulália não podia adivinhar o que ia realmente acontecer, seria o mesmo que prever um final  para história ainda não escrita. Eles não estavam terminando alguma coisa, mas no começo de suas vidas, inteiramente novas, o que é bem diferente. É o modo correto de expressar a situação. Só mais tarde é que se pode ver tudo com nitidez. De repente o culpado pode se transformar em inocente e o inocente em culpado.  Às vezes nunca se fica sabendo se há culpado ou o inocente.

O certo é que o inocente não deve sofrer. O quanto é grave deixar de levar em consideração as questões ou implicações que podem minar, ou destruir as relação familiares. Mas o que não se deve  é  antecipar o que pode acontecer. É temerário querer especular. As coisas mudam de um momento para outro, o que pode ser alarmante. Muitos segredos  há para serem revelados, quase  uma trama policial.  É terrível que ninguém saiba identificar o erro, para evitar, emendar, corrigi-lo. Os olhares trocados,  os silêncios, a suspeita corroendo as relações familiares, levando à destruição do amor e da confiança. Parece exagero falar assim, mas não é.

Eulália não podia julgar aqueles dois naquele momento. Até podia imaginar o casal no futuro confessando um ao outro: ele suas dúvidas passadas, ela suas certezas. O sucesso daquela relação, ou fracasso, naquele momento. Mas a preocupação do homem e a confiança da mulher resultou no fiel da balança. De repente a paz, o o que eles  mais queriam, e gozar o futuro que ainda lhes restava, depois do dever cumprido traz. Os filhos criados e bem encaminhados. Confortavelmente instalados, se estivessem em outro lugar, o sentimento seria o mesmo, basta que tenham sido corajosos parceiros no amor e em muitas conquistas.

sábado, 24 de agosto de 2019







                     
                HISTÓRICA S. LUÍS do MARANHÃO









           O livro Estas Histórias, de Guimarães Rosa, foi publicado postumamente pela filha do escritor, após sua morte por infarto aos 69 anos. Com grande emoção a também escritora Vilma Guimarães Rosa fez a apresentação da obra, à guisa de prefácio, com o significativo título Apenas Saudade, para que o público leitor pudesse apreciar mais uma vez as histórias e especial linguagem de um dos maiores escritores brasileiros. Trata-se de um conjunto de novelas, ou contos longos, que inicia com  A Simples e Exata Estória do Burrinho do Comandante, que   acontece  quando uma pequena embarcação inglesa, Amazonas, aporta em S. Luís, capital do Maranhão, lá permanecendo por dois anos, na década de 20 do século passado. O Burrinho, era o mascote do Comandante, que guardava o retrato da figura do animal, descrita como “enfeite, feito por pessoas do terreiro, brinquedo, indígena na poesia...guardava além do mais, a paradoxal aura de inteligência peculiar dos burrinhos"...O Comandante tirou de una gaveta para mostrar ao ouvinte, antes de começar a contar sua história.

           “Deitamos  amarras”, fala o Comandante em sua narrativa, e continua: “Dali do meu navio, eu contemplava, acolá da muralha, casas e coqueiros a cidade em dois níveis. Em algum trecho do porto, na baia, em outros coloniais tempos o cais se chamava Cais do Desterro”. A certa altura pergunta o Comandante ao seu interlocutor, ou o leitor: Conhece S. Luís? E ele mesmo responde: “É antiga, tresanda a decorosas famagorias, e grava com um relento de torpor o passado, não obstante a certa e simpática veemência de seus habitantes. Achei-lhe encantos. A cidade estimável, com suas ruas desenvolvidas de distortas, de várias ladeiras, as ricas igrejas de repente vetustas, diz-se que são entre si ligadas por subterrâneos cheios de morcegos...Os sobrados centenários imensas quadras desses, sobradões de dois ou três andares, mansões  de beirais salientes, balcões com grades de ferro bem trabalhadas, mirantes.  E azulejos, azulejos, por vezes se estendem até as cimalhas; depoentes aspectos... S. Luís tem águas por todos os lados. Os rios são o Bacanga e o Anil”.

             Palavras do narrador, o Comandante : “Estive em S. Luís do Maranhão porque a Coluna Prestes andava operando seus rebuliços por dentro do Piauí, apalpando a arpéu os governos dos dois Estados. A ameaça era estudável... No Norte, política foi sempre mar perigoso; política e tudo o mais, há quem diga...Digo que, a bom seguro, o qualquer engano se resolveu, e corrigido e correto, por toda a minha missão e estadia, como pelas cartas do Almirante inglês... Despedidas e abraços. Apreciei bem aquela cidade de S. Luís do Maranhão, de sobrados de azulejos e singulares ruas, de muita poesia. Tocava uma banda de música — as retumbantes marchas — e já para trás... Ao mar o Comandante retornou, do mesmo mar de onde veio o burrinho: “O burrinho para mim veio do mar, segundo o sutil da vida, coisa caligráfica...Ainda hoje, quando penso nele, me animo das aragens do largo. Apareceu-me num dia vivido demais, quase imaginado...”