GALERIA VERMEER




          AS CARTAS E MAIS








A devoção da noviça que olha para o vitral da janela no quadro Mulher com um Vaso de Prata é certo que representa a fé católica. E o vaso que ela segura contém a água do batismo. Nos conventos era para onde iam muitas mulheres procurando abrigo por sua fé. Ou para fugirem do assédio sexual e moral, além da pobreza material. Recolhem-se, pois, por vocação ou com a esperança de uma vida melhor, menos cruel. Mas  dentro da sociedade reformada, onde se exige postura ética acima de tudo, o sonho dessa mulher naquele momento é de liberdade individual. É também tempo da fé missionária sair fora dos limites da clausura.








Processo novo a mulher fazer cálculos dos seus negócios, e a carta que ela escreve no  quadro Mulher Escrevendo uma Carta seria uma carta comercial. Trata-se de uma figura de posição elevada, nobre ou da emergente burguesia. O poder econômico vai acabar por mexer com a estratificação social, que não mais será determinada pelo nascimento e, sim, de acordo com os valores que possui. O valor que passa a ter o trabalho, inclusive, feminino. Acima de tudo a educação, dada as filhas da classe burguesa, que passa a gozar de igual condição da aristocracia, em termos de respeitabilidade. 







Muitas são as ofertas de prazer e satisfação dos desejos, mas, o que se procura, em princípio, é a promoção da vida humana. Locke ( 1632-1704) prega os direitos que todos têm desde o nascimento. E quão extraordinária é a ideia do acordo do poder da classe empregadora com a trabalhadora no quadro Senhora e a Criada. Sendo assim, a carta que a criada traz à mão seria uma mensagem de seus direitos. Direitos para as mulheres que trabalham em casa, ou nas oficinas, mas são exploradas, além de sofrerem assédio sexual. O acordo de cooperação e paz entre as pessoas; entre homem e mulher, como também entre as religiões, sugerido nas pinturas do progressista Vermeer.






       No Norte europeu, por sua natureza nebulosa, eram sombrios os interesses territoriais, comerciais, sexuais, em que o prazer se alia ao sucesso, ao lucro. Época pós-dogmática, pós-medieval, e até pós-cristã, como na nossa pós-modernidade,   quando o mundo tende a se tornar um tanto cínico, o que vemos no quadro A Cafetina. Vermeer, todavia, mais crítico que cínico, abraça a causa feminina, dentro das novas perspectivas de vida, tendo como paradigmas a ética protestante e a lógica jesuítica. Muitas são as ofertas de prazer e satisfação dos desejos, mas, o que se procura, em princípio, é a promoção da vida humana. Locke (1632-1704) prega os direitos que todos têm desde o nascimento; Espinosa (1632-1677) defende a tolerância; Hobbes(1588-1679) é pelo egoísmo.





       O solo conquistado das águas e o espírito religioso-protestante do povo holandês são propícios a uma vida intelectualmente rica e produtiva, quando então se requer das mulheres o espírito firme e que elas se instruam para que possam atuar como profissionais. A Rendilheira, quadro mais valorizado de Vermeer, tem a imagem de uma moça com a atenção voltada para seu trabalho de tecer. Ela está vestida e penteada de acordo com a classe média e suas respectivas alegorias. Essa figura forma par com A Leiteira, trabalhadora do povo, em ambiente sóbrio, suas vestes despojadas de qualquer luxo, tendo a cabeça coberta com simplicidade. Em ambos os quadros o que se destaca é a expressão de dignidade daquelas que realizam algo importante para a sociedade e para elas próprias em seu trabalho. Sobriedade e sensatez típicas da sociedade burguesa e calvinista, as mulheres menos vulneráveis ao assédio de qualquer ordem.




É exposto nos quadros de Vermeer o que a Holanda produz para ser comercializado, juntamente com o que importa de outras partes do mundo. No Ateliê do Pintor a modelo veste um moderno tafetá, no que se refere à produção europeias, enquanto sobre uma mesa cai uma cascata de seda  chinesa. A mesma seda do turbante da moça no quadro A Moça de Turbante, que também exibe um imenso brinco de pérola, amostra da riqueza importada do Oriente. O mundo globalizado, em extraordinário e intenso comércio de importação, exportação e exploração, tanto de produtos, quanto de conhecimento, também de muita superstições. A Europa em processo de absorção cultural e de sofisticação dos costumes





Expostos nos quadros de Vermeer os bens de consumo que encantam uma sociedade afeita ao deslumbramento e ao êxtase. O humanismo barroco centrado no amor, na sexualidade, doces regalos, o que sugere o fruto que submerge no cálice de desejos da mulher no quadro Mulher Adormecida à Mesa. A figura feminina sentada diante de uma mesa repleta de artigos para o consumo e comercialização. Ela estaria adormecida após uma orgia, ou labuta diária no comércio. A crença passa a ser o lucro e no sucesso material e o dinheiro  colocado no centro dos interesses, pois com ele se poderia comprar tudo. Eros também se manifesta no sonho daquela individualidade, sob a égide da mente criativa, com possibilidade de uma vida mais livre e menos amarga, o que sugere a porta aberta.




Diante das realizações humanas, o didático pintor aponta para o equilíbrio no quadro A Mulher da Balança. O equilíbrio que deve haver entre paganismo e cristianismo, pois não resta dúvida que a mulher, com olhar e postura dignos, trata-se da priora da algum mosteiro medieval em Delft. Em Delft, como em Delfo, Tebas e Argo, a vida que oscila entre o dionisíaco e o apolíneo, que anda na corda bamba do órfico encantamento. No chamado Grande Século, a experiência de vida beira o excepcional, assim como também excepcional é o nosso agitado e permissivo mundo contemporâneo. Diz Aristóteles que há personagens que perseguem um fim nobre e outras de “mimese inferior”. O catolicismo contra reformista desdobrado em três modelos: o jesuitismo das Missões; o misticismo, que envolve algumas poucas ordens religiosas, e o jansenismo, embebido de calvinismo, contra a mística, são temáticas expostas nos quadros  de Vermeer.




O saber tende a virar cinzas no fogo das paixões mundanas e das guerras, inclusive, de vaidades, o que representa a escuridão da casa no quadro Rua de Delft. A casa parece assombrada, metáfora para o mundo romano, ainda não reformado e nada progressista. Quando para o piedoso e progressista Vermeer a vida devia ser calcada na ética protestante, fonte de riqueza e liberdade para o ser humano. A sociedade que avança, sim, mas às vezes retrocede, e que no século XIX Charles Dickens e Gustavo Flaubert a discreveram com cruel realismo, dois escritores impiedosos para com o progresso material, que seria usurpador da vida em sua essência.





No quadro Vista de Delft, a cidade renascentista e decadente é vista de longe, sua rara  beleza idealizada e construída por sábios arquitetos, hábeis artífices. Sem esquecer o legado dos santos que moldaram as almas, e de certo modo contribuíram para uma arte específica de viver. A imponente catedral ao centro do quadro diz da força moral, da cultura, que forjou a civilização que então se formou. A ignorância e a miséria a ser combatida com o conhecimento, a comunicação, a liberdade, a produção de bens. A ética protestante reformista favorável ao capitalismo incipiente, desde que a vida espiritual fosse preservada, responsável pela moral e os bons costumes, consequentemente por uma vida menos amarga e mais feliz.

















     
               OLHARES FEMININOS         

             

            

      A burguesia teve início a partir do século XVII, mas consolidou-se no século seguinte, quando então seus membros a partir de 1789 receberam o título de “burgueses”. A alta, média e baixa burguesia com mobilidade entre si, de acordo com as posses,  as quais Vermeer retrata em suas pinturas, assim como figuras femininas da nobreza e da classe trabalhadora. O mundo moderno abre espaço para novas classes e para o feminino. Algumas moças têm o olhar marcado pela desconfiança diante das ofertas, dúbias, ou claramente comprometedoras, que lhe fazem. No quadro Mulher e Dois Homens uma burguesa, ou nobre decadente, bem vestida e confortavelmente sentada, volta seu olhar para fora da cena,  desconfiada da oferta de um sedutor, para que beba o vinho, não da santa  Eucaristia, mas do prazer. Diferente o olhar de segurança da outra moça no quadro Mulher Escrevendo, uma jovem da nobreza, que está diante de sua escrivaninha,  com a pena na mão, para  observar a cena, vendo-se ali uma herdeira ao poder e saber.

           

 
MULHER ESCREVENDO
 






 
MULHER E DOIS HOMENS










                  E quão maduro e simpático é o olhar feminino que vemos no quadro A Mulher e o Soldado, uma simples taberneira que oferece vinho ao nobre frequentador de sua taberna, comércio rendoso. Já no quadro Mulher Adormecida à Mesa a moça tem os olhos fechados, certamente a sonhar com o amor e o progresso, por trás de uma mesa com alguns produtos de consumo. Quanto à trabalhadora dos ofícios no quadro A Leiteira a atenção da moça está voltada para o trabalho, pois o que se exige dela é eficiência. Representações das mulheres nos tempos modernos que iniciam, sem que se saiba aonde vão dar. Mas o que se destaca em Vermeer são os direitos humanos, em qualquer nível social a que pertença a mulher, e que sejam reconhecidos publicamente, inclusive, o direito de denunciar abusos.

           





 
 
 





A LEITEIRA



            Sabe-se do vasto mundo, amplia-se o campo das ideias, e se passa a acreditar na liberalidade dos costumes de Erasmo; no “egoísmo propulsor das ações humanas” de Hobbes; no “sentimento moral” do cético Hume; na força da simpatia de Plotino; na lei natural de igualdade para todos de Locke; no “mundo possível” de Leibniz;  na scientia intuitiva de Espinosa. O mundo impregnado, pois, de ideias, vive grandes transformações na política, na religião, nas finanças, nos costumes. No que diz respeito ao conhecimento racional dos gregos, faz-se apologia do epicurismo, que prega o prazer como um bem, assim como a defesa do estoicismo, para que se viva segundo regras rígidas. O ceticismo também entra no jogo. O impulso que a filosofia dá ao pensamento no mundo, que se desloca da transcendência (teocentrismo) para a imanência (antropologia naturalista), abandonada a apologia do sofrimento, que deve ceder lugar ao prazer, não só do espírito, mas do corpo.


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                O CONCERTO







               Nos grandes burgos medievais a sociedade fica mais liberal, diferente do que acontecia com a vida das pessoas no campo. A mudança vai beneficiar, em especial, as mulheres, que passam a exercitar seus pendores no sentido de interagir, comunicar-se, em suma ter vida social e cultural. O novo comportamento feminino  no exercício da ,leitura, da escrita, das artes e ofícios, frutos de uma  sociedade liberal, presente nos quadros de Vermeer. No quadro O Concerto duas jovens, certamente da burguesia próspera,  tomam aula de música e canto com um mestre encarregado de ensiná-las. Ele está sentado de costas, o rosto oculto para quem de fora observa a cena, um mestre, ou maestro, tendo a sua esquerda uma das moças sentada ao piano, enquanto, à direita dele, a outra moça, de pé, canta o que lê no folheto em nas mãos. Lembra a passagem bíblica do mestre de Nazaré em visita à casa de Marta e Maria.


               Como pano de fundo da cena na sala de concerto estão duas telas penduradas na parede, quadros dentro do quadro. Assim como há uma terceira pintura no tampo do piano. A  que tem a natureza como tema, o tom é sombrio, com o céu ocupando apenas um terço da pintura, em azul e branco. Na outra pintura a sensualidade se faz presente no esboço de A Alcoviteira pintada por Dick van Baburen, pertencente à sogra do pintor. O selvagem e o sensual típicos da imaginação teutônica. O bem e o mal que há por trás da arte. A conotação benfazeja dada à música e ao canto, certamente religioso, como meios de exorciza os demônios. Para o orfismo o herói foi o primeiro homem a receber a revelação de certos mistérios divinos, e os teria transmitido a alguns iniciados sob a forma de poemas musicais. Eram cantos pungentes e harmoniosos capazes de emocionar as divindades subterrâneas, iluminar as almas penadas.


               A primeira obra lírica completa em teatros europeus foi “O Orfeu”, de Cláudio Monteverdi (1607), inspirada no mito de Orfeu. O mundo moderno tem início no século XVII, com a esperança de superação para os males da época, pleno de superstições de toda ordem, debeladas que seriam através do conhecimento racional, das ciências, das artes e ofícios. Decorreu do esforço de cada um, em particular, e a capacidade da coletividade interagir com o próximo e em sociedade. A arte barroca aliada da música e do canto, como expressões artísticas para elevação das consciências. As artes aliadas às melhores técnicas, aos sábios conceitos, para enfrentar percalços, amenizar dores, até mesmo exorcizar demônios. A imaginação teutônica apenas um quadro na parede do Concerto, mas que retorna na música selvagem e apoteótica de Wagner, e acabou por servir de propaganda nazista.




























 MÚSICA   -   EDUCAÇÃO DA ALMA -VERMEER

         

         No quadro  A Tocadora de Alaúde o tema central é a música, Orfeu em substituição a Dionísio. Uma figura feminina, em posição artística, toca seu instrumento musical, com um quadro por trás da personagem, a nos informar sobre o mundo em que vive. É uma bucólica paisagem, início da moda dos quadros, em vez de painéis pintados na parede, do nacionalismo republicano, quando a maioria das pessoas viviam no campo, no seio da família, ou dentro do convento, onde recebem as primeiras instruções. Na vida urbana mente e espírito que se equipam para promover a vida na socialização, através da música e do conhecimento científico e da técnica. As filhas da nobreza e da alta burguesia recebem educação, principalmente, para se darem bem em suas conquistas, na época fisgar um marido ou amante poderoso. Importava cultivar a arte do bom gosto, para as luzes dos salões.  Ao lado da tocadora de alaúde, um livro impresso com a capa vermelha está sobre um volume mais velho, certamente um manuscrito. Seria para mantê-lo fechado? E se evite abrir essa caixa de Pandora que é o saber primitivo, mágico?  Com o descobrimento do Nosso Mundo e o comércio em terras distantes, propaga-se a ideia do paraíso terreno, e toda a magia nele existente, o que também acontecia através do consumismo. O livro vermelho seria A Lgenda Áurea, onde o autor conta histórias sobre os santos e mártires.  



                  

           
          
         No quadro A Tocadora de Viola em vez do cenário bucólico do quadro anterior, um mapa na parede diz respeito a terras distantes, cobiçadas pelos europeus, num contexto de vida em que a música tem papel relevante, libertar as pessoas. Assim acontece com a fé em ação social. A janela semiaberta   para a dona de pendores artísticos, cujo rosto nós outros temos dificuldade em interpretar. O olhar curioso da donzela direcionado para além da janela, como a refletir o futuro dela e o nosso. Mundo afeito ao progresso social, que vem na contramão das conquistas territoriais e afins. A República holandesa, ainda incipiente, ruralista, nacionalista, sob a égide da mãe natureza, entre o selvagem e o cultivado, quando não se deve ir muito longe e ser preza do inimigo, o caso dessa jovem. Na mitologia, uma donzela encontra-se sob o poder de Ártemis, a deusa caçadora do arco e da flecha, trocados em Vermeer pela simpática viola, ou a flauta do deus Pã, dos antigos ritos de iniciação ou socialização. A arte da caça sujeita a obrigações e proibições, forma de se adquirir identidade como pessoa antes da noção de cidadania, anterior à vida urbana e à educação através da leitura e da escrita. Mente e espírito que se equipam para promover a vida na socialização, através da música e do conhecimento, da técnica.  Os antigos gregos consideravam Música como toda atividade, todas as artes. A vida que frutifica, tendo como limite a própria natureza humana, e que se evite a degradação dos costumes, que pode apodrecer a civilização. Crianças educadas, jovens bem orientados para uma vida saudável e feliz. Futuros musicistas, leitores, escritores, ao abrigo das divindades, ou sob o poder de um único Deus, seguindo os avanços científicos, psicológicos.


          
              

        O quadro Senhora de Pé ao Virginal o que nos vem à mente é a bíblica Ester  uma possível noiva, ou recém-casada, que dedilha seu moderno instrumento musical. Ela olha para alguém a sua frente, não para fora do seu ambiente, como nos quadros anteriores, parece pedir que alguém capacitado lhe julgue a atitude amorosa e cultural. Homero diz sem rodeios: “Eu busco sua simpatia com a minha canção.” A poesia e a música entram em cena para favorecer os sentidos, o que diz a figura do cupido na parede, por trás da cabeça dessa mulher, e dá sentido profano à cena. O mensageiro matrimonial tem nas mãos, além da seta renascentista, uma carta. Vermeer recorre ao mitológico, ao histórico, ao paganismo, em suma, para revelar a beleza e harmonia da vida, seguindo o ideal de liberdade numa sociedade aristocrática, que convive em paz com a burguesia, classes responsáveis pela tradição, a primeira, pelo o progresso da produção e comércio, a segunda. A música grande aliada da alegria, do prazer, quando então se abandona a ideia do juízo final da Igreja inquisitorial e dos martírios, comparáveis às descidas aos subterrâneos da alma através das lutas tribais e outros cruéis embates. Irracionalidade, terror, que é melhor deixar para trás, desprezar, para que o ser humano evolua, tenha uma vivência rica de experiências felizes. Na Alemanha de Lutero (1483-1546) a fé protestante se expressa através da música, com o divino Johann Sebastian Bach (1685-1750). Também a música de Richard Wagner (1813-1883), que fala da alma alemã em sua apoteose, mas acaba servindo aos horrores do social-nacionalismo de Adolf Hitler (1889-1945), paradoxo que a música também promove. Atualmente temos a barulhenta música, dita pauleira, de enlouquecedora performance, que alia estridência às drogas, tira do prumo, afasta a pessoa de si mesma, num retorno ao pior de cada um, espécie de descida ao inferno, de onde pode não mais sair. Mas um bom Rock serviria para os jovens descarregarem as energias, os festivais a cooptarem multidão de adeptos e simpatizantes.




          

           No contexto cultural urbano, evoluído, as pessoas se agregam em sintonia, como num concerto, o caso duas jovens que participam da aula de música e canto com um mestre, no quadro O Concerto.  A primeira obra lírica completa em teatros europeus, foi “O Orfeu” de Cláudio Monteverdi (1607), inspirada no mito de Orfeu. Para o orfismo, a revelação de certos mistérios divinos foi concedido a alguns iniciados sob a forma de poemas musicais. Eram cantos pungentes e harmoniosos para emocionar as divindades subterrâneas, iluminar as almas penadas. A arte, a música, a pintura, expressões do esforço humano para atravessar as trevas desagregadoras da irracionalidade. No quadro, o mestre está sentado de costas, com o rosto oculto ao observador da sua lição, e de frente a duas telas na parede da sala, dando sentido dúbio à cena. Uma delas tem vegetação escura, selvagem, com apenas um terço do céu azul; a outra é um esboço de A Alcoviteira pintada por Dick van Baburen, que pertencia à sogra de Vermeer. Ambas expressam a natureza ás vezes obscura da arte, de certas atuações musicais, como acontece a qualquer produção que explora o inconsciente, o sensual, e pode trazer inquietação à alma - caso da apoteótica e extraordinária música de Wagner, da qual o nazismo se apossou para utilizá-la como propaganda. Acontecia a decadência dos costumes, o declínio do amor e da moral. Da caixa de Pandora, ou da moderna caixa acústica, parece que só reta mesmo a esperança de superação, de transcender o individual e coletivo. No nosso século XXI instinto e coração unidos às melhores técnicas. Os sábios conceitos que sobreviveram do passado, acrescidos aos do presente, nos pode ajudar em tempos de percalços e dores, até do crescimento. A descrença ronda o mundo, mas nunca se confiou tanto na capacidade humana de superar obstáculos e seguir em frente com a vida na Terra.


  
         Duas cabeças de moças


Quando fechados, os lábios femininos nada dizem, por prudência, ou conveniência, o que vemos em Cabeça de Moça, uma autêntica representante da fé cristã reformada. Ou seria uma jovem noiva judia, a tradição judaica que os reformadores apelaram para assentar sua crença. O casamento, por tanto tempo mal visto pela falta de qualidade das pessoas envolvidas, tem novo alento. As ações humanas sob a ética protestante reformista, com o olhar voltado para a realidade, para o que o mundo começa a oferecer, ou a sofrer, preocupação dos filósofos e intelectuais, de todas as pessoas de bom senso. Acredita-se, todavia, na inteligência, no progresso, contra a barbárie. O silêncio que conserva, que civiliza, contrapondo-se à exagerada pretensão humana, por exemplo, de certas experiências místicas, inclusive, com as drogas, que silencia a pessoa, silêncio perturbador, onde monstros podem se manifestar. Ou produz barulho ensurdecedor, quando se sabe que sem silêncio não há mística.  A experiência da civilização com Deus, que acontece quando se olha confiante para a vida, para o próximo, quando há valor cultural e pessoal, daí o olhar contido, e não desafiador dessa figura de Vermeer. Não esqueçamos que o pintor era calvinista, mas também vizinho dos lógicos jesuítas, que lhe encomendaram um quadro sobre a fé católica, a qual se teria convertido após seu casamento.




       As personagens femininas de Vermeer, reais ou imaginárias, aparecem no sono e na vigília, na disciplina e transgressão, na confiança e suspeição, no claro e oculto. Ao lado delas os produtos que o país produz para serem comercializados, juntamente com o que é importado de outras localidades. A seda que chega do Oriente, trás junto a sofisticação dos costumes, atiçando os desejos de lucro e luxo. Recente o passado europeu sob o domínio do Islã, quando o Ocidente teria emergido da escuridão, o que podemos observar na vaidosa figura do quadro A Moça de Brinco de Pérola. Nada mais, nada menos, que uma europeia travestida de oriental, com seu turbante dourado, parcialmente desfeito, como se desfaz a união entre os dois lados do mundo, nos termos em que foi colocada, de dominação. A vaidade da personagem realçada por uma grande pérola, representação da ortodoxia cristã, vaidade espiritual. A civilização que a personagem representa parece desdenhar do novo caminho traçado para o ocidental, ainda em constantes dissidências territoriais e religiosas, o ue ela vai deixar para trás, findo o Islã ocidental. Ela se vira levemente para o lado como uma vaquinha que olha para seu próprio rabo. Os lábios entreabertos da moça parecem dizer algo, por exemplo, entoar o Kirie Eleison, uma das chamadas coroas místicas da igreja bizantina, para entrar em estado de contemplação. Ou salmodiando. Ainda profere a prece canônica do islamismo Allah hu` Akbar! ( Deus é Grande!):






       A CASA ASSOMBRADA





O quadro Rua de Delft é quase todo tomado pela fachada da casa, com revestimento de tijolos irregulares unidos por argamassa, representação do básico, com falhas e defeitos. A metáfora da casa para a situação de conforto e proteção do homem, com aspecto decadente no quadro de Vermeer, até mesmo de casa assombrada, pela escuridão interior, o que transmite o mundo espiritual obscuro e o atraso intelectual, científico. Indo mais atrás, em Jericó, a primeira cidade, encontramos o homem afeito à religiosidade e na fabricação de tijolos, e tudo o mais que os romanos aperfeiçoaram, até inventarem o concreto utilizado nos modernos prédios de avançada tecnologia e soberba arquitetura. Na Delft medieval, Vermeer pinta uma habitação, ou oficina familiar desativada, primitiva fábrica, com duas mulheres à soleira da porta, em perigosa exposição, ocupadas em suas atividades domésticas, as cabeças baixas, as feições um simples borrão. Seriam patroa e criada, que estão sós do lado de fora da casa sem energia, por conta das guerras, inclusive religiosas. Os fornos que  deveriam estar acesos para iluminar a casa, aquecer as pessoas e  a economia de mercado crescente com a produção de bens de consumo. A energia que vem do carvão extraído das profundezas da terra, exploradas em benefício do progresso e bem estar. O aspecto macabro das chaminés com dois orifícios parecem olhos vazados, por onde o obscuro interior da casa espreita o lado de fora. Uma casa que requer reforma.
 Importante que a sociedade evolua, progrida. No quadro duas individualidades quase nulas, que têm ao lado um casal de jovens no seu companheirismo, a pregar ladrilhos na calçada, ou joga, escondidos dos olhares. Lembram a lenda de João e Maria, dessa feita desperdiçando a vida num jogo obscuro,  alheios ao progresso, ao conhecimento. Indiferentes ou rebeldes ao que acontece fora do seu olhar, que está direcionado ao trabalho inferior. Fora da casa, da sociedade, da civilização, em suma. Melhor do que se estivessem lá dentro, no escuro. Que futuro os aguarda? Na visão de Vermeer essas pessoas ignoram a reforma que seria a protestante, também a católica, assim como fogem do ideal republicano de mobilidade social, de patriotismo utilitário, de enriquecimento lícito, acrescido de modéstia e altruísmo. O caso da Holanda, exemplo de riqueza e progresso. A modernidade que então se inicia e vai deixar para trás o que é considerado autêntico, mas incerto, como o próprio destino que se pensava imutável. Extraordinária o modo como Vermeer expressa o assunto decadência nesse quadro. Imagem de um mundo de pura sensação, em vez da percepção que leva ao aprendizado consciente.
Na antiga Roma as leis se consolidaram através da escrita, atividade interrompida com as invasões bárbaras, a partir daí a comunicação restrita à oralidade, pouco difundido o considerado “ofício” de ler, ato ainda não individual e voluntário, nem de aperfeiçoamento intelectual. Daí a escuridão que observamos dentro daquela casa sombria em Delft, certamente por falta de livros, até uma biblioteca, ou uma pinacoteca, que já no século XVII podia ser encontrada em alguns afortunados lares ocidentais. Grande parte da sociedade medieval ainda patinando na ignorância, pois não sabia ler nem escrever. Segundo Richard Sennett, lenta a transição da barbárie para o mundo civilizado, da oralidade para a leitura, até a primazia da escrita, do cálculo, que começou a florescer quando o comércio se intensificou e criou novas demandas, com a nova classe da burguesia que enriquecia e dava respaldo à criação artística, ao intelecto, ao político. Poucas pessoas na época de Vermeer sabiam ler, e poucos, mas valiosos livros encontrados nos lares.    
Muitos tijolos foram necessários para erguer cidades, suas casas, seus templos. Também muitas pedras tiveram, e ainda se ser afastadas, barreiras derrubadas, rios a drenados, desde que se use a razão, aliada ao bom senso, para comandar as ações. Serpentes venenosas atacam de vez em quando sem dó nem piedade, cujo sangue está representado no vermelho da folha interna da janela no quadro, aberta para fora, e se tenha ideia do sangue derramado nas lutas internas e externas, tantas as vítimas da crueldade. Na modernidade, o dever de cada um é perseverar no bem, se libertar do mal. A começar por dizer não ao sofrimento inútil, à pobreza, também, ao consumismo e prazeres desenfreados. Aceitar consumir com parcimônia os bons e simples prazeres, os belos produtos, principalmente, viver e trabalhar com segurança e amor no coração. No passado o tijolo tosco, como as vidas. Hoje embelezados, vitaminados, até mesmo o simples pão nosso de cada dia. A fome saciada e as mentes livres da ignorância, do preconceito, do obscurantismo, tudo o que significa a escuridão por trás das duas mulheres à porta da casa decadente de Vermeer, onde as crianças estão como que abandonadas num jogo obscuro, mas que deviam crescer em conhecimento para enfrentar os desafios que se apresentam a cada um. O perigo da falta de interesse, mesmo indiferença, dos adultos pelos menores, ainda não abandonado, mas que requer olhem para eles e para o futuro que representam, sob pena de se tramar contra o futuro a própria humanidade. 
No quadro as pessoas ainda perto das guerras, que apagam as luzes das casas. Barbárie que é mostrada de outro modo pelo pintor impressionista Munch (1863-1944) no quadro “A Tempestade”, onde um grupo de mulheres, tapando os ouvidos, fogem da casa incandescente, seu local de abrigo, lar ou cidade, e percorrem desalentadas por entre pedras, o que restou da natureza destruída pela barbárie, que também pode ser moderna. É uma espécie de resposta que séculos depois o pintor do século XIX daria ao barroco do XVII. Resposta trágica, para a situação vigente, denúncia da irracionalidade das guerras. O escritor inglês Charles Dickens((1812-1870) no seu livro “A Casa Soturna”, com força de denúncia social, fala das chaminés de Londres que poluíam os espaços com a queima de carvão por lareiras e fogões para aquecer o ambiente e a produção, mas que, em vez de melhorar, teria piorado a vida de grande contingente de pessoas sem cidadania. Dickens vê o progresso como vilão; Vermeer como salvação. Goethe (1749-1832), ilustre representante da burguesia alemã, também fala de chaminés em sua “cozinha tenebrosa”, laboratório dos alquimistas, da bruxaria, da gnose, e aponta “a dignidade burguesa como a pátria do humanismo e a grandeza mundial como filha da burguesia”. No século XVII, início da Era Moderna, vislumbrava-se a emancipação da burguesia, o que iria ocorrer ao longo do século XVIII, fato captado por Thomas Mann que oscilava entre o burguês conservador, pleno de vitalidade e senso de responsabilidade como pessoa mas, como artista livre, marcado pelo seu contrário. Certamente o caso de Goethe como artista e pessoa, assim como Vermeer.
Para Hanna Arendt, compreender o mundo e tentar agir nele é prova de que  o homem e o mundo foram feitos um para o outro. Digo mais, se o mundo não foi feito para nós - o que é mais certo - pelo menos a espécie humana é capacitada para compreender sua condição e poder viver e trabalhar conscientemente, uma grande vantagem sobre os outros seres vivos. A humanidade feita para amadurecer física e espiritualmente, para evoluir em ciência e técnica, e desse modo poder sair da miséria em que ela às vezes se afoga.  A civilização moderna que vai acender os fornos para a produção de energia, ou melhor, ligar as usinas hidrelétricas, mesmo, atômicas, e que se possa aproveitar as maravilhas naturais e tecnológicas, típicas da engenhosidade humanas. A chaminé apagada do quadro de Vermeer pode ser um prenúncio das obscuridades de Hitler, que acendeu os fornos para o extermínio de milhões de judeus, num retrocesso ao pior obscurantismo, como se genocídio fosse progresso. A maldade nazista, que não pode ser comparada à miséria apontada por Dickens, nas casas, ou nas fábricas, já que das dores das injustiças sociais as pessoas podem se libertar, uma vez que a sociedade progride em suas leis. Quanto à obscuridade nazista, ela aconteceu, e de tal monta, porque um dia uma nação magoada se deixou levar pelo fanatismo de um louco nas suas delirantes fantasias.
  Hitler aproveitou a tecnologia moderna para, paradoxalmente, disseminar a destruição, num retorno ao passado mítico, fora da história, atemporal. Ideologia eclética a do nazismo, retalhos de folclore, lendas e criações literárias recentes e antigas, utilizada para tentar destruir o futuro da humanidade. Jean de Vermeer, ao contrário, subverte os ensinamentos do passado, sim, mas em benefício da sociedade, da liberdade e progresso humano. E mostra a tristeza da casa em Delft onde falta luz, energia, o que aponta para os males da pobreza material, também espiritual. Podemos citar aqui o paleontólogo Peter Ward, para quem, construir civilizações é livrar os seres humanos do instinto assassino da sua própria natureza, um ser que se diz civilizado e, por absurdo que pareça, tenta sempre retroceder à selva, ao obscuro, ao desprezar os avanços intelectuais, tecnológicos, científicos, e respectivo controle, sem o que seria impossível sustentar tanta vida sobre a terra.
Herbert Marcuse a exemplo de Heráclito, concebeu um ideal de sociedade “como um paraíso infantil, onde todo trabalho é jogo, e não existe nenhum conflito grave ou tragédia”. O filósofo socialista quer o mundo livre das forças repressoras, a não ser aquela que tem o objetivo revolucionário para a sociedade mudar de rumo. Justamente o que a tradição republicana, aristocrática e burguesa holandesa, queria transmitir, mas com a ideia de se ter um mundo realmente livre, com pessoas adultas, responsáveis pelo destino humano. Falta determinação, ou de oportunidade, mesmo vontade, para aquelas pessoas em estado medíocre da existência, se levantem, olhem para fora e sigam em frente, o que acontece aos que partem para o trabalho e comércio nos centros urbanos, depois para as fábricas da era industrial. Havia ainda receio de tomar a direção errada ao atravessar o umbral da casa, deixar o lugar de nascimento, a terra natal, o reduto familiar, até em missão distante da pátria. E todos sabem que viver em sociedade, defender os interesses individuais e da coletividade, avançar no tempo, requer que se saiba o que se quer e tenha uma rota a seguir, com possibilidade de poder corrigir os erros. Em primeiro lugar escolher a educação, a instrução, que promove o mundo para que nele se possa andar em terra firme, habitar em lugar seguro, ter conforto material, sem jamais relegar o espiritual. 




                                               QUEBRA DE ENCANTO



                                                  




Mulher lendo uma Carta à Janela ressalta mais uma vez a atividade da leitura. A técnica da repetição utilizada por Vermeer para que o olhar se habitue a ver. A arte como leitura, método de reflexão não natural, voluntário, diferente da experiência natural da gnose, representada nesse quadro pela bacia de frutos passados, do irracional. A moça lê um panfleto amassado, sinal de que andou de mão em mão, um retrocesso, quando já se imprimiam livros, início da mentalidade moderna, científica. Forma rápida de comunicação, mas pouco eficiente, os panfletos transmitem  assuntos de interesse pessoal, de propaganda, muitos de natureza transcendental. A humanidade longe, bem longe, dos nossos mágicos,  instrumentos modernos de comunicação e divulgação através das velozes correntes elétricas. Hoje em dia as transações extraordinariamente rápidas pelo celular e na internet, o que se tornou indispensável para a comunicação pessoal e os negócios, acirrando a competição de homens e mulheres, em iguais condições.
A janela aberta no quadro de Vermeer expressa a liberdade para a mulher. Se a janela estivesse fechada ela poderia se transformar num inseto, como aconteceu no livro de Kafka, Metamorfose, em que o personagem Gregor amanhece transformado numa barata se batendo na vidraça até morrer. A personagem de Vermeer morreria de depressão à espera da redenção, da liberdade salvadora, que nunca chegaria. Mas a janela escancarada pode deixar passar para dentro bons ou maus ventos, indiscriminadamente. Entre uma vida irresponsável e altamente repressora ou, ao contrário, libertária em demasia, que causa degradação, escolher viver. A vida espiritual alicerçada na ética, na lógica, na metafísica, seus frutos maduros e sadios necessários para o sustento da vida espiritual, como os frutos naturais e sadios alimentam a vida física. O certo é evitar a degeneração da mente e tratar de arejar a vida, o ambiente familiar e do trabalho, o que aponta para a consciência liberal. Vermeer coloca sempre uma janela em seus quadros, visível ou invisível: janelas abertas para o que der e vier; meio-abertas por prudência; fechadas por receio ou medo. A simbologia da janela, por onde se pode fugir, se for o caso, mas nada recomendável, só quando não houver outra saída. 
A face refletida na vidraça é o reflexo da imaginação distorcida, presa ao passado esquecido, perdido, ou vedado, e que pode retornar como assombração. Face da civilização que sofre com os conflitos que a razão não pode resolver. O conflito que causa a tomada de consciência da noção de indivíduo, até então preponderando o ethos coletivo, quando nada se podia fazer para si. A possibilidade real, ou não, de superação, ao se passar de um estágio de vida para outro. A angústia de ter de enfrentar o estranho, o que esse ou aquele pensamento, atitude, nos pode afetar. Os fatos e feitos que amedrontam, e temos que enfrentar. O dramático sentimento da impossibilidade de reconciliação entre culturas, entre famílias, entre católicos e protestantes, nobres e plebeus, pobres e ricos, e mesmo entre raças e sexos. Na sobra da vidraça, a tristeza daquela moça, mesmo horror, de quem, mesmo na riqueza, se vê sem o lastro de uma fé autêntica, ou do conhecimento científico, justamente o que a humanidade naquele momento. O progresso que avança imponderável no comércio entre Nações, inclusive, através do tráfico de escravos, de peles, até de mulheres. Também tráfico de ideias.
Uma mulher que toma conhecimento da natureza humana,  do ser que nasce e apodrece ao morrer, com um fruto. O peso que a consciência carrega pelos males que cercam a condição humana, a própria civilização que caminha inexorável, sendo tênue a fronteira entre o passado, o presente e o futuro, entre a vida e a morte; os mortos no medieval até mais poderosos que os vivos. Foi o que aconteceu no século XIX com os vanguardistas, apelidados de poetas malditos, que Claudio Willer no seu livro “Obscuro Encanto”, considera uma retomada ao que há de mais arcaico, próprio dos cultos e mitologias das sociedades tribais, que se alia à cultura estética e do artificialismo. Para o pesquisador, quando se pensa no passado e no progresso libertador, é bom mostrar o trânsito entre o alto e o baixo, o abjeto e o sublime, dualidade, que é abismo do pensamento, da imaginação. Vermeer aponta em direção à liberdade, evitando-se a loucura das fantasias naturalistas e subjetivas. No começo da década de 1850 o pré-rafaelista John Millais retrata o suicídio de Ofélia, figura literária, símbolo do trágico pesar da perda e da loucura, uma morte que ocorre dentro de um ambiente natural.  
Causa, pois, estranheza aquela imagem fantasmagórica da jovem no frescor da juventude e beleza, mas que poderia estar ainda se deparando com a velha magia que passa a representar o novo, o que constitui erro terrível. A mulher seria vítima de algo que empobrece espiritual e materialmente, o que representa o panfleto e os frutos expostos ao seu lado, em estágio de decomposição. A exploração, a superstição, a maldade, que denuncia o pintor que se alicerça na ética protestante que valoriza a liberdade individual, o fator econômico, para superar o caos provocado pela miséria tanto espiritual quanto material. A Igreja católica também preocupada com essa realidade. Fatores que seriam analisados por Max Weber, no caso, o econômico e a liberdade, em que o social não significa massificação, nem materialismo. Menos ainda sociedade supersticiosa. E no futuro surgiria o  fruto do materialismo histórico de Karl Marx que foi capaz de se decompor na história. Também o espiritualismo de Nietzsche, inspirador do fruto podre do nazismo. Dois “filósofos da liberação”: o primeiro, filósofo da coletividade, o segundo da individualidade levada ao extremo. O individual e o coletivo a quem a sociedade moderna, democrática, impõe limites.
 A palavra utilizada na divulgação de heresias, ou conhecimento pseudo-científico. Mas não esqueçamos que os espiritualistas foram os pioneiros na divulgação das ideias através de panfletos. A visage (rosto em francês), ou fantasma da leitora, ser ambíguo, que deve amadurecer no entendimento para saber que nem tudo que se transmite, que se faz, é bom e digno de crédito. Certas ideias e costumes considerados selvagens, ou apodrecidos, por serem capazes de provocar doença na alma, depressão, o caso dos vampiros que manda notícia do amor cortês, de laços frouxos, precursor do amor romântico. O amor cortês, das almas gêmeas, que prende por correntes, e também suga o sangue, priva da liberdade, e acaba por abandonar a presa ao sinal de outro amor com poder para seduzir.
A felicidade estaria aqui mesmo neste mundo? Ou esperar pelo outro mundo? Duro conviver na dúvida, na dualidade corpo e alma, mas faz parte da natureza humana. Se não houver a esperança da imortalidade a opção seria pela matéria, ou seja, que basta a vida na terra, e ponto final. Em ambos os casos o atenuante pode ser doce ou intolerável. No medieval a burguesia, ao desenvolve a consciência individual, fica à beira da descrença, quando então achou por bem não arrisca a vida, mas cuidar do corpo e do fruto desse corpo, ou seja, a alma sadia – um capital, uma herança pós-morte para essa classe.  Segundo a pesquisadora Juliana Cchmitt, a partir daí foi um passo para que surgisse o espiritismo utilitarista, que tem o morto como produto, como outro qualquer a ser utilizado, consumido.   Principalmente, atente-se para a metamorfose que a pessoa sofre, por medo e angústia, uma assombração, processo natural, que parece mover-se em direção à entropia e à decadência. No mito de Pandora, o ser curioso e imaturo, não tem critérios, nem meta a seguir, recua à irracionalidade, libera o que pode se transformar em males.
Para Hegel “Não a vida que recua diante da morte e se preserva na destruição, mas a vida que se mantém na própria morte, que é a vida do espírito.” (inFenomenologia do Espírito). Nesse quadro de Vermeer acontece uma experiência pessoal, íntima, daí não aparecer mapa algum que se refira a mundos a conquistar, pois a atenção dela está voltada para a palavra ambiciosa, que pode unir, ou os separar, como nunca. A sociedade na busca por saídas, nem sempre honrosas, daí a bela individualidade e seu duplo na vidraça, em que o outro tem características feias dos baixos instintos, de torpes intenções. Acontece na constituição da personalidade feminina nos grandes centros urbanos em que se formou a burguesia. Estamos diante da modernidade racional e científica que encontra sua oculta irracionalidade, sua imagem fantasmagórica. O reflexo do euno encontro consigo mesmo, tudo o que vem à tona, numa existência perdida pela falta de ética, de fé verdadeira. O duplo vil e cruel que está recalcado e pode aflorar. Tudo isso e mais alguma coisa. A moça estaria, por exemplo, recebendo a notícias do ordário? A barbárie medieval, em que a justiça era precária e a provas de juízo baseada em superstições, que caracterizava a ordem legal germânica. Daí o esboço da feição do ser frágil em seu íntimo, quando era comum a doença intitulada “ilusão de vidro”, forma de melancolia que levava a pessoa a se sentir como o vidro, preste a se quebrar ao contato, uma sombra que tende a se desfazer. O medo do pecado, ou o que as mudanças provocam causando distúrbios psíquicos, atribuídos a causas mágicas e religiosas, abandonada a abordagem de Hipócrates e dos antigos gregos. E diante da angústia humana, nos novos tempos o certo não seria retroceder, mas apelar cada vez mais para o conhecimento, para liberdade, para própria arte, e ir em frente.  
A Igreja empenhada em substituir os procedimentos bárbaros por conceitos elaborados pela razão,  encontrados no direito canônico, no pensamento econômico dos escolásticos, na astronomia e matemática dos jesuítas, bem como no pensamento científico das universidades, instituições católicas por excelência. A vida elevada pelo conhecimento, pela justiça, para que o ser humano possa sentir prazer pela vida, afastado o sofrimento que traz a ideia de fragilidade, de fatalidade, assunto do panfleto no quadro, e teria corrido de mão em mão na difusão de teorias estranhas, de notícias trágicas, de resoluções mirabolantes. Amor de folhetim o da carta que a moça recebe? Ou se trata de alguma dívida financeira pessoal, ou da família? O que acontecia com a burguesia da época, sem experiência no amor, nem com os negócios, furta-se de agir publicamente, por medo de se dar mal, e ir parar nas garras da injúria e difamação. A mulher por muito tempo ainda privada de se envolver nas finanças, como acontece com Nora, personagem do norueguês Ibsen, uma dona de casa do século XIX, que é de todo modo incapaz e, ao se casar, não vai saber lidar com o marido, os filhos, principalmente com o dinheiro, e acaba endividada, resolvendo, numa atitude  imatura, abandonar o marido, a casa, achando que só longe da família, tinha condições de evoluir. O conhecimento racional começou com os antigos gregos,  com Tales de Mileto, o filósofo do “conhece-te a ti mesmo”. A filosofia a nos fazer avançar em direção à ciência, que no século XVII dá os primeiros e decisivos passos. Os equívocos muitos, como ainda hoje, em que o homem moderno parece o mesmo dos tempos ancestrais, dos bárbaros, ou mesmo do homem das cavernas. Um mistério o motivo de até hoje o ser humano não ter evoluído como devia, tanto tempo habitando entre nós o espírito cristão, e o conhecimento ter avança tanto. A dificuldade que há para prosperar no mundo o ideal de racionalidade favorável ao ser humano.
Duvidar com Descartes, e não se entregar à cegueira das paixões, mas cogitar sobre elas, assim como sobre a moral, sobre o prazer, e as implicações decorrentes do desequilíbrio psicológico provocado por ambições e desejos desenfreados, por amores vampirescos. Deus ainda no centro do mundo, quando o filósofo do método, deu alicerce ao saber, e aponta para a “realidade além do próprio ser pensante”. Mas, a partir daí, a descrença instala-se nas mentes, até o desequilíbrio em que se vive, e nem se podia suspeitar acontecer. As ideologias tomando o lugar do pensar metafísico, da natureza-revelação. Vermeer, ideológico, metafísico, religioso, principalmente otimista, acredita  numa elite progressistas, assim Goethe e seu Fausto, em que a docilidade, o quixotismo, o sarcasmo, permeiam tanto a obra do poeta quanto a do pintor. Fausto transforma a própria alma em mercadoria para comprar a juventude, dominar o tempo. Quanto ao pintor de Delft ele se torna propagandista dos reformadores protestantes e também católicos, assim como da sociedade que se torna burguesa e capitalista, com isso promover o  sucesso do indivíduo no mundo moderno. Tecnologia, ciência e religião  aproximam-se no século XVII. Uma paradoxal aproximação, que fez ressurgir no século XVIII a ideologia romântica, com seu gnosticismo para combater a sociedade burguesa e capitalista, justamente quando ela se consolidava. Já no mundo contemporâneo todas as crenças desacreditadas, todas as ideologias abandonadas, o que parece ter sido pior a emenda que o soneto.





                                                                 PONTO DE VISTA


                                            


Luz e sombra especialmente admirável em Vista de Delft. O cenário idêntico ao da dramaturgia medieval, apresentada em três atos: o céu, a terra e o inferno. A metade superior do quadro tomada pelo céu de nuvens cinzentas, cenário nebuloso, rompido pelo sol centro do universo e não mais a terra, o que Galileu insiste em afirmar.  A luz solar ilumina a cidade e, em especial, a torre gótica da Nieuwe Kerk, auge da criatividade humana, voltada para a religiosidade e abrigo dos fieis A catedral construída por arquitetos para a eternidade das crenças, que se eleva e afina em direção ao céu. Pode, inclusive, fazer alusão ao lendário e radiante templo pagão da lenda nórdica, local de descanso dos heróis mortos nas guerras. Profundas as raízes pagãs da Frísia, região da atual Holanda, local em que cristãos e batizados, juntos, fizeram sacrifícios ao deus Wotan. No lado esquerdo do quadro os telhados em vermelho intenso são da VOC, a maior empresa de navegação e comércio exterior, responsável pela primeira globalização, que se destaca na paisagem pintada por Vermeer.
Na parte inferior do quadro edificações em ocre e castanho margeiam as águas turvas do canal, com o porto de Kolk. A bela cidade parece emergir das águas, e desde muito tempo os rios da Holanda estão poluídos por detritos orgânicos, restolhos da produção, degradação urbana. O paradoxo da impureza a produzir beleza nas cidades em ascensão populacional e comercial, da qual temos essa visão, ou fantástica impressão. A República holandesa considerada da paz e do progresso. A pintura de Vermeer, do século XVII, pode ter inspirado Claude Monet no quadro Impressão, sol nascente (1872), origem do moderno movimento impressionista. No Monet, vemos o porto de Haver, com barcos  feitos de borrões e uma bola na cor laranja intenso que representa o sol, enquanto a cidade pouco se distingue na paisagem, apenas uma faixa escura. Há semelhança entre Vermeer e Monet, muito embora a pintura do holandês diga mais respeito ao mundo dos vivos que ao obscuro mundo dos mortos, que tanto impressionava o francês vanguardista e seus colegas de transgressões no século XIX.  
Os projetos arquitetônicos criados para refletir toda a riqueza cultural e econômica das cidades, consideradas como manifestações mais concretas do Renascimento. Delft, como Florença, é uma cidade renascentista, pronta e acabada, numa visão o máximo possível detalhada, em que se pode observar a engenhosidade da arquitetura baseada na matemática e geometria, um tanto mistificada na época. Nelas floresciam escolas, oficinas das “artes e ofícios”, as chamadas guildas, ou corporações de pintores, tecelões, armeiros, ourives, vidraceiros, que ali recebiam apoio financeiro e instrução sobre seus ofícios, onde as ideias floresciam e se difundiam, ao lado do que se produzia para ser comercializado, num processo de troca que se trona global entre os povos. Vermeer pertencia à guilda de S. Lucas, que chegou a dirigir por duas vezes, o que revela a importância do pintor. Nas grandes concentrações urbanas os comerciantes ambiciosos e os artistas e artesãos cada vez mais habilidosos e criativos.  Mas o dinheiro que começa a circular é uma abstração frequentemente associado à sujeira, e tudo o mais que diz respeito aos negócios, também ao campo espiritual. As águas turvas do canal de Delft servindo, pois, de metáfora para o reino subterrâneo, obscuro, que deve ser ultrapassado nos novos tempos de vida civilizada.
O futuro se vislumbra promissor com a ciência e tecnologia, que surge junto com o passado sombrio e revelador. Pontos luminosos dão forma às carcaças dos barcos, através da técnica do pontilhado utilizada pelo pintor.  Seria o pontilhado nas pinturas de Vermeer representação dos “pontos metafísicos” de Leibnz (1646-1716)? Unidades de força primitiva, unificadora,  coisas que vêm à tona, e dão a impressão dos anjos e demônios que pululam em Delft, maldição medieval. As embarcações parecem fantasmas que pairam na escuridão das águas, ou das viagens gnósticas afinadas com o mundo dos mortos. De Dionísio o maior dos barcos, que ressurge com a vida que se civiliza, através do vinho da alegria, mesmo loucura, excelente produção. O menor pode ser o barco de Caronte, com a missão de levar os mortos para o Hades, em troca de uma quantia em dinheiro para a passagem. Ousurgir da na escuridão das águas o que estamos vendo é a sucata da embarcação da viagem ao Egito dos Argonáutas, da qual participou o teólogo e poeta e místico Orfeu, filho de Apolo e Clio? A esposa de Orfeu, Eurídice, picada por uma serpente, desce aos infernos, de onde o marido tenta libertá-la com a doçura do seu canto, mas que acaba por perder de vez a amada ao olhar para trás quando atravessam os umbrais do império das sombras. O que teme Vermeer que aconteça, por conta do ideal reformista, também, progressista e feminista. Como diz Epicuro, “valemais aceitar o mito dos deuses do que ser escravo do destino dos naturalistas, uma vez que o mito pelo menos oferece a esperança do perdão através das homenagens, contrapondo-se à fatalidade do destino”.
No Século das Almas, também chamado século das Missões, surpreende o desenvolvimento da ciência que acena com dias melhores para a humanidade. A elevação da vida terrena que acontece pelo conhecimento e trabalho, inclusive religioso, missionário, de grande sucesso no Novo Mundo, o que pode representar, em primeiro plano, a porção de terra iluminada pelo sol, com pessoas desembarcadas. Parecem ser missionários europeus chegados a América, terra prometida, onde encontrariam a riqueza natural e a liberdade para levar adiante o processo civilizatório, expectativas que de todo modo se confirmaram. Seria então a barca Mayflower que vemos ancorada naquele porto luminoso, onde os primeiros puritanos ingleses aportaram. Precárias as embarcações que atravessara tenebrosas águas para levar uma nova fé ao recém-descoberto continente. Terra radiante, ensolarada, distante das nuvens escuras que aguardam para cair sobre as cabeças, da qual não vão escapar os habitantes originais do continente recém-descobertos. A América do Norte hoje um exemplo de liberdade democrática e progresso, onde os holandeses fundaram Nova Amsterdã. Já a América Latina colonizada por espanhóis teima em deixar que vicejem ditaduras. No gigantesco Brasil, colonizado pelos católicos portugueses, atuaram os missionários católicos, grande força civilizadora, que partilharam com os protestantes. Os holandeses que aportaram por aqui, com intuito de se estabelecerem nessa promissora terra, onde fizeram um belo trabalho, deixando um legado importante para o progresso da nação brasileira. 





 VERMEER NO ATELIÊ





A palavra ateliê, segundo o dicionário, significa uma “reserva de material produtivo, dando ideia de desordem, sucata de fecunda inspiração.” A matéria prima utilizada por Vermeer que pode ser vista no Ateliê do Pintor no seu trabalho como artista, e propagandista comercial dos patrocinadores. Objetos-símbolos do passado e o que oferta ao presente a criatividade humana, circundando as duas figuras em destaque: a feminina no papel de Clio, para dar sentido histórico à cena, e o pintor, que inicia sua pintura dentro da pintura, pelas folhas da coroa da musa da história. A arte e a história, peças chaves do quadro, até certo ponto na contramão da história por falar de um novo tempo, que tem início no naturalismo renascentista. História natural, sem que se rejeite como antinatural a transcendência, por fazer parte de própria natureza humana. Drama moderno, não tragédia antiga. Em cena a República holandesa calvinista com uma nova história a ser contada, calcada no ideal de trabalho e progresso, com que a mulher, ou a civilização, dá um salto importante em direção ao futuro. Uma sociedade mais iluminista que iluminada na busca de meios para exorcizar o demônio da irracionalidade, que teimava em romper o solo pátrio, até mesmo o chão do artista, como veremos adiante.  O iluminismo, que tem início no século XVII, compromissado com a vida, para enfrentar a fantasia teutônica, cuja tendência é se desviar da realidade para percorrer caminhos obscuros. O caso do nacional socialismo de Hitler, em cujo gabinete foi encontrado pelos aliados esse quadro de Vermeer, um contrassenso do ditador, devido ao fanatismo e loucura que foi o nazismo.

                                               
                 


O mundo em expansão, e o sentido é transformá-lo, principalmente, através das ideias, dos costumes, sob os auspícios do saber e da produção crescente. A sociedade de pessoas livres, que vão contar com auxílio da ciência e tecnologia para crescer e enriquecer. A figura alegórica de Clio está coberta com o moderno tafetá, produto comercial, assim como o livro impresso que a musa carrega nos braços, enquanto segura uma trombeta na mão. O valor que o comércio e a leitura vai ter daí para frente, atividades a que as mulheres devem se dedicar. O conhecimento difundido em grande escala através do livro. O saber que avança, a ponto de ignorar o que não estiver no livro impresso, ou mesmo desdenhar dos que não estudam as ciências, nem aprendem nas universidades. As folhas que ornam a cabeça de Clio, justamente por onde a o artista começa sua pintura, são produtos colhidos na natureza, que a ciência, a botânica quer desvendar os poderes medicinais, cultivados no país, ou importados, com os quais os costumes e os gostos começam a se sofisticar, enquanto enchem os bolsos de mercadores e comerciantes. Também se cultiva e importa conhecimento que enriquecem a mente, desde o conhecimento bíblico, filosófico, mitológico e lendário, até chegar à ciência, tudo como presente dos deuses, ou de Deus. No último canto do Paraíso de Dante, lembra Claudio Miller, a metáfora para o universo é um livro, justamente o Livro Sagrado, chave para o conhecimento da história do espírito, também a história das primeiras experiências humanas.
Momento especial para o Ocidente, que sai da barbárie para a vida civilizada; passa do macrocosmo da guerra, do poder absoluto, para o microcosmo da família, da individualidade e civilidade. No quadro, o que representa cada objeto em si e no sentido mítico, mitológico, místico, tudo no mesmo saco do pintor. No século II o escritor Apuleio acredita que cada pessoa tem seu daemen (espírito guardião), o que para Harold Bloom seria a nossa genialidade, no sentido estético e intelectual, que não deve ser tratada como o demoníaca, nem como solução, e se venha a sofrer perigo desnecessário. As  especulações inúteis deixadas para trás, sobre coisas do outro mundo, por exemplo. Cuidar para que se perpetuem os avanços sociais na República holandesa, uma ilha de abundância material no oceano de penúria que era a Europa desde o século XVI e ainda no XVII. Nos quadros de Vermeer a promoção do progresso, onde sobressaem os trajes, qualquer que seja a classe social retratada, na diversidade de comportamentos, de atitudes. A moda servindo de intuito para atingir o público feminino, certamente para que as mulheres pensem no fator econômico, e elas possam ter sucesso financeiro e social, negociando ou consumindo produtos. A moda teria aparecido justamente com as novas técnicas, e faz com que o pintor no ateliê cubra sua modelo, uma simples camponesa, ou moça do povo, com luxuoso tecido da indústria nacional, ou importado.
A sociedade holandesa republicana com duas feições: a masculina da “fera” que esconde a face, e a “bela” face feminina, que fecha os olhos para não ver o pintor no seu trabalho especulativo, e evitar conflito interior. Como diz o estoico Sêneca em seu livro “Sobre a Vida Feliz”: “Não confio em meus olhos quando considero o homem, pois tenho um critério melhor e mais seguro para distinguir o verdadeiro do falso, cabendo ao espírito encontrar o bem.” O pintor no seu jogo de pique-esconde talvez não se importasse muito com o juízo sobre seus quadros feitos de encomenda; houvesse ou não mal nisso. O conhecimento, o trabalho, servindo de largada para os novos tempos, tempo da “fera”, que ainda se imagina um gato, o místico “gato preto”. Ou o propagandista e lendário “gato de botas”. No quadro, o pintor em vez de botas calça um elegante escarpam, design moderno, de onde saem volumosas meias, dando a ele aspecto de “botas de sete léguas”, que na lenda protege os pés do felino em peregrinação para fazer propaganda dos seus senhores, no caso do pintor, seus patrocinadores. A metáfora do calçado com significado de proteção dos pés e do que está abaixo dele. A arte, também objeto de consumo, com possibilidade de proteger o artista da pobreza material, e outros abusos. Vermeer protegido, tanto pelo calvinismo republicano, quanto pelo rendoso comércio dos produtos expostos no quadro. Mas o vermelho nas pernas do pintor é sinal de sangue, por ele andar em chão minado, em seu mágico e sacerdotal ofício de artista.
O jogo perigoso que a arte também empreende. Até mesmo loucura no sentido de paixão pelo mistério, pelo desconhecido. No chão do ateliê o banco do pintor está estrategicamente colocado sobre uma cruz, feita com as peças negras do ladrilho, em contraste com as brancas. Representa a cruz de Malta das navegações de Vasco da Gama? Também a cruz da escuridão de Lúcifer, em contraste com a luz divina. Sob o templo de Apolo, no lugar onde a pitonisa fazia suas revelações, existia uma falha na rocha em forma de cruz por onde escapa um gás natural, alucinógeno. O poder que emana da natureza, e o sonho humano de se deduzir todo o conhecimento pela imaginação, anterior à ciência, antes mesmo da religião. Esse conhecimento estaria vedado pela cruz, por ser subterrâneo, demoníaco, e cair no abismo da loucura e morte. Aconteceu com Nietzsche que cai na escuridão da mente. Interioridades e profundidades tipicamente germânicas, aristocráticas. Enquanto a mente moderna, científica, teria um poder maior para promover a humanidade ao importante patamar de saber e bem-estar. E que tudo não se transforme em maldição burguesa.  A arte de Vermeer calcada na síntese, não na antítese que levaria ao nazismo e à Segunda Guerra Mundial. A cruz que veda o precipício da superstição, das alucinações da imaginação, e tudo o mais que pode rachar o chão em que pisa o místico, o artista, o cientista, o político, o homem de negócio. Chão vedado, para que as profundezas do mal não escape por essa abertura.
A clássica máscara mortuária representa no quadro a arte da escultura em confronto com a máscara do pintor, evidente em sua cabeleira gorgônica, cuja face ele esconde dos olhares, por conta das afinidades infernais que orientam suas investigações em águas profundas. O duplo papel do artista de cultor e desbravador, até mesmo sentinela dos lugares proibidos. Atravessar o umbral do conhecimento, do mistério, para satisfazer desejos e ambições é um desafio, que o pintor também enfrenta, daí estar de costas para o espectador, enquanto a figura feminina tem os olhos fechados. A polaridade das duas figuras, como das máscaras. Uma cascata de seda cai da mesa onde está a máscara, ela conta sua própria história como fonte de riqueza, mas que pode escravizar o homem. Fim da história, princípio de outra história, alicerçada na razão. O saber que avança. Enquanto nas profundezas do irracional a alma  quer reencontrar a unidade espiritual, o caso da alma alemã, gêmea da holandesa, mas em certos aspectos totalmente diferentes uma da outra, como disse o argentino naturalizado canadense Alberto Manguel, para quem “a história pode não nos dizer quem somos, mas que existimos, e com histórias para contar, confrontar”. Dentro da história, a arte sendo capaz, em certos aspectos, de curar, iluminar, indicar caminhos, sobretudo “mostrar nossa condição, romper a aparência superficial das coisas, das correntezas e abismos subjacentes”. Um rio caudaloso, impiedoso, para quem se dispõe a verificar as coisas a fundo, inclusive, no que diz respeito à natureza humana.

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