CONTOS

    



 À SOMBRA DE JANE AUSTEN - 1
         
                 

               O TOLERÁVEL E O DETESTÁVEL
             
       



        







  
                Diante do soberbo bufê do casamento da filha, a primeira das três a casar, o pai da noiva comentou com a segunda mulher que as madrinhas do noivo estavam     vestidas para uma Feira de Amostras e não para uma festa de casamento. As apontadas,   sem que notassem o rude comentário, foram para um canto da sala, já com o prato cheio           de guloseimas, e a cabeça também repleta de assuntos, iam pôr tudo em pratos limpos.      A certa altura, a conversa das mães de   Moema e Dagmar   havia   chegado   ao   cabo  das tormentas, quando viram a moça que passava, uma cochichou para a outra:
­­­— Com um pai daquele, acredito que Sofia e sua irmã tenham pouca probabilidade de encontrarem um bom partido.
A outra estava de acordo:
— A mãe não fez um bom casamento, o pai é artista, e mesmo que elas venham de uma boa família, com um tio alto funcionário e um outro casado como uma herdeira e morar num palacete, podem estar fadadas a ficarem solteiras, por bonitas e prendadas que sejam.
— Melhor do que se aventurarem em casamentos que só trarão mais desgosto para a família.
A primeira fecha o diálogo:
— Aline e Sofia são educadas e agradáveis, mas suas amizades com pessoas de baixo status social lhes comprometem ainda mais o futuro. Minhas filhas, por exemplo, herdarão um bom patrimônio, além dos ótimos relacionamentos, o que  possibilita conquistarem um partido à altura para casar.
 Atrás da cortina, estupefata, Aline escuta tudo, e tratou de sair do  esconderijo onde tentava aliviar sua dor de cabeça. Sem ser vista pelas fofoqueiras, deixou-as para trás e atravessou o salão pensando se podia levar a sério tais previsões. O mundo estava mudado e ela pensava trabalhar, depois de se formar, o resto vinha por acréscimo.  Mas o que Aline não gostou foi do nível em que fora colocada. Lembrou de Jane Austen e de suas palavras: “O que é tolerável na juventude, é detestável na velhice.” A fofoca, por exemplo, que coisa mais ridícula, saída da boca de gente que ela conhecia e acreditava serem amigas. Achava que a boa educação valia mais que o dinheiro, e o que se devia era evitar ser uma pessoa vulgar, até estúpida. Ela mesma, Aline, ia ter um encontro decisivo com um jovem que achava quase perfeito.
   Diante de Aline a amiga Moema julgava-se muito importante e pouco abria a boca, simples astúcia, para não ser flagrada dizendo algo que revelasse sua verdadeira personalidade para a irmã de um possível pretendente. Pensava Aline nos irmãos, rapazes de beleza e caráter, que podiam dar-se ao luxo de escolher quem quisessem. Iriam acertar em suas escolhas? “Boca calada não entra mosca”, era o conselho da mãe, com medo da  única filha estragar tudo dando com a língua nos dentes. Não que se importasse com a opinião dos outros, nem o que pensassem a seu respeito e da filha mimada, faziam sempre o que queriam ou, conforme dito popular, o que lhes dava na telha. Também havia pretensão e impertinência em Dagmar e sua genitora, e essa única filha. Aline pensou na própria mãe e na tia, elas, sim, sabiam conversar admiravelmente, descreviam acontecimentos, ou um episódio qualquer, com graça, até mesmo caçoavam de conhecidos, com espírito e sem maldade. Procediam sempre com sutileza e pertinência.
       Não adianta esconder a verdade, logo, logo, tudo fica claro.  De volta à casa,  ao lado da irmã, Aline comentou a diferença que existe entre as pessoas, em especial, pela educação. Infelizmente elas podiam ser avaliadas ao bel-prazer de qualquer um, melhor ignorar. Estranhou que fossem tratadas com tanto descaso, quando podiam até mesmo ser cunhadas de uma, ou das duas. O futuro ia contradizer as más previsões. Aline achava que, do jeito que as coisas andavam, um marido romântico, já era um bom começo, não como uns tais que só querem aparecer, mas, vai ver, são um vazio só.  Consolava-se em lembrar do poeta, que começava a namorar, o que certamente causaria ainda mais  falatório às duas senhoras, que calculavam as coisas em perdas e ganhos. Tinha, sim, ótimas amizades, com quem compartilhava momentos de agradável convívio social.        
         







                           CARNAVAL DE 1956






As amigas Lenita e Cristina tinham concluído o segundo grau, e a faculdade não era uma exigência para um bom emprego. O futuro em aberto, e enquanto ele não chegava elas se divertiam, por exemplo, ir ao Hotel Copacabana Palace ver Gracinha concorrer pela Bahia ao título de glamour girl. Essa parecia com Lauren Bacall, nos seus 1.70m, enquanto as outras duas  não passavam de 1,60m, sem  nem com um pingo de inveja, mas com orgulho da posição de destaque da amiga, realmente muito elegante, embora lhe faltasse beleza. Foi depois do carnaval. “Carnaval, a expressão primária, intensa, modo especial de interagir em sociedade”, dizia o articulista da revista “O Cruzeiro”. Um prazer alternativo, para crianças, jovens, e pessoas mais velhas, todos participando da alegria, que era como um compromisso pessoal e social que havia para com essa festa popular, definidas as regras de transgressão. Mas o empenho momesco não devia ultrapassar o que fora estabelecido pela civilidade.


 A barbárie sempre na espreita, daí a civilização conceber certos momentos de extravasamento, ou seja, que se ceda algo ao bárbaro que habita um pouco em cada um, para não correr o perigo de ser tomado por ele. Preservar sempre, em qualquer ocasião, o ser civilizado que se é de verdade, ou queremos ser.   Era quase uma obrigação aderir à folia nos clubes da cidade, onde a moçava brincava com a mais elevada das intenções, muitos casamentos forjados ao som das marchinhas carnavalescas. Chegaram quando a orquestra brindava o seleto público com o hino carioca: Cidade Maravilhosa /Cheia de encantos mil/...Coração do meu Brasil.  De arrepiar! Lenita que era loura de nascimento, estava com sua nova e extravagante cor de cabelo, recém-pintado de acaju, por erro do cabelereiro. Temerosa, a dizer que não conseguiria nem um pião de obra para dançar, se por acaso aparecesse algum por ali.  Acontece que logo de início ela atraiu a atenção do simpático rapaz que vagava entre os foliões a procura de um par. Não teve dúvida, achara. E não desgrudou da moça de cabelos de fogo durante os três dias de folia, e também nas sessões de cinema no Metro Tijuca. Ele não era peão, mas militar.


 Cristina refugiou-se no Mezanino, de onde podia ver melhor o movimento no salão antes de entrar na folia. Os pais cariocas enfileirados em torno do salão para acompanhar de perto o comportamento dos filhos naquele perigoso reino da fantasia. Nesse domingo de carnaval os pais de Lenita estavam no posto. A moçada incansável nos saracoteios ao som das marchinhas misturado com o barulho característico do assoalho antigo. Os músicos também infatigáveis. Moças e rapazes que, além de se divertir, queriam encontrar um par para um compromisso sério, noivado seguido do casamento. A dança proporcionava um prazer imenso naquele momento, pela esperança de felicidade que a folia carnavalesca despertava, até matrimonial. Uma coisa não tendo nada a ver com a outra, mas, paradoxalmente, tinha tudo a ver.

 Já no salão Cristina começou a cantar:

Oi, zum, zum, zum

Zum, zum, zum,

Está faltando um.

Escutou uma voz masculina dizer para ela:

Não está mais  faltando, vamos dançar?

As amigas observaram quando Gracinha praticamente tirou seu par para dançar.
E foi assim que as três amigas encontraram seus maridos, naquele baile de carnaval. Era assim que acontecia nos idos anos cinquenta.

              MEU TIO SETEMBRINO






  Pela terceira ou quarta vez a moça passava por ali em direção ao curso noturno de contabilidade, foi quando sua vista cruzou com a do bem apessoado rapaz de olhos azuis, a descendência inglesa, atrás do balcão da padaria de sua propriedade, já em vias de fechar as portas. Ninguém podia imaginar que eles pudessem um dia estar unidos para sempre. Por algum tempo tudo ficou confuso para os dois, tanto quanto pode ser confusa a própria existência, mais ainda, a de pessoas que se unem por conta do acaso. Nem tão separadas socialmente, mas quão diferente, difícil a convivência. O pai, médio comerciante maranhense, e intransigente com a filha que ele queria formada em ciências domésticas, na conceituada Escola Doméstica de Natal, o que seria a educação mais avançada para a mulher no mundo científico, a mulher responsável moral pela família, com o dever de cuidar da saúde doméstica. Continuaria seu trabalho dentro do lar, uma mais expedita “mulherzinha”, pondo a grandeza do conhecimento adquirido a serviço exclusivo da procriação. Mãe coroada pela ciência.
Mas o que Margarida adoraria mesmo era a oportunidade de se exercitar no piano da sala, mas fora vendido pela família. Ter manejado aquelas teclas mágicas, um sonho, do que falaria sempre aos filhos. Em plena juventude se decide pela vida doméstica, ou seja, por aquela parceria amorosa, que o pai dela não viu com bons olhos. Mesmo assim o namoro foi em frente. Pouco depois do primeiro encontro uma tragédia acontece, o pai morre repentinamente. Todos recolhidos após as condolências, portas e janelas trancadas pelo luto, quando a mãe comete a imprudência de dizer que a filha rebelde não mais poria os pés fora de casa. Para a jovem nos seus 17 anos foi um momento por demais assustador. O amor filial rapidamente substituído pelo medo e rancor. Sentia-se abandonada ao perder o pai, e a mãe em fúria. Um fim de mundo. Mas restava aquele amor. E devia partir o quanto antes. Saiu de casa, calmamente ia fazer o que achava que devia.
Aconteceu a fuga, o que parecia só acontecer nos livros. E o casamento em casa de amigos. Foram morar no interior, a vida difícil longe do lar de origem, mas tinham os amigos, fácil para eles conquistá-los com sua simpatia e boa vontade para com o próximo. Margarida e o marido eram trunfos um para o outro. Podiam ficar aborrecidos com tanta dependência, mas começaram a vir os filhos. A vida seguia seu curso, algumas vezes quase trágica para ela, que rezava os Salmos para se tranquilizar nos momentos de maior aflição. A certa altura só Deus para iluminar-lhe o caminho, para livrá-los dos sofrimentos, alguns deles evitados, afinal, bem ou mal, contavam um com o outro. Principalmente cada um devia contar consigo mesmo, com o discernimento que tivessem. Podiam ainda contar com a compreensão daqueles que acreditavam no amor e seus percalços, para tanto tinham esses bons amigos ao lado.
Fácil evitar os sofrimentos inúteis, os dissabores da vida, mas algumas pessoas custam a compreender o quanto podem ser feliz,  os pouco chegados à reflexão. Já Margarida desde o início, entendeu que não devia identificar sua felicidade com a de  Setembrino, aceita o destino. Deixara de ser fiel aos pais para ser, principalmente, fiel a si mesma. E com aquele ideal de ter uma família e um marido para a vida toda, o que não era impossível, uma vez que o homem que escolhera tinha interesse em preservar a união, mais que o amor, o que é típico do gênero masculino, ela sabia muito bem.
Por tudo de errado na pessoa de Setembrino ele intuía que por isso mesmo fora desejado, e que a chama do amor dela seria preservada se ele permanecesse o mesmo na sua maneira de ser. Pensava que, se mudasse, o amor e dedicação que a mulher lhe dedicava, ia morrer? Ou era birra para testar a companheira? O normal é a pessoa evoluir, impossível  continuar sempre do mesmo, pensar como na juventude, atitude até inconveniente, ou burrice mesmo. Os casamentos ocorriam muito cedo, a seguir vinham os filhos, e a tendência é o casal crescer com a família. Foi o que aconteceu com Margarida e Setembrino. Juntos eles haveriam de viver por muitos e muitos anos, precavidamente reservados um para com o outro. A vida é para ser vivida, e Margarida não podia dizer que vivesse às mil maravilhas, mas achava que a vida era boa do jeito que podia ser, e não importava se o marido dela quisesse desperdiçar parte da sua com vícios.
O céu escurecido de Setembrino, um dia passou a brilhar, o que pode acontecer com todos. Tanto para esse pai de família sem vocação, quanto para o vizinho corretor, que cuidava da família com mão de ferro, principalmente do dinheiro da mulher funcionária graduada, mas que seria incompetente para gerir a própria vida. Mulher e filhos, além dos empregados, o homem devia trazer em rédeas curtas, era o que seu Ambrósio achava.


                           MINHA TIA IMPRESSIONISTA II

         

        Mais nova das duas irmãs, tia Ilza, era caprichosa em tudo, e naquele dia eu observava  ela dar um laço de fita no papel de seda sobre as balas de ovos, quando o primo Tonico entrou com a notícia que um Zeppelin dava voltas pela cidade. Corri para fora de casa, olhei para o alto e nada vi. Era cá em baixo o que vi foi uma horrenda imitação do charuto de gás da aviação alemã, que passava com dificuldade pelas ruas estreitas da cidade, um novo transporte público. O gigantesco Hindemburg voara perigosamente sobre as cabeças, mas explodira no ar um ano antes de eu nascer, pondo fim à carreira dos tais dirigíveis, antes do fim da Segunda Guerra, com a vitória dos aliados. Voltei para dentro de casa um tanto decepcionada, era muito feio aquele monstrengo, diferente dos nossos elegantes ônibus “cara chata”. Minha tia continuava a embalar os doces, encomenda para a festa de casamento da noiva sortuda, que se unia a um endinheirado. Uma nova rica que, cheia de si e de exigências descabidas, em plena rua haveria de reclamar do bolo de aniversário da filha, que estava menos bonito que o da filha da amiga, ricaça tradicional, ela suspeitando de preconceito. A confeiteira tentava explicar que aquela era sua melhor receita de bolo, confeitado com o esmero de sempre. Mas, para a deslumbrada, bonito mesmo era seguir regras sociais toscas, por exemplo, muito consumir, desperdiçar, em suma, reclamar de tudo.  
Na estante da tia Ilza, como de qualquer moça daquela época, não podia faltar os romances de M. Delly, pseudônimo de um casal e irmãos. Também abrigava títulos do escritor cearense José de Alencar, e de outros romancistas nacionais e estrangeiros. Meu tio em seu peculiar jeito de brincar avisava para a sobrinha: “Escrava... ou Rainha? Nem pensar, ouviu mocinha? Nem O Tronco do Ipê”. Para ele, os casamentos inadequados aconteciam devido à certas leituras. Dizia mais: “A idade justa para a moça casar é 33 anos, idade de Cristo!” Certamente porque foi nessa idade que Jesus aceitou a crucifixão... Ao contrário da estante de tia Ilza, a pequena biblioteca de tio Juvenal continha livros de peso literário, como Crime e Castigo de Dostoievski, e outras obras do escritor de fé ortodoxa. E mais Tolstoi, Nietzsche, Platão, Pascal, autores que aguçavam minha curiosidade, tão difíceis de entender. Também tinha os livros de autoajuda dos dois papas no assunto: Napoleão Hill e Dalle Carnegie, fora do meu interesse. Mas do nosso grande Machado de Assis nada, falha imperdoável nesse pequeno acervo, do qual restou a Ética de Espinosa, herança familiar que guardo na estante, minha e de meu marido, bem mais cheia de livros. A vitrola meu tio trouxe de uma viagem ao Rio, com discos de Caruso, que deslumbrava o mundo com seu vozeirão, e se dizia ser capaz de quebra cristais. A canção La Mer eu acompanhava num francês arrevesado.
Certa noite tia Moema  fez uma pergunta que deu início a um longo papa entre as irmãs :
– Ilza, lembra da prima Berta?
– Era boa professora, e ainda cuidava da irmã aluada e seus gatos, carregando por toda a vida um amor bandido, mas ela lembrava do noivo como se fosse um herói, desses que morreram na guerra, mas sumira no mundo, dias antes do casamento. Ela sempre a lastimar: Coitado do Alfredinho!
Lembraram ainda tia Apolônia, com as pernas mais finas que eu já vira, em cujas feições não mais se percebia rastro algum de beleza. Apelidada de Pulu, também saudosa do noivo, piloto de avião, que se espatifou sob seu comando, meio de transporte inusitado na época, invenção recente de Santos Dumont.
– O noivo de Apolônia quis se exibir no ar para a noiva, remorso que ela levou vida afora, como se tivesse matado o desafortunado homem.
Rebatida tia Ilza:
– Sim, mas guardou esse amor como o melhor de si. Sem instrução adequada ao exercício de uma profissão, e sem marido que a sustentasse, mourejou até idade avançada, por último, numa padaria amassando pão. E ainda dizem que as mulheres são frágeis, mas, pelo que sei de muitas das nossas companheiras de sexo, posso afirmar o contrário. Todos sabem que o destino pode ser amargo para certos amores, que não se concretizam, vítimas da fatalidade e de equívocos. O “para sempre”, ou “até que a morte os separe” deixa de acontecer, como prova da transitoriedade de tudo que existe. E o amor como um bem inatingível. O amor, o prazer, como um enigma para não ser de todo revelado por essas mulheres intocáveis e amoráveis, que foram educadas na rigidez da religião do amor sublime, eterno. Tiveram o rompimento súbito de um sentimento, desde então por elas sublimado, o que teria acontecido, quem sabe, para que não sentisse o lento e doloroso fim de sua paixão. Uma delas levada à consciência da morte, reverso da medalha, tão complexa e trágica é a vida.
Tias e madrinhas que eu convivi ficaram sem maridos por força do destino, ou coisa que o valha. “Homem é que não falta”, dizia Sulica nossa empregada, com uma creche particular, crianças de pais diferentes. Ninguém podia ignorar a subida aos céus do amor, ou descida aos infernos da paixão, do desejo. Nem uma coisa nem outra para a vítima de um inveterado, que mexia com as babás dos filhos, uma delas quase criança, levada por ele ao prostíbulo. Genoveva, nome de uma santa de grande coragem, que conseguiu com heroísmo afastar a horda dos ferozes e supersticiosos hunos, enfrentando inclusive o pânico dos homens. Ela conclamava suas companheiras para a resistência, na entrada do batistério de São João-de-Rond: “Podem os homens fugir; nós mulheres pediremos a Deus, e ele acabará ouvindo as nossas súplicas.” Sua homônima não conseguiu se livrar do pior de todos os bárbaros que é o estuprador.
Geração de machistas, que mesmo depois da lutas feministas, diante de uma menina, ainda achavam estar em frente da insipiente concupiscência, pelo jeito sensual, que inconscientemente aparentam. Virgílio, na decadente Roma, fazia versos sobre as meninas que desabrochavam - um poeta que gostava mesmo era dos rapazes. Petrarca platonicamente apaixonado pela quase criança Laurinha. Inconsequentes, quase selvagens, eles deviam estar sujeitos às leis da infância e da juventude, que só foram implantadas na terceira década do século XX na Inglaterra, e bem mais tarde adotadas no nosso país do carnaval e da permissividade. Um célebre ninfomaníaco foi parar nos tribunais, Lewis Carroll, isso por conta da denúncia de uma mãe que descobriu cartas libidinosas endereçadas a sua filha, vindas do escritor, que teria se inspirado na menina para escrever o célebre livro Alice No País das Maravilhas.
No humanismo barroco do século XVII, a atividade moral era agir por dever, instruir através da arte, foi quando Vermeer pintou seus quadros para que as mulheres se mirassem neles, refletissem sobre seus reais interesses no mundo que se modernizava. De consciência calvinista e jesuítica o artista pintou figuras femininas mostrando o quão prazerosos eram os desejos, mas quão demoníacos também podiam ser. Vermeer, tal qual Fausto, anuncia os novos tempos e o interesse financeiro neles contido, faz propaganda do vestuário para acirrar a vaidade feminina, também  dos livros ao lado delas, como vaidade intelectual. “Vaidade, vaidade, tudo é vaidade!”
Tia Ilza findava o papo erguendo outra vez as sobrancelhas para mim.
– Já sei, tenho de acordar cedo para o colégio.



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MINHA TIA IMPRESSIONISTA


            
      Quando tia Ilza julgava algo “extenuante” (outro de seus termos preferidos), não se tratava de peso físico, e sim espiritualmente cansativo. “Ouro sobre azul!” dizia em rasgos de euforia – raro de acontecer – quase sempre em referência ao fim da sua crise de enxaqueca. Não era uma pessoa ingênua, detestava surpresas, para ela os piores crimes eram   premeditados para surpreender. “Nem falem comigo hoje que eu estou com os nervos em frangalhos”, implorava. Nervosismo que do outro lado do oceano o famoso psiquiatra Freud diagnosticava como mal causado pela repressão burguesa da sexualidade, apelidado de neurastenia.  “Isso que você fez está fora de propósito”. E quão sem propósito eram quase todas as coisas para tia Ilza, que os sobrinhos chamavam pelo nome, não queria ser titia.
        






Corria o ano de 1947 e um grupo de índios impressionou tia Ilza, que os viu no centro da capital maranhense. Recém-chegados do sertão brabo, metiam medo pela robustez, queimados de sol, com fartos cabelos negros e lisos a lhes caírem nos ombros nus, com a fama de comerem gente. Em tudo diferentes dos magricelas citadinos, jecas que só, em suas vestes nada elegantes, com as cabeças quase raspadas, que eles imitavam os vitoriosos pracinhas recém-chegados da guerra na Itália. Outra estirpe de guerreiros os silvícolas, seu porte e coragem decantados por Gonçalves Dias, maranhense de grandeza nacional. Considerado modismo o indianismo do poeta, que não lhe tirou os méritos líricos – minha tia fazia questão de afirmar. Os índios não haveriam nunca de ser escravos, ciosos da sua liberdade e seu poder. Esses os visitantes que passeavam pelas ruas de S.Luis com botoque nos lábios e orelhas rombudas – chefes certamente, parentes de Peri que amava Ceci, o casal indígena da bela história de amor de José de Alencar, “O Guarani”, livro que estava à minha disposição na estante. Uma história que enaltecia a raça nativa. Os autores românticos  proclamavam uma identidade nacional centrada no índio no meio da natureza exuberante, de onde viria a índole do homem brasileiro. Já a alma feminina seria herdeira da passividade do negro - desenraizado e escravizado. Também eram herdeiras da melancolia do índio afastado da sua tribo, informações dadas pelas freiras do Santa Teresa. 
     Na saída do colégio havia passado pelos tais índios,  com os lábios repuxados por um pires de madeira, e queria saber o motivo. Tia Ilza recriminou: “Deixa de nhém, nhém, nhém”, expressão vinda do tupi nheén-nheéng, que significa discurso. Ela tinha preconceito apenas com as linguagem: “Não diga midubim, que o nome correto é amendoim”. Muitos termos indígenas adotados pelos civilizados maranhenses, orgulhosos do melhor português falado no país.  Uma lenda assustadora a de Perpetinha, menina branca levada mata adentro, que escrevia nas árvores por onde passava: “Por aqui passou a infeliz Perpetinha”. Os índios ferozes, mas não piores que os colonizadores, ditos civilizados. Naquele dia o enigma de Perpetinha martelava em minha cabeça, quando me dirigi para o quintal de casa, livre dos pesados calçados da escola, uns tanques, como se dizia, com o cabelo sem as tranças que o domavam. Ia me arriscar subir na frondosa caramboleira. Momento de natural liberdade e coragem, eis que escuto: “Carpinteiro do meu pai não me corte os cabelos/ Minha mãe me penteou...” A árvore que falou ou fui eu? Que susto! Nazária me havia contado a história de uma menina enterrada viva, só com a  cabeleira de fora.  Fiquei com medo de perder minhas lindas madeixas. Difícil assimilar o enredo sobre a barbárie sofrida pela menina. A cultura indígena, a própria natureza, em súplicas para que não fosse devastada? O que temos de respeitar, se quisermos  sobreviver, assim como nossa própria civilização, que nos cabe preservar.
      Tia Ilza comentava que a vida urbana estava atraindo as pessoas do campo, de onde saiam em massa para trabalhar nas fábricas, nos escritórios, às vezes, para ter uma vida inferior, sem preparo técnico, sem instrução adequada. As cidades que também iam sofrer por falta de estrutura para abrigar um contingente tão grande de gente, pessoas que iam sofrer no caos urbano e levar uma vida empobrecida. Ela sempre preocupada com tudo e todos, e findava suas preleções erguendo as sobrancelhas. Eu já sabia que era hora de parar.
       – Tens de acordar cedo.
     Cheguei do colégio com a notícia: “A representação de fim de ano é sobre a Natureza e os Tabajaras, índios da tribo Tupi, os ensaios já começaram. Elvira, a mais alta da turma, será o deus Tupã. Madre Arruda já compôs as músicas, com batuque e tudo. Escute só o canto  das meninas no papel de índios Tabajaras: 'Sou Tabajara nessa terra de Tupã, tenho araras, araúnas e xexeus, todos os pássaros do céu, quem me deu foi Tupã'. A senhora não está impressionada, tia Ilza? Pois fiquei assim, vendo surgir a mata  verdejante cheia de pássaros pintada por madre Lima. Só a senhora vendo o esforço nos ensaios para fazer bem meu papel, uma das vitórias régias que despertavam na paisagem amazônica."  Falava sem parar sobre a representação, que acontecia a cada semestre no colégio. Extraordinário o inusitado naturalismo das freiras, seu ecumenismo. Ecológicas antes dos ecologistas, as freiras homenageavam os índios no meio da beleza da natureza com seu pródigo e terrível deus Tupã. Quanto a mim, era uma privilegiada, pela educação recebida em casa e no colégio das irmã Doroteias.   
     – Estou impressionada, sim.
    Confirmou tia Ilza que concluíra um lindo bordado de graciosos laços em cores vivas a fluírem no azul celeste do tecido, peça do seu enxoval. A luz vinda da janela naquele dia banhava suave a figura, de cabelos artificialmente crespos. Guardo essa lembranças impressionista de minha querida tia Ilza, parte do dia deitada numa rede na casa de minha mãe, seu costume de índio, de formação europeia, tomada de uma lassidão própria de sua condição de idosa, viúva e sem filhos. Frivolidades esquecidas no baú da  memória, sua mente ocupado com a fé e a esperança da recompensa divina numa outra vida. Principalmente esperando chegar ao centenário.
Para a sobrinha-bisneta que andava por perto havia, sim, risco do vazio, mas que também procurava preenchê-lo com os sonhos da juventude. O futuro para a tia era a recompensa do céu, que ela esperava encontrar na eternidade; já para a jovem ao seu lado a recompensa era ter futuro, ser feliz. Quem não tem fé, quem não sonha, também não tem futuro, não tem nada; fica à mercê do vazio que pode ser ocupado pelo mal. “Digo isso de cátedra”, ainda fala tia Ilza em plena lucidez.

Nota: Os Tabajaras tinha uma relação histórica com os portugueses, considerados "leais", "valentes", "fortes". A conversão para a fé católica era um diferencial em relação à outros grupos. Mas que uma denominação estanque o nome tabajara designava grupos indígenas em relação com os portugueses. Participaram da Balaiada no Maranhão. 




       RIO 1956
  
                                                                                     




       Foi uma boa temporada que Maria passou no Rio de Janeiro a convite da prima Lenita; os curso de português com Oiticica no Centro, o de datilografia na Saens Peña, e muito mais. Seguiam a ideologia casamento/procriação, como as demais, embora aqui e ali as mulheres já  tivessem a profissão como parte de suas vidas. As duas primas em busca de um bom emprego, ou que surgisse alguém especial para casar e livrá-las do batente e do carito ao mesmo tempo. Paradoxal a dedicação da mãe de Lenita ao lar, enquanto a de Maria, no nordeste, era funcionária pública, não apenas devotada aos filhos, mas querendo que assim fosse. Podia ter receio do perigo que a família moderna correria com a saída das mães para trabalhar, sem o respectivo respaldo da sociedade para com sua vida fora do lar, pública.
     As mulheres responsáveis pelo sucesso ou fracasso dos familiares viviam numa espécie de zona sombria, escondendo suas ambições, mas fazendo as coisas acontecerem, com real influência sobre tudo. A luta primeira vencida, todavia, por algumas, que já tinham autonomia sobre o próprio corpo, controlando o número de filhos, quando o mais comum era a mulher parir mais de uma dúzia de vezes, quando não morria antes, os   partos um atrás do outro. O mundo ameaçador para o gênero feminino, por ser desconhecido, mas que valia a pena conhecer, enfrentar. Ouvia-se falar de Simone de Beauvoir para quem a mulher não nasce mulher, se faz mulher, o que não deixaria de ser, por esse ou aquele motivo, inclusive, se não fosse mãe. A vida exclusivamente privada, algumas com um bom casamento, recebendo a compensação de uma vida confortável no seio do lar. Era ganhar na loteria, diziam. Havia a exigência da mulher casar para garantir o futuro, o que não era tão fácil de resolver, pois havia os pretendentes inadequados, e não se devia pensar em matrimônio como tábua de salvação.
Há algum tempo no Rio, uma amiga de Maria, a Lenir, estudava para o vestibular de medicina, o sonho de ser médica que ela ia realizar. Maria lembrou ter tirado a amiga da cama, convalescente de forte gripe, para que ela não deixasse de participar da primeira festa de debutante no Lítero Maranhense, em S.Luis. Ela e Deusdete, par constante, mas logo estourou a bomba que ele havia engravidado uma garota e ia casar na polícia. Zé ao pé da escada a olhar com desdém para Maria, que não parava de ser requisitada para dançar, como todas as meninas que debutavam. Agora, aos 18 anos de idade, sentia que não era a mesma de 15, 16, 17, a vida que começava de verdade, e surge a crucial questão do que fazer de melhor com ela. O futuro em aberto. E Maria aproveitava a estada no Rio para fazer seus cursos, além das pesquisas na Biblioteca Nacional, da qual se tornara assídua frequentadora, focada na França de Bonaparte, pretendendo participar do programa “O Céu é o Limite” na televisão. O bibliotecário colocou, a pedido da pesquisadora, uma pilha em cima da mesa, aconselhando-a que começasse com “Desirée o Amor de Napoleão”. Lenita já contratada para ensinar em um colégio particular do bairro, e toda importante. Quanto a Maria, ia tentar a sorte no programa de J.Silvestre, na TV Tupy. Isso para depois do carnaval.
   “Carnaval, expressão primária, intensa, modo especial de interagir em sociedade”, dizia o articulista da revista “O Cruzeiro”. Um prazer alternativo a que todos participavam:  crianças, jovens, adultos, até os mais velhos. Compromisso pessoal e social com a maior festa popular do país, definidas as regras de transgressão. Algumas, todavia, a se exacerbarem no culto ao corpo, em estado limite de exibição. Mas o empenho momesco não devia ultrapassar o que estabelece a civilidade, que em certos momentos a civilização cede ao extravasamento, ou seja, pede que se dê algo ao primitivo que habita em cada um, para não correr perigo maior. Preservado o ser civilizado que se é de verdade, ou se quer ser.   Arquitetada a barbárie, o caso era aderir à folia nos melhores clubes da cidade, onde a brincadeira tinha a mais elevada das intenções. Muitos casamentos forjados ao som das marchinhas carnavalescas.
     A amiga Odaíza veio juntar-se às primas para os preparativos. Os cabelos requeriam cuidados especiais. Lenita, com sua loura e ondulada cabeleira, na última hora - e desde que vira uma platinada em Copacabana – disposta torná-la daquele tom. Quanto a Maria, estava satisfeita com as madeixas castanhas que ficavam tinindo com um banho de óleo de amêndoas. E não sobrara dinheiro para pintura, só deu mesmo para comprar aquela calça cigarrete na cor mostarda e um tomara-que-caia amarelinho claro, além dos adornos. A prima de azul. O amarelo beneficiava a pele morena, o azul a loura. Maria acompanhou a prima ao “Elite”, o preferido do café society, termo criado pelo colunista Jacinto de Thormes. Ficou observando a frenética movimentação dos profissionais nas suas tinturas e cortes, aumentada naqueles dias de carnaval. Ao final dos trabalhos na cabeça de Lenita, em vez de mais claros, ela os tinha cor de acaju. Já de volta, o bonde a sacolejar nos trilhos pela Haddock Lobo e Conde de Bonfim, enquanto a dona da nova cabeleira não parava de lastimar, que estava parecendo uma barata descascada.
    Saltaram na parada habitual, quando sempre comentavam os acontecimentos do dia até chegarem em casa, onde risos não faltavam, mesmo sendo assunto sério, o caso da “tragédia” que acabara de acontecer.
– Oh, minha filhinha, o que fizeram no teu cabelo? Exclamou a mãe para a filha que chorava pelo desastre capilar, o pior que poderia acontecer às vésperas do carnaval.
  “O jeito é pintar novamente o cabelo de louro” disse a irmã de Lenita – a casada conforme os bons costumes, ou seja, aos vinte e um anos, o limite. Ela viu as duas passarem, e correu para antecipar a notícia. Era uma pessoa pouco afeita a ser gentil com as duas aventureiras; uma preste a ficar solteirona e a outra seguindo pelo mesmo caminho. O pai de Lenita a essa altura reclamava que ali dinheiro era para ser jogado fora. Retornaram ao cabeleireiro para consertar o estrago, a mãe de Lenita assumindo bondosamente o prejuízo financeiro. Com a nova pintura o cabelo voltaria a ser louro, mas o resultado de um tom sobre outro deu um terceiro: cenoura. Menos mal, todos acharam, pois estavam acostumados com os cabelos claros, combinando com a pele idem. Lenita achando que não ia encontrar nem um pião de obra para querer dançar com ela, se é que ia aparecer algum por ali.
      Acontece que logo que chegaram ao seleto Clube Militar Lenita atraiu a atenção do rapaz que vagava entre os foliões a procura de um par. Não teve dúvida, achara. E não desgrudou da moça de cabelos de fogo durante os três dias de folia, e também nas sessões de cinema no Metro Tijuca. Filho de coronel do exército, tinha um irmão, logo apresentado a Maria. Os pais cariocas enfileirados em torno do salão, acompanhavam de perto o comportamento dos filhos naquele perigoso reino da fantasia. A moçada incansável nos saracuteios ao som das marchinhas misturado com o barulho característico do assoalho antigo. Os músicos também incansáveis. Moças e rapazes que, além de se divertir, queriam encontrar um par para um compromisso sério, na época, aliança de noivado, anunciando o próximo passo da união do casal diante do altar, aos pés do padre, jurando união até a morte. Não como agora, em que tudo acontece, menos casamento. A dança proporcionava um prazer imenso pela folia carnavalesca que poderia desembocar em alegria matrimonial. Uma coisa não tendo nada a ver com a outra, e não tinha mesmo, pelo menos para as duas primas, os futuros maridos bem longe dali. Tudo chegou ao fim quando os rapazes da zona sul convidaram as moças da zona norte par ir com eles ao barzinho em Ipanema. "Estão com más intenções", desconfiou a prima Lenita. Depois houve o encontro casual de Maria com o Zé que lhe disse: "Estás de volta a S. Luis? Logo agora que estou chegando!"  
       No convívio com os parentes cariocas, com o modo de viver no Sul do país, a maranhense aprendia, principalmente, a não perder sua identidade, o que nunca lhe foi proposto. Mas a valorizar os costumes dos outros, como valorizava os seus próprios. E os bons sentimentos, que sempre acompanharam a filha de dona Deisinha e neta de dona Carminha, fazendo com que passasse nessa prova e em outras ao longo da vida, por acreditar que para merecer respeito, consideração, deve respeitar as pessoas, em primeiro lugar. Era sobrinha e prima, não uma parenta abusada, desagradável, mas com o dever de ser amiga daqueles que lhe davam uma boa oportunidade na vida. Parentes a quem Maria ficou grata por lhe fazerem experimentar sentimento de compreensão e afeto por eles, e também compaixão, o que sentiu quando a prima sofreu uma dolorosa infecção.




                                    DE CASAMENTOS E MUITO MAIS



              Noiva de Geraldo por quase uma década, prima Encarnação decidiu não mais adiar aquela angústia de ter o casamento protelado, até por uma causa justa, o noivo era arrimo de família. Tempo das coisas caminharem devagar, os noivados longos, mas não a ponto de comprometer a honra da moça. Principalmente, devia o enlace ocorrer antes que o casal perdessem o entusiasmo um pelo outro. Encarnação cheia de dúvidas sobre o que queria naquele momento de sua vida, se podia confiar naquele homem, para com ele constituir família e ser feliz.  E não foi tão de repente que a prima desistiu de se casar - mas era o que parecia. A irmã ao lado do seu taxista indignada com a outra que estaria de “cabeça virada”. Dois anos antes Encarnação começou a trabalhar como autônoma, após concluir o curso de contabilidade, e aos trinta anos de idade perto de fazer trinta e um, resolveu tomar uma atitude diante da perspectiva de um futuro ao lado daquele homem sem iniciativa, ciumento, candidato a péssimo marido. Ela tinha assistido no Edem “Minha Adorável Pecadora” com Marilyn Monroe, sedutora dançarina, que no início do filme aparece tricotando nas coxias do teatro, atitude doméstica. Dava sinal de que queria outra coisa, ou seja, conquistar o rapaz rico (Yves Montand) ao seu lado, e por ele deixar a dança que exercia, menos por competência que contingência, a profissão artística confundida com prostituição. Durante todo o enredo a protagonista cantarolando a música que fala dos “especialistas”, o filme de George Cukor na sub-reptícia intenção de recomendar os afazeres domésticos como a verdadeira vocação feminina, e a mais digna para a mulher, melhor que se rebolar no palco, que poderia ser da própria vida. Adaptada aos novos tempos de pedir apoio aos especialistas - homens, lógico - com quem elas deveriam ter a humildade de aprender sobre a vida.
Ainda na década de 50, Elizabeth Taylor aparece com todo sua esplendorosa beleza em Disque Butterfield 8, na primorosa interpretação de uma mulher que recorre assiduamente ao  analista, por se sentir desorientada com a vida  corrida de mulher liberada, ou melhor, libertina, sempre ao  telefone, atendendo aos chamados dos homens, o que faz por gosto, não por dinheiro, como se houvesse vantagem em qualquer das modalidades. Nesse filme dirigido por Daniel Mann a protagonista seduz um homem muito bem casado e rico, esnobando o amigo músico (Eddie Fisher). Por conta disso acaba punida com a morte num desastre de carro, quando fugia da sua vida de culpada. O cinema com a pretensão de ser mais que um entretenimento. 
Na década seguinte o musical A Noviça Rebelde encanta Encarnação, tendo como protagonistas Julie Andrews e Robert Plummer. Beleza de imagens, boas intenções, mas o enredo   intriga a espectadora moderna, a filha mais velha do capitão Von Trapp, Leisl, por exemplo, canta para o namorado: “Tenho 17 anos e vou fazer 18, preciso de um homem mais velho que possa me dizer o que fazer.” Ou a jovem precisaria de um companheiro lhe acompanhasse a maturidade? Tempo de perseguição nazista, e o imaturo rapaz, com rapidez, se torna colaboracionista, deixando a namora perplexa. Quanto à noviça, cheia de dúvidas, retornando ao convento para receber o conselho da superiora: “Escala todas as montanhas/ siga todos os atalhos/... até encontrar o sonho/ que exija todo o amor que tiver para dar.” 
Voltando a Encarnação, que agora não tem casamento à vista, e decide partir para uma nova vida, já com um emprego garantido de contadora no Sul do país. Mas como convencer a família nesse sentido? Se fosse casada podia ir até para a caixa-de-prego com um desconhecido. Como continuava solteira, tinha um problema sério a resolver. Protagonizara um quase escândalo com o longo noivado, seguido do seu fim brusco. “Com a tua idade quem vai ti querer daqui pra frente?” admoestou-lhe a cunhada apreensiva com a situação, quase um impasse, a preocupar a família. Agora vinha com a novidade de morar longe, um absurdo!
Pressionada, Encarnação olha a cara de lua cheia e suada do Zeferino, e teve um estalo, não bem o de Paulo. O balconista da Rianil acabara de lhe dizer: “Agente aqui não tem futuro não”. Arquitetou então um plano, uma saída, que se casassem na Igreja para os pais dela darem satisfação aos familiares e conhecidos. Embarcariam logo a seguir para o Rio, onde cada um seguiria seu caminho. Ela já tinha destino certo, e quanto a ele, não seria difícil arrumar trabalho, com experiência no balcão, época de mão de obra valorizada, pleno emprego. O plano cabia como uma luva para os dois, não? Dito e feito. Casaram. E no dia de Santa Edwiges, padroeira dos endividados, como aquele homem dizia viver. Mas não foi fácil convencer o padre da paróquia, que desconfiava do par a sua frente com toda aquela pressa e não abria mão dos proclamas. Às vésperas da viagem, já de posse das passagens no Loide que zarparia pelos mares nos próximos dias, nada ainda estava resolvido na Igreja. Foi quando Encarnação, depois de reclamar da intransigência religiosa, lembrou que tinha uma freguesa, amiga do sacerdote. Apelou para que ela intercedesse, era só explicar ao celebrante que a noiva devia estar no Rio sem demora para assumir um trabalho importante. Uma “mentira piedosa”, como alegava a carola prima Rute para certas meias verdades. Mas nunca que Encarnação tivera esclarecimentos quanto à religião, doutrina lhe tocava de modo vago, distante. Não era afeita a mentiras, intransigente quanto a isso, mas viu-se numa contingência. Que jeito senão mentir? Deu certo.
O casamento teve direito a bolo de noiva e muito mais; os amigos a elogiarem tudo. Só a tia Cândida reclamou porque o noivo não beijou a noiva após a cerimônia, como de praxe. No dia seguinte, lá se foi o casal para o porto de Cabedelo. Os parentes em peso na despedida, com a mãe aos prantos pela filha casada tão às pressas, temia por seu futuro ao lado de um desconhecido. Mas raras as mulheres que conheciam de verdade os homens com quem se casavam, davam sempre um salto no escuro. Perto de Encarnação a realidade da vida, e ela consciente de ser uma cumpridora de suas obrigações dentro da família e para com a sociedade, das oito as oito horas no batente, contando as horas extras, que não dispensava, desde algum tempo com planos para o dinheiro economizado e para sua vida. Aos interessados estava casada e ponto final.
Restava guardar a devida distância do marido de “araque”. Tinha observado ainda subindo as escadas do navio uma solicitude que fugia do combinado. Por felicidade suas economias tinham folga para ela pagar a passagem na segunda classe. O tal consorte viajava na terceira. A travessia oceânica duraria uma semana, mais ou menos, da Paraíba ao Rio de Janeiro. Os dois primeiros dias sem novidades, ela descansando na cabine dividida com mais duas moças; uma que ia estudar medicina no Rio e a outra em fuga de uma vida miserável na cidade natal. Não podia era adivinhar o que acontecia em terra firme. Ou podia? Os pais foram acordados naquela noite por gritos vindos da rua mal iluminada, não dando para ver a imagem da mulher numa sombria noite sem lua. Tratava-se de uma mãe desesperada que carregava um bebê no colo, com mais duas crianças segurando-lhe a barra da saia. O que significava aquilo? E logo os pais de Encarnação entenderam tudo. Era a mulher do tal marido que a filha arrumara na última hora para se mandar mundo afora, e que esbravejava aos quatro ventos seu inconformismo; soubera do casamento e até da festa.
Pior a emenda que o soneto o casamento de Encarnação, os pais acharam. Triste a situação daquela infeliz, abandonada com filhos e tudo, mas disseram do outro lado da porta que não tinham filha nenhuma que tivesse se casado com o marido dela, que fosse reclamar noutro lugar. Ainda algum tempo ficaram aguardando, até uma rebordosa, o que não aconteceu. A mulher sumiu deixando apenas o rastro do escândalo. Enquanto isso... Bem, a tripulação do navio avisava a escala na chamada cidade de São Salvador, na manhã seguinte. Resolveu espiar o baile de despedida dos turistas no convés. Quem lá estava? O peralta, que passou a fazer-lhe sinais, convidando-a para passear no convés. Fugiu depressa para seu esconderijo, tal qual uma criminosa. No dia seguinte ia aproveitar para rever parentes. O navio ficaria aportado na capital baiana por um dia apenas.
Mal pôs os pés na cidade, sonho para qualquer turista – se ela fosse um deles – e deu de cara outra vez com a figura animadinha daquele que era a última pessoa que Encarnação queria ver. Zeferino perguntou para onde ia, como se ela tivesse de lhe dar satisfação. Solícito, emendou a conversa, queria lhe fazer companhia. Encarnação disse um não bem redondo, e partiu no táxi que passava. O motorista de cabelo black power, como que adivinhando que ela fugia de algo, enfiou o pé no acelerador fazendo o carro voar. Um desses taxistas pouco ou nada profissionais que, se alguém caía na asneira de fazê-los parar, mal se entra no carro zarpam pela rua desafiando o transito em manobras radicais. Pior foi ser expulsa do táxi, atrapalhada com destino que devia tomar, esquecida do nome da rua. Em Salvador o taxista queria assustá-la vendo a apreensão da moça sozinha pegar a condução, e ainda teve o descaramento de cobrar o dobro pela corrida perigosa, alegando que era feriado na cidade. Aliviada saltou do calhambeque na Barra.
Contou tudo à prima Berenice. Não só o susto recente, também o enrolado casamento e mudança para o Rio. Pouco se conheciam, mas de imediato simpatizaram uma com a outra; a prima aconselhando-a que ficasse na cidade, a mais tradicional e, paradoxalmente, com o povo mais caloroso do mundo, logo ia sentir isso. De onde vinha também era assim, mas tinha de seguir em frente. A prima insistindo: “Você fica, e a gente faz uns bons passeios para conhecer melhor a cidade. Sou a única solteira da casa, espero que não por muito tempo. O que não achei até agora foi o homem da minha vida, qualquer dia vou achar”.
– Desculpa, mas não posso ficar.
Já de noitinha Encarnação estava de volta ao navio, com Zeferino agora suplicando para que abrisse a portada da cabine, que ele estava triste e queria conversar. E mais, que tinha adorado a família dela, o que falava de um jeito que só vendo. “Qual família?” Perguntou assustada, pensando no perigo do cara ter atravessado a capital baiana atrás dela, o que constituía aviso da maior gravidade quanto às intenções dele.
– A da Paraíba, lógico!
– Ainda bem.
No resto da viagem Encarnação e Zeferino estiveram todo o  tempo brincando de gato e rato. Por último já riam quando se deparavam em frente um do outro. Até que chegou a hora do desembarque no Rio. E para quem tanto sonhara um dia viajar de navio, era uma contradição sentir um alívio ao descer aquelas escadas. E nunca mais ela viu o balconista, nem mais soubera da família que ele abandonara na Paraíba. Apesar dos pesares o plano foi um sucesso. Como ele já era casado, pois havia mentido que era solteiro, não tinha validade o outro casamento. E essa a única vez que Encarnação se casou. Depois de um tempo no subúrbio, foi morar em Copacabana com uma filha de produção independente, que lhe deu um neto, desses surfistas de fala arrevesada e cabelo parafinado, o dia todo pegando onda e dizendo que o caso dele era ser feliz, como se a felicidade estivesse condicionada com o não fazer nada de útil, como, por exemplo, estudar ou trabalhar. A mãe sem disposição para reclamar do filho único, e muito menos incentivá-lo a fazer de sua vida algo importante.
      O final da história de Berenice não foi nem melhor nem pior, apenas diferente. Após um casamento desastrado, resolveu também ir morar no Rio, para onde todos queriam ir, em busca de um futuro melhor. Não tardou a encontrar um corretor de imóveis viúvo, encantado com sua doce e feliz pessoa, o que o gringo dizia para todos. Com o novo marido Berenice foi morar em um sítio no litoral fluminense. Passou o tempo, e ela cada vez mais parecida com uma oriental, o que diziam para a legítima descendente de índios, dada ao modo de viver hippie daqueles tempos. O casal teve uma única filha que, a certa altura de seus caprichos de jovem mimada, andava pelo mundo visitando templos esotéricos, e no lugar de notícias mais nítidas manda  do Ganges um retrato em que mal aparece na claridade, por estar banhada pela iluminação divina, segundo suas palavras.

Um comentário:

  1. É interessante como neste conto a ficção se encontra com a realidade. A vida está cheia de histórias como esta. A autora narra a ficção com a mesma força dos acontecimentos. E justifica a metáfora de que "a arte imita a vida" - sendo a recíproca também verdadeira.
    Murilo M.Veras

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