FICÇÃO
SOMOS ETERNOS
Depois da missa, ainda descendo os degraus da igreja, Rosinha demonstrou pressa em falar sobre a homilia do padre com Maria e as irmãs, Célia e Ana Maria. Há falta de fé no mundo atual:
— Não sei se concordam comigo, mas tempos atrás as pessoas se sentiam abençoados por viver, hoje se acham condenadas à sobrevivência, mesmo com o alegado progresso. O que aconteceu? Nós que mudamos, ou foi o mundo que mudou?
Célia respondeu de pronto:
Mudamos nós, assim como também mudamos o mundo em que vivemos. As mudanças, hoje, nem sempre boas, como deve ser, ou seja, leais para com o ser humano, dentro da perspectiva cristã. Assusta o que acontece com o mundo, parece se encaminhar para um triste fim, e sem mérito algum.
Ana Maria deu seu aparte:
— Mesmo que muitos tenham lutado por uma vida digna de ser vivida, o pior de nós parece ensejar vencer nosso melhor. A luta cotidiana pela sobrevivência no passado tinha o amparo da vida espiritual. Hoje, desamparados espiritualmente, o futuro é uma incógnita.
As quatro amigas haviam parado na calçada para darem continuidade à conversa. Maria esperou para falar, tinha uma opinião formada:
— O tempo vai nos mostrar o resultado das sementes que plantamos, se deixamos brotar o mal e relegamos ao esquecimento as sementes do bem.
As três confirmaram, mas Célia queria dizer algo mais:
Os cristãos sonham com a eternidade, mas prospera a descrença, fomentadora das mazelas existentes. A vida fugaz de hoje a nos testar se vale a pena lutar por ela.
Ana Maria tem esperança:
Ainda credito que somos eternos. Mas se abandonada de vez a esperança, que manteve a humanidade de pé até aqui, o que resta?
Maria volta a falar:
—Decaída como está a vida humana, pensam os pessimistas em dar um fim a tudo.
Rosinha dá seu aparte final:
Resistem os esperançosos, que acreditam valer a pena lutar pela vida e clamar pela misericórdia de Deus.
VERMEER
MULHER DA BALANÇA
Johanes
de Vermeer (1632-1675) viveu numa Delft renascentista e decadente, onde pintou suas
obras primas do barroco alegórico, que faz parte da extraordinária pintura holandesa
no século XVII. O mundo cristão no Ocidente dividido entre católicos e
protestantes após a Reforma de Lutero, quando os dogmas do catolicismo foram rejeitados
pelos protestantes, que também se voltaram contra a estética da deslumbrante
capela Sistina, ápice da perfeição artística. O quadro A
Mulher da Balança sugere equilíbrio, a figura feminina tem o olhar tranquilo e postura digna, mas não resta dúvida que se equilibra entre o paganismo e o cristianismo. Daí o pintor reformista colocar por trás dessa mulher a tela do Juízo Final. A mulher pesa na balança sua riqueza material, conquanto permaneça sua aura espiritual. A vida em Delft, como em Delfo, Tebas e Argo, oscila entre
o dionisíaco e o apolíneo, na corda bamba do órfico encantamento. No chamado
Grande Século, a experiência de vida beira o excepcional, assim como também
excepcional é o nosso agitado e permissivo medievalismo contemporâneo, ateu e materialista, grandemente supersticioso. A igreja em sobressaltos. Diz Aristóteles
que há personagens que perseguem um fim nobre e outras de “mímese inferior”. O
catolicismo contra-reformista desdobrado em três modelos: o jesuitismo
das Missões; o misticismo, que envolve algumas poucas ordens religiosas,
e o jansenismo, embebido de calvinismo, contra a mística. O mundo reformado dá início à vida moderna, temática dos quadros de Vermeer.
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