SEMPRE
MEMÓRIA
Na
época de Ilza, tia de Maria, o gosto das moças para leitura estava focado nos romances de M.
Delly, pseudônimo de um casal de irmãos, livros encontrados na estante dessa tia, assim como outras obras de igual teor. Em maior destaque as obras de José de Alencar. O tio João repudiava leituras melodramáticas, e dizia para a sobrinha, aos onze anos: "Nem ‘Escrava...ou Rainha?’ Nem ‘O Tronco do Ipê’, viu mocinha?” Tais leituras seriam propiciadores
de amores inadequados. Ele tinha um pequena biblioteca, com obras de maior peso literário. Aos quinze anos, quando Maria convalescia de uma tardia
catapora e leu Crime e Castigo de Dostoievski e Anna
Karenina de Tolstoi. Tentou ler Nietzsche, Assim Falava Zaratustra, e esforçou-se para entender Platão
em O Banquete e a obra Pensamentos de Pascal. Quanto aos livros
de autoajuda, Napoleon Hill e Dale Carnegie, não obtiveram seu interesse.
Do pequeno acervo do tio João guarda a sobrinha, Maria, uma
relíquia: Ética, de Espinosa, que hoje
faz parte da biblioteca, sua e do marido, bem mais cheia de livros. Desse
mesmo tio lembra ainda da vitrola que ele trouxe de uma viagem de trabalho no Rio, onde rodavam os discos vinis. Caruso com seu vozeirão, que diziam ser capaz de
quebra cristais, também a empolgante Polonaise de Chopin, e para jamais esquecer, a canção La Mer, que Maria acompanhava com seu francês arrevesado. Esse tio João esperou a vida toda ficar
rico para casar, sem precisar auxílio da família da moça, o que ele falava,
e acabou solteiro. Tentou negócios que não deram certo, deixando um bom emprego para trás, e ótimas
pretendentes. Vestia-se bem, seus ternos de tecidos de algodão da melhor
qualidade e de cor clara, sendo engomados
por uma profissional de alta competência, apelidada de Sua Graça, palavras da mesma pessoa, que perguntou elegantemente ao chegar para o primeiro dia de trabalho: “Qual a sua graça?” Ela indagava o nome da avó branca de Maria, que ficou feliz de ter em casa uma pessoa tão elegante no falar e tudo o mais digno de destaque. A engomadeira da "cor de azeviche", conforme a poética.
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Em
quatro cadernos escolares Maria fez seu aprendizado para o exame de admissão ao curso
ginasial, que tinha a dureza de um vestibular. Aprendeu ali a gostar de resolver
problemas matemáticos. Exemplo: A distância entre duas cidades é de 800 km. Um trem com
velocidade constante percorre em 3 horas os primeiros 120 km. Quanto tempo levará
o trem para percorrer os quilômetros restantes? Era fácil. Difícil era ir ao
colégio Marista, assistir a representação dos rapazes, o convite feito por
Leila para verem seu irmão no papel de Hamlet. A religião menos mística e mais
artística, a arte como a “manifestação desenvolvida do amor e da verdade que se
busca na face da eternidade”, o que o padre disse na ocasião.
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Procurar trevo de quatro
folhas no jardim da mãe Carmem era uma diversão para Maria nas tardes ensolaradas da capital maranhense. Algumas tardes ocupada nessa tarefa, enquanto
cantarolava: “Eu vivo esperando e procurando um trevo no meu jardim. /
Quatro folhinhas nascidas ao léu / E me levariam pertinho do céu. A
meia-morada da família transformada em bangalô, com um pequeno jardim cuidado
com esmero por essa avó. S. Luís sendo modernizada, quando ainda não tinha sido
elevada a Monumento Universal de
Arquitetura e Urbanismo e Patrimônio da Humanidade.
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A
feminilidade em épocas passadas considerada um bem, apenas pela procriação, mas tinha outro
lado, fragilizar as mulheres. Os órgãos reprodutores benfeitores, ao mesmo
tempo algozes. Qualquer mal-estar que tivessem as filhas de dona Florinda, ela
dizia que era por conta dos ovários. Não só essa mãe culpava os ovários por
tudo, mas as mulheres estariam sujeitas, por sua condição, por seus ovários, a
uma vida de dores e sofrimentos, e a um passo da santidade preconizada pelo
catolicismo mal interpretado. A filha mais velha dessa senhora, inteligente,
estudiosa, acusada de “podre dos ovários”. Os ovários e o útero ligados às
doenças da alma, aos distúrbios emocionais. O cérebro fazia o contraponto, do
qual a mulher não podia se valer, por ser considerado um inimigo poderoso para
quem devia cultivar a bonomia. Algumas mulheres realmente
possuidoras de uma placidez bovina, de grandes ancas, mas por conta da
inatividade, da gordura acumulada, ou de doença endócrina, mas consideradas perfeitas
representantes femininas. Em futuro não muito distante, as mulheres seriam
colocadas no outro extremo, cultoras da magreza, em um contexto de mulheres
estressadas, anoréxicas.
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Por
convenção, modismo, houve a geração de mulheres que jamais admitiu ter saúde.
Gabavam-se de ter a vida por um fio. Obrigadas à inatividade, se faziam de doentes
para legitimar sua fraqueza, para ser interessantes, até para se livrarem dos
assédios dos maridos e só assim evitar sucessivas gestações. Elas escondiam a
fortaleza nos desmaios. Geração após geração de mulheres sem vontade própria,
nem disposição para enfrentar a vida fora de casa, o que não seria nada fácil naquela
época. Discriminadas, aceitavam tudo pacificamente, ou passivamente, antes da emancipação feminina. O que não mais
se vê nos dias atuais, apregoar como real vocação da mulher cuidar apenas da
casa e dos filhos. O certo é que as mulheres das gerações passadas eram uma
fortaleza em todos os sentidos. Só não podiam se orgulhar da capacidade mental
que tinham.
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Telefonia
e telegrafia precárias, e quando pessoas conhecidas faleciam em outro local, aconteciam mensagens telepáticas, consideradas normais, nada do outro mundo. E uma maneira simples de se livrar das dores era através da homeopatia, na casa de Maria os incipientes medicamentos tirados de uma preciosa
maletinha de doutor do homeopata amigo da família. Não muitas as dores da infância, e as mulheres até inventavam alguns "achaques" para impressionar e serem tratadas com mimos, o que sempre importa em caso de doença. A ciência sendo aperfeiçoada para combater mais
efetivamente os males do corpo e da mente, que da alma, o que se fazia era recorrer a Deus, e com sucesso. Alvissareira promessa da ciência de uma vida humana prolongada, quase sem sofrimento.
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Na
condição de racionais, o que as pessoas sabiam era que seus atos deviam ser pautados na reflexão. Decisões
tomadas conscientemente sobre o que se queria da vida, não obstante muitas
coisas aconteçam independentes da vontade de cada um. Trabalhar a favor e não
contra, ter responsabilidade para consigo mesmo e olhar pelos outros seres,
principalmente, os semelhantes. Seria uma resposta sobre o sentido da vida
humana. Vida que tem grandes mistérios, a serem desvendados, ou não. Maria escuta
uma voz cristalina que lhe fala, vinda do passado, ou até mesmo do futuro. Faz
algum tempo, e é bom pensar que essa voz reflete todas as vozes do bem que lhe
falaram durante sua vida real, também na ficção, e mais ainda na oração. O
tanto que esperam dela como pessoa, no que acredita.
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Naquele tempo não havia Dia das Bruxas...
Feliz Dia das Bruxas! Para quem festeja a data!
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