TEMPO DA QUARESMA
MOÇA DE
BRINCO DE PÉROLA
Luminoso rosto feminino salta da escuridão no quadro Moça com Brinco de Pérola, do pintor holandês Johannes de Vermeer. A pérola tradicionalmente associado à ortodoxia pende do turbante oriental, colocado com ousadia
artística na cabeça de uma ocidental, que tem uma história a revelar. O domínio do Islã no Ocidente chega ao fim após
séculos de dominação, e parte sem demonstrar
alegria, dor, tristeza, nem compaixão, mas com uma espécie de desdém, o que reflete a imagem. O Oriente
grande patrocinador do movimento de renovação que ocorrera no Ocidente,
inclusive, o Renascimento. Também vai embora a velha ortodoxia cristã, por se
opor ao protestantismo, e não mais confiar em Roma. A cristandade reformada vai seguir rumo à modernidade, como tempos atrás havia partido para as trevas, após as invasões bárbaras.
A moça do brinco de pérola seria, pois, uma ocidental travestida de oriental. A decadência
moral assola o Ocidente, necessita recristianizar-se, o que de início acontece através da ortodoxia espiritual, logo depois descartada. A parte frontal do turbante
da personagem concebida pelo artista de Delft, tem a cor azul, e forma ondas, tal qual o mar agitado da navegação por onde as mercadorias trafegavam de lá par cá e vice-versa. O azul
também da religiosidade Mariana vinda do Oriente, que se perpetua no
Ocidente. No alto da cabeça o adorno forma
um coque em amarelo ouro, que está parcialmente desfeito. O ouro da riqueza espiritual que em parte se desfaz. Como no passado, ortodoxos e latinos acusavam-se mutuamente de heréticos, assim acontece entre católicos e
protestantes.
O primeiro cisma na igreja cristã acontece quando os cristãos orientais buscam exilar-se com sua fé tradicional, do mesmo modo a cristandade latina quer evitar as heresias que pipocavam no Oriente. Os ocidentais ficam sem o saber antigo, sem a filosofia, e acabam culturalmente empobrecidos em relação aos bizantinos. Os árabes, em sua cultura nascente, tomam
conhecimento dos filosóficos gregos em esparsos manuscritos preservados pelos
monges orientais, os heréticos nestorianos. Tornam-se assim herdeiros do
conhecimento, que iriam transmitir aos
latinos quando invadiram o Ocidente. Foi quando os monges ocidentais passaram a se dedicar aos estudos, à leitura e escrita, com o que se
capacitaram para ciência e tecnologia, como ela veio a se desenvolver no
Ocidente. Mestres na escrita tornaram-se também pioneiros na agricultura, astronomia, economia, e tudo o mais.
No quadro de Vermeer a moça parece falar algo incompreensível, remoto, além do que se pode entender, até mesmo o artista, que pinta em cores luxuriantes o Oriente, a
olhar com ironia para Ocidente numa triste encruzilhada. Sabe-se que no
Ocidente, ao tempo dos mulçumanos, havia disciplina e tolerância entre as
crenças, numa convivência pacífica. Na Espanha islâmica era grande a efervescência
cultural, centro de discussões eruditas, de leitura e escrita, onde abundava a
poesia cortesã, e o número de livros era superior ao volume das maiores bibliotecas
do Norte. O
caminho fora aberto para o conhecimento, ainda pouco científico, numa sólida,
próspera e bem governada, Holanda, mas em vários aspectos bizantina, de um
passado esplendoroso. Estaria a moça a lançar impropérios contra hereges,
escravocratas, anunciando castigos? Parafrasear maldição era costume em
Bizâncio, no enfrentamento entre heréticos e ortodoxos.
A igreja reformada, tanto católica quanto protestante, faz parte da progressista civilização ocidental da palavra escrita. Já a civilização oriental tem o predomínio da oralidade, com talento para a retórica, daí os lábios entreabertos da moça, que parece balbuciar algo, e sangrar. Estaria a moça a lançar impropérios contra hereges, escravocratas, anunciando castigos? Parafrasear maldição era costume em Bizâncio, no enfrentamento entre heréticos e ortodoxos. Lamenta as civilizações sanguinárias, que avançam em conhecimento, como também na descrença, sem fé. O ortodoxo Dostoievski diz através do
personagem Ivan Karamasovski: “Se a alma
é mortal e Deus não existe; tudo é possível”. A crítica do escritor russo é contra toda forma de moral e
ética a partir da imanência, ou seja, do plano da natureza, ou da história.
Justamente as armas do humanismo que iriam despontar como força propulsora do
progresso alicerçada na natureza. Já para a ortodoxia só há
salvação com Deus, na transcendência.
A moça pintada por Vermeer pode ainda representar uma pseudo-egípcia a proferir palavra articulada, força dinâmica, de certa magia, em contexto cultural específico. Ou a
ortodoxa moça estaria entoando o Kyrie Eleison
para entrar em estado de contemplação, uma das chamadas coroas místicas da
igreja bizantina? Ou salmodiando? E quem sabe profere a prece canônica do
islamismo: Allah hu’ Akbar (Deus é grande)?