TRAIÇÃO E MORTE
“Emma
Bovary sou eu”, declara o mestre do realismo francês, Gustav Flaubert (1821-1880) ao depor no tribunal,
acusado de obscenidade no livro Madame
Bovary, de 1857, onde o escritor esmiúça a epopeia burguesa de uma mulher
que comete adultério. A jovem Emma Raunault casa-se com Charles
Bovary, ambos jovens e recém-saídos dos estudos, que vão enfrenta a realidade da
vida; ele como médico da província, ela esposa e dona de casa. O realismo da narrativa de Flaubert, como se o escritor dissecasse um cadáver, em que a protagonista
se transforma. A burguesia em processo de rebaixamento, desde os massacres de 1848, em Paris. “Em cada peito a liberdade desperta/Todos
protestamos com vontade” diz Goethe, grande representante da burguesia do século XVIII e XVIX, com laços no século XVI e XVII. A classe da burguesia que em 1789 revoluciona o mundo com o lema “Liberdade,
igualdade e fraternidade”. A tomado do poder por
revolucionários que leva à trágica morte do
casal real, Luís XVII e Maria Antonieta, seguida da desordem em todo o país. As cabeças dos nobres rolam com o
fim da monarquia, assim como logo iriam rolar a dos “cabeças” do movimento.
“Flaubert
resume um tempo histórico: o isolamento na mediocridade, a atmosfera asfixiante
em que a vida se transforma. Sem direção, nem propósito, roubada de qualquer idealismo, onde
toda esperança é mera ilusão”, diz o professor de literatura inglesa e
americana da USP, Marcos Soares, vendo no romance de Flaubert uma grande
tragédia burguesa. A burguesia que é a classe dominante nas sociedades
capitalistas, típico da classe burguesa a civilidade e responsabilidade, sem heroísmos. Burguesia
igual a cidadania. Houve, todavia, um rebaixamento geral, com a massificação do gosto , com mercantilização da arte, mortal do ponto de vista da criação artística. O artista desce de posição, baixa de nível, como se diz modernamente. Antes de Madame Bovary, Flaubert publica a obra
prima, A Educação Sentimental sobre
um jovem provinciano, Frédéric Moreau, que vai para a revolucionária Paris em
busca de fortuna. Já Emma Bovary, filha da burguesia
decadente, educada pelas repressoras freiras, trata de driblar as freiras suas educadoras, lendo romances, e lá fora se deixa levar pelo ambiente ideologicamente dividido.
A
mesma traição da Bovary seria a literária perpetrada por Flaubert, que se propõe um ascetismo radical. A traição e consequente expiação de culpa,
justa para a época. O ímpeto humanitário-revolucionário da sociedade francesa, adoece de morte, a
paixão abstrata trai o espírito
burguês, realista, anti-ideal. “O espírito do real é verdadeiro ideal”, continua Goethe. Difícil entender a alma francesa da época e mais ainda a burguesa
e reformada Alemanha que se deixou levar pelo idealismo de Hitler, seu misticismo,
sua loucura, que pregava coisas totalmente fora da ética burguesa. No livro
Anna Karenina, também acontece a traição
e consequente morte da protagonista. O drama psicológico e familiar de Leon
Tolstoi, que a certa altura transcende para abarcar o momento histórico da
Rússia. Os padrões morais opressivos faz com que aconteça a traição. O dilema sem solução, que é a paixão daquela mulher pelo conde,
seu amante, e a impossibilidade de continuar a ter vida feliz ao lado do filho.
A
consciência religiosa de Tolstoi pode ser confrontada com a do ortodoxia de Dostoievski.
Não há o sacrifício supremo da morte em Crime
e Castigo, o que faria um criminoso se transformar em mártir. O crime perpetrado
pelo rebelde e contraditório Raskolnikov, e a futura tomada de consciência do
crime cometido e sua punição. Tolstoi em Ressurreição, concluiu em 1899, aos 71
anos, aceita que é
próprio da natureza humana a transgressão, o que nem a esfera familiar, nem o
amor pode evitar. Há todavia o perdão redentor, uma vez que a rebelião pode ser justa contra o domínio
do que está acima, na vida social e pessoal. O escritor justifica, por exemplo, seu
interesse em negociar os direitos autorais, antes abandonado, mas que serviria de ajuda à emigração dos isolados dukhabors. Flaubert pensa no compromisso que se tem para com o outro, assim como o artista para com sua arte, sob pena
de morrer de remorso. O romancista não estava mentindo quando declarou “Madame
Bovary sou eu”.
COLABORAÇÃO PARA O "CLUBE DO LIVRO" DA
ABACE, QUE HOJE COMENTA
MADAME BOVARY DE GUSTAVE FLAUBERT