CONTO
GRATA SURPRESA!
Homenagem
aos que enfrentam a vida com coragem!
Geovana desceu do
carro com seu precioso vestido de organza florido, e de pronto recebeu a ajuda
do marido para livrar-se das poças d´água, consequência das chuva de verão na
rua sem calçamento. Ser amparada por tão atento cavalheiro era o máximo de
felicidade, depois de ter dançado com ele, na sua festa de formatura, um encontro
que acabou por conduzi-los ao matrimônio. Abandonar o palco da vida pública e
todo o sucesso que pudesse dele advir foi para ela um acerto honroso. Vicente também
deixava o Rio de Janeiro, onde cursava medicina, para retornar a S. Luís, cumprir a missão que tinha
em sua terra natal. Antes de chegarem ao Casarão — herança do casal na pacata cidade
— prestes a completar quatrocentos anos, passaram por casinhas miseráveis, piores
que as favelas no Rio. Geovana teve a sensação de empobrecimento. Mas, como
mulher, renovava na família suas esperanças de felicidade pessoal e de sucesso
social.
As
circunstâncias internas e externas — familiares e mundiais — no momento, a
exigir plena atenção, que se avaliasse com justiça as mudanças, as que podiam
ser negociadas e as inegociáveis. Findo o primeiro dia ao lado do marido já
adormecido, o sono não vinha para aquela jovem esposa, que resolveu atiçar mais
um pouco a imaginação. Podia ser covardia querer proteger-se, lembrar de como
era sua vida até aquele momento e não devia alimentar suspeitas quanto ao
futuro. Tinha de olhar sua vida daí para frente com a paciência que lhe era
peculiar. Amadurecia, e a sensação era de ser alçada a uma situação
particularmente distintas da que até então experimentava, ares nunca dantes respirado.
Uma certa angústia era natural que sentisse. A terra natal, a rotina de jovem
dependente dos pais havia ficado para trás. Por fim, Geovana deixou-se embalar por
uma feliz indiferença, além do que lhe fosse permitido questionar, e adormeceu,
para acordar no dia seguinte, cheia de energia.
Era uma jovem cuidadosa que iniciava o dia a dia
de uma nova vida ciente de que por mais cuidado que se tenha, ou se receba, pouco
serve de garantia, mas é provável que não aconteça o pior. A vida é sempre
justa para quem não se atrapalha nos detalhes, aquele rosto ressentido pela
felicidade do outro, que se deve ignorar. Entender que os impulsos são simples
pretextos para desafiar a vida, que é convincente como vida e não como mero
acaso. E o desafio para qualquer mulher à época, também para Geovana, não era
apenas administrar a casa, mas acompanhar o que acontecia no mundo, um novo
tempo que se impunha, as coisas acontecendo de forma acelerada. Mas a função do
amor, além de construir, não seria também conservar, restaurar, promover, e até
fazer milagres? A família pedia que fosse assim, como aquele casarão, ainda
firme, apesar de séculos de vida, erguido muito antes dos dois recém-casados terem nascido. O chamado pé direito bem alto,
para dar livre trânsito ao ar, as pinturas nas paredes, belas paisagens
tropicais, suas folhagens, com lindos pássaros empoleirados, que pareciam
cantar para os moradores do local. Espectador de gerações, se aquele canário pudesse
falar!... Mas iam continuar calado, como as árvores que circundavam o local, pensou
a nova habitante. Já na cama, depois de tudo inspecionar, Geovana deu graças a
Deus por aquele homem ao seu lado, por
aquele sono que chegou tranquilo, na segunda noite de casada.
No dia seguinte Geovana olha
pela janela e avista a igrejinha lá mais acima, quase no fim da rua uma linda
igrejinha, grata surpresa! Acredita que ela está ali para aliviar seus temores,
consolar sua possíveis dores. A fé que ia fortalecer as decisões futuras do
casal, desde o início cada um com o sentimento de estar no lugar certo, ao lado
da pessoa certa. E sem a angústia de serem politicamente corretos ela ia agir
com bom senso, era da sua natureza. Cumpria com o marido a lei da reciprocidade,
e nada mais importante que dar alegria a quem se ama, dar afeição ao que se
quer, o que aumenta sua própria alegria, e maior é o que se recebe em troca. O
caráter imprevisível e incontrolável da vida, mas para os que se deixam jogar
para um lado e para o outro. A desonestidade das atitudes em particular, assim
como das realizações dos governos, das pregações dos religiosos, o que cedo ou
tarde se revela, e os infratores punidos. E o quanto é desonesta a modernidade
quando ela frustra até as mais simples expectativas das pessoas. Pensando
assim, a esposa de Vicente, avessa a todo e qualquer radicalismo, deu
graças a Deus pelo terceiro dia de casada, como haveria de ser os demais dias no
casarão.
Cinco anos depois.
Caía a tarde, e Geovana
escreveu a sua querida irmã Marli: “Vou ficar longe de Vicente, o que é normal
na profissão dele, mas não esperava tão cedo e que ele fosse para tão longe. Mas
ele havia se alistado para atuar na ONG Médicos
Sem Fronteira, e acaba de ser requisitado para um trabalho na Síria com os
refugiados, prontamente aceito. Ele vai cumprir essa missão espinhosa, além de perigosa. Não sei por
quanto tempo vamos ficar separados! Ele já partiu, e estou com as malas prontas,
vou deixar o local onde vivi dias produtivos e felizes. Fica a sensação do
dever cumprido no casarão, as paredes, o teto, o assoalho preservados, toda a
fachada restaurada, os insetos peçonhentos mantidos longe de qualquer ataque. Entramos
em outra etapa de nossas vidas. Compete agora aos novos moradores continuarem a
preservação, que não alterem sem necessidade. De longe acompanharei tudo.”
A notícia da partida não foi
de todo uma surpresa para o casal, que não sentia medo dos desafios. As
realizações e boas lembranças no Casarão iam com eles, em especial o casal de
filhos, a menina ainda amamentando. Ela ia ficar com os pais, enquanto
aguardava a volta do marido. O Oriente a pegar fogo, o que originou à questão dos
refugiados. Um mundo distante, mas tão perto, das guerras por questões
religiosas, o que era um mero pretexto para o selvagem extravasar sua sede de
sangue. Cristãos sendo degolados por sua fé, um absurdo! A atenção de Geovana se estendia agora para além da
família, do seu país, do Ocidente. E
pediu a Deus que olhasse para seu marido, seus filhos, para todas as famílias.
E logo pegou sono, na sua última noite na linda cidade do nordeste, que
aprendera a amar.
No rio de Janeiro, na casa
dos pais, Geovana aguardava notícias do marido, um cristão no meio de radicais
mulçumanos, o que era motivo de sobra para inquietar uma esposa. Pensava por
quanto tempo a humanidade ia sofrer com a facção religiosa, autodenominada
Estado Islâmico, e sua paranoia de querer explodir a civilização ocidental e
cristã. O facão oriental a degolar cristãos diante das modernas câmeras de
televisão. Medo têm os ignorantes de conviver com a civilização. E antes de adormecer Geovana rezou: Mãe abençoa teus filhos e nos livre de todo mal. Amém! Foi assim até a volta do marido são e salvo, após cumprir aquela sua
missão de paz com sucesso, tendo ainda muito o que fazer. Mas estavam
preparados para enfrentar os desafios que se lhe apresentassem.