FICÇÃO
Celebrando a semana da mulher
UM CORPO NO JARDIM
Modesta
e bem cuidada, aquela casa não tinha qualquer indício que pudesse ser associada
a alguma tragédia, seus dois andares com flores na janela. Foi o que pensou o delegado,
no alto dos seus quase oitenta anos, antes de bater na porta para averiguação
de um crime. Dia abafado, a chuva ainda não viera refrescar o ar da tarde, dona
Clara estava fazendo a sesta, em um dos cômodos de sua pensão, após o almoço. Quem
veio atender a porta foi uma moça baixinha, começando a engordar, que após as
apresentações, fez com que o recém-chegado entrasse e se acomodasse na sala.
Falou solícita:
—A dona
da casa logo virá atendê-lo.
A
sala com um balcão para atender os hóspedes, atrás do qual se via um armário com objetos de fabricação
chinesas, coisas de casa e também um ou dois brinquedos para crianças, como uma
grande melancia com rodinhas. Quatro confortáveis cadeias para as visitas, numa
delas o delegado sentou-se para aguardar ser recebido. Mas o agente da lei não
vinha como hóspede, nem para uma conversa amigável. Estava ali porque um
cadáver foi encontrado no jardim de uma mansão localizada a alguns metros da
pensão de dona Clara. Foi como justificou sua presença, ao ser recebido, e
disse enfático:
—Por
incrível que pareça, minha senhora, o caso remete a alguma de suas hóspedes. Cidade
pequena, todo mundo conhece todo mundo, e uma das moças aqui hospedada foi
vista com o morto, uma possível conquista.
Por
fim, indagou:
— Dona
Clara, o que a senhora tem a dizer sobre o fato?
Antes de pronunciar qualquer
palavra dona Clara pensou com seus botões: ”Resolvo tudo sem auxílio de
ninguém, cumpro minhas obrigações como cidadã, e agora a polícia chegava com
suspeita acerca de um crime nas redondezas, um absurdo”. Mas ao delegado, o que tinha mais a dizer, é
que não conhecia o morto, vindo do Ceará, conforme sua informação.
— Recebo em minha casa, apenas moças como
hóspedes, vindas do interior, com o que completo minha pensão de viúva de um
servidor do Estado. Só Berenice é minha
filha, adotada antes do falecimento do meu marido, alguns anos atrás.
—Não
percebeu nada estranho com as moças?
— Costumo
perceber quando algo está errado, e no caso de Berenice
e das moças hospedadas na pensão, nunca vi nenhuma acompanhada de pessoa
suspeita. A filha completa o ginásio, não tem namorado, e sonha começar a
trabalhar. Quanto às outras moças, estão terminando os estudos, e já com
casamento marcado no interior, o que sei das três hóspedes.
O crime
descrito em detalhes para dona Clara, era agora repetido na presença das pessoas
que viviam na casa e haviam chegado para o almoço. As moças mostraram-se
assustadas, quase não conheciam os rapazes da capital, muito menos um forasteiro.
Apenas uma delas, Dalva, revelou que tinha acabado o noivado nas últimas férias,
sem motivo, apenas queria mais liberdade. E quando falou ter esnobado os
amigos, e dito para quem quisesse ouvir, que estava hospedada em um palacete, o delegado ficou de orelha em
pé. Quis saber mais:
—E o
rapaz assassinado, nunca se encontrou com ele?
—Encontrei
esse rapaz apenas uma vez, nunca mais o vi.
Dalva
foi então indagada sobre o caráter do ex noivo, e a resposta que deu foi que o mesmo
não era pessoa violenta. Mesmo assim o delegado ficou desconfiado, que havia
algo estranho com as moças da pensão de dona Clara, e elucubrou para si mesmo: “O
crime foi por ciúme, e o autor seria o noivo rejeitado daquela moça, que veio à
capital praticar o crime, e por engano jogou o corpo no único palacete da rua,
possível residência de sua ex. Um crime passional, conforme o estado do morto, enforcado
e com o pênis decepado”.
Foi
com essa ideia na cabeça que o delegado saiu da pensão de dona Clara, coçando
sua cabeça embranquecida. E enquanto retornava ao seu local de trabalho
meditava sobre o mundo, que estava indo de mal a pior, a cada dia crescia o
número de feminicídios, aquela lá tinha escapando por sorte, por ironia do
destino quem pagou a conta foi aquele rapaz, um quase desconhecido na cidade...
Chegou
na delegacia certo de ter encontrado o mistério do morto no jardim da mansão. Ia
comunicar na delegacia sua ida ao interior do estado para prender o suspeito. Não
teve tempo de dizer qualquer coisa e dar um vexame. Logo tomou conhecimento que
um investigador de plantão na noite anterior havia desvendado o crime, e já
obtivera a confissão do suspeito. Escutou o desfecho do caso:
— O
cara em vida, gostava de esnobar as conquistas que fazia, nem de leve
plenamente realizadas, mas selou seu destino ao envolver a mulher do chefão do
tráfico, que pagou um matador de aluguel para dar cabo do “dândi”.
O
delegado experiente em tantos anos de investigação, ainda estava incrédulo, quis
questionar sobre o serviço do colega mais jovem:
— E porque cargas d´água o corpo
foi parar naquele belo jardim?
A resposta:
— Acontece que o mesmo rapaz dizia
ter um caso com a filha mais nova do dono da mansão, o que não era verdade,
como já foi apurado, ao contrário, os dois nem se conheciam. Intriga da
oposição, inveja. O forasteiro esnobando suas conquistas, e os fofoqueiros aproveitando-se
da situação. O dono da mansão sendo um rico fazendeiro chamava atenção, assim
como sua linda filha. Mas o crime não tinha conotação financeira, nem ajuste de
contas, como sempre acontece. Foi crime passional, vingança, os dois
investigadores de mais idade estavam certos neste ponto. O matador de aluguel, ao
perpetrar o crime para o chefão do tráfico, jogou o corpo no local combinado.
A estagiária de direito, que
escutava tudo na maior atenção, não se conteve e deu seu aparte:
—As mulheres sempre tidas como
objeto sexual, prontas para serem abatidas. A bela mulher do chefão do tráfico,
mesmo numa situação de perigo, ariscando sua vida por amor, um amor bandido,
até mesmo bandida como seu homem, mas, no caso, desconhecia o rapaz, até vê-lo
morto. O matador estava rondando a mansão quando foi pego, e não demorou a
confessar o crime e apontar os mandantes.
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