Neste domingo do Oscar 2013 minha
homenagem ao cinema: CHOCOLATE de Lasse Hallstom
Sexta-feira, e lá estão Antero e Aurora,
acompanhados da prima Mara, comodamente sentados nas confortáveis cadeiras da
sala 12 do recém-inaugurado complexo Cinemark do Pier21. Iam ser transportados a
uma outra dimensão numa das mais moderna salas de cinema do país. A projeção
excelente, logo constataram. O filme, Chocolate, baseado no livro
homônimo de E. Annie Proulx, ganhadora do prêmio Pulitzer. Como protagonista Juliette
Binoche, no papel da instigante personagem Viane. Iam conferir.
Na
tela mãe e filha chegam à cidadezinha francesa de Lansquenete em dia de forte
ventania, com a pretensão de se estabelecerem na localidade com seu comércio de
chocolate, produto desconhecido para uma gente que logo implica com a novidade.
Difícil uma forasteira ser bem aceita ali, o que logo se verá. Vamos, então, assistir
a luta da própria imaginação contra os poderes estabelecidos, as mentes apegadas
ao cotidiano medíocre. Mas, determinação é o que não falta às recém-chegadas. Além
do mais elas estão vestidas respectivamente como bruxa e chapeuzinho vermelho,
alusão às personagens da medieval história infantil, que remota a antigas lendas.
Percebe-se
naquela pequena cidade – à primeira vista tão pacata - que as coisas não andam nada bem, com o que
ninguém parece se dar conta. Para Viane e os espectadores a pista está na
estátua erguida no centro da praça principal, em frente à Igreja, homenagem a
um herói do passado. A imponente figura empunha um livro, arma contra a ignorância,
que se revela cruel por aquelas bandas. Que racionalidade era aquela? A
resposta vem no desenrolar da trama. Acontecem descaminhos tanto do
conhecimento quanto da fé, pelo fervor dos poderosos, que infernizam Deus e
todo mundo. Na cena seguinte o templo aparece vazio, pois difícil a convergência
das ideias. Em flash-back vemos os huguenotes sendo expulsos da cidade, numa
revolta que deixara um ranço da intransigência religiosa, de ambas as partes.
Lansquenete
jaz parada no tempo. E à medida que a câmara de Lasse Hallstrom trabalha, vai
mostrando os contrastes nos costumes de uma comunidade provinciana, apertada
entre montanhas, no seio da qual se impõe o cruel Caim com face de Abel. As
belas e antigas imagens dos santos na Igreja davam testemunho de uma fé de
abnegados, e que ficara para trás, pois desde algum tempo o que ali reinava era
a desconfiança, principalmente contra estranhos, de certa forma justificável,
pois irracional e perigoso se tornara o mundo, principalmente dentro daquele meio
fechado, supersticioso, mesmo assim, se dizendo racional. A visitante não
pretende desistir de abrir sua chocolataria, e aceita o desafio, pois já
enfrentara obstáculos maiores, o que vai ser mostrado daí para frente.
O
trabalho de Viane Rochê é produtivo, lhe dá prazer e com ele ganha o necessário
para sua subsistência. Espírito prático, hábil na confecção de um produto que mexe
com o gosto e a imaginação das pessoas, disso logo os moradores da vila se
darão conta, ou seja, da existência da “artista”, e seu fabuloso empreendimento
que passa a funcionar numa antiga casa abandonada, reformada para tal fim. Foi
com o que aconteceu nos primórdios do cinema, o que não é mera coincidência. Aos
poucos o prestigio da produtora se consolida. As sedutoras maravilhas
oferecidas aos olhos e ao gosto de cada consumidor.
Aos
poucos a comunidade aceita as maravilhas produzidas pela artífice, em seu
primitivo encanto, mas nem todos. Na tela, a magia do cinema, da própria
artista, mas que seria uma corruptora dos costumes, para o chefe da congregação
religiosa, que lhe impõe impiedosa censura. Em tal contexto, só por força da sedução
que a arte provoca nas pessoas é que o empreendimento se consolida, e as cenas
seguintes acontecem, até um inusitado desfecho. Torna-se um sucesso a
Chocolataria Maia, nome em homenagem ao povo Maia, que extraíam do fruto do
cacau uma bebida para os dias de comemorações religiosas. Os Maias donos de
primitivos e mágicos encantamentos. Encantados eles também ficaram ao fim da
projeção.
A
alguns passos do cinema de onde acabaram de sair, Antero convida as mulheres
para irem à cafeteria. Ao lado delas comenta a provocação daqueles seios de
Vênus expostos na vitrine da loja de Viane, ou os negros castelos enfeitados de
confeito coloridos para serem saboreados, como nos filmes de sexo e de terror. Ali
estava a magia, que retorna através do chocolate, produto da inventividade
humana, assim como o cinema. Principalmente, meio de vida honesto, capaz de resgatar
a dignidade, e conseqüentemente o prazer de viver de muitas pessoas que
trabalham nesse entretenimento. Na minúscula fábrica de Viane, profissionalismo
e dedicação, são capazes de produzir delícias para ávidos consumidores, como um
estúdio de cinema nos seus primórdios. Gostosuras para serem consumidas com
prazer em qualquer lugar do mundo.
Antenor
comenta o fato intrigante da mulher maltratada pelo marido, que cria coragem de
abandoná-lo para se dedicar à chocolataria, conquistando sua própria autonomia,
impossível sem esse trabalho.
–
E como vimos – conclui o marido de Aurora – há marchas e contra marchas na
consolidação de um projeto, fiascos a superar, o que vemos no filme. O dos
excessos que é cometido no consumo do chocolate, e foi justamente quem o censurou
que acabou por cair de boca, se intoxicar.
–
Acontece o mesmo com os doces prazeres da vida, dentre os quais o cinema -
confirma Mara, que demonstra de ter entendido muito bem a mensagem do filme. Fala
aos amigos que trata-se de uma homenagem à criatividade humana, aventureira e
ambiciosa, boa ou má, de acordo com o que se faz dela, inclusive a própria religiosidade.
Lembra, então, que em criança o que lhe enchiam os olhos eram os doces de sua
avó, à base de ovos e muitos outros ingredientes saborosos, como o chocolate. Adoçaram
sua vida, além das festas de aniversários, bodas e batizados na sua cidade
natal. Disse por fim:
-
Os doces sempre apreciados, mas o sabor exótico do chocolate se impôs, assim
como o cinema, por tornar a vida mais prazerosa. Assim como o pão nosso de cada
dia nunca deixará de ser alimento especial e imprescindível. Também a fé.
Na
cafeteria o casal observa melhor a prima ao lado, seu jeito sofisticado que
lembrava a protagonista da tela. Além de chique, Mara era uma mulher
empreendedora, e logo pediu licença aos amigos para dar uma olhada nas lojas,
verificar melhor o ambiente, tinha um plano, avisou misteriosa. “O cafezinho
estava ótimo”, fez questão de elogiar.
Antero
e Aurora levantaram-se a seguir para ver de perto o Lago Paranoá, o que
gostavam de fazer quando vinham almoçar, e iam ao cinema no Pier. Um ventinho
gostoso percorria as alamedas por onde andavam. Ela falou com o marido que a
mãe dela telefonara para comentar uma festa com as amigas, sempre animadas,
sozinhas ou acompanhadas de seus “respectivos”. Para Aurora era o sinal de que
o prazer estava no ar. Os filmes estavam
aí mesmo, assim como as novelas, e toda sorte de bens de consumo direcionados
para o lazer, incitando o prazer. Os costumes mudados.
Antero achava muito bom que a mãe dele tivesse
uma vida independente, fosse uma cabeça boa e produtiva, mesmo de idade
avançada, o que era também o caso da mãe de Aurora. Acontecia com eles
próprios. Voltou a comentar o filme: “Como nos livros infantis, aparece quase
sempre um lobo mau, ou uma bruxa. João e Maria foram atraídos para a casa de
chocolate da bruxa má que os queria seduzir para depois matar os dois irmãos,
vítimas da pobreza e do abandono.” E continuou, enveredando pela história do
chocolata: “Há uma lenda segundo a qual no séc. XVI um jovem de nome Diego, em
busca de fama e fortuna, luta ao lado de Cortés, conquistador do México, quando
então ele teria conhecido uma nativa que o inicia nos afrodisíacos segredos do
chocolate nativo, especial prazer em primitivas terras da América. Quando a mulher
desaparece, ele parte com seu cão pelo
mundo em busca desse verdadeiro amor, ou um sentido para a vida”.
- O prazer pelo prazer tem seus perigos –
Aurora concordava com o marido, os dois agora sentados em um banco perto da
praça de eventos. E deu curso ao que pensava sobre o filme: “O chocolate de
Viane não seria uma coisa negativa por ser saborosa, ao contrário. Ruim é a
maldade e a miséria que existe desde que o mundo é mundo, o caso de mulheres e
crianças vilipendiadas, abandonadas. O mundo parece que ficou mais pobre desde
a invenção do cinema, que não tem culpa de nada. Aurora recordava de um tio que
dizia: “A questão da mulher mais do que individual é uma questão social”.
Antero
toma a palavra: “A sensação moderna é que o lobo mal anda por perto. No filme,
o marido raivoso ateia fogo na casa, para se vingar da mulher. Havia resquícios
de medo nele, assim como em quase todas as ´pessoas daquela comunidade, onde
cada um vivia desconfiado um do outro, a violência sorrateiramente infiltrada
em todos os lugares.”
A
prima chegava sobraçando alguns pacotes de compras. E outra vez integrada na
conversa, deu sua opinião ao final das palavras do amigo:
–
Sabe de uma coisa, a verdade é que se precisa dar um sentido à vida, principalmente,
sentir prazer por estar vivo. Acontece que, quando não se tem inteligência, nem
educação, e a tendência é agir mal, como o incendiário do filme, ou como aquele
tarado do Metro Tijuca que eu e Aurora encontramos no cinema décadas atrás. O
mesmo se vê hoje em dia, com ladrões, traficantes, ou mesmo cineastas
pornográficos, todos malfeitores, que em maior ou menor escala existem por aí.
Devo contar a vocês que eu e Gustavo estamos separados, ele trocou-me por uma moça
que tem a metade da idade dele, uma ninfeta, por quem se diz apaixonado.
Vim visitar vocês, com a intenção de me estabelecer em Brasília, quero abrir um
negócio, acabei de ter a ideia de um café.
–
A maldade – confirmou Aurora – pode estar em toda parte, tanto nos cinemas, como
dentro das casas, dentro das próprias igrejas. Importante no filme é mostrar a mulher
estar disposta para a luta, para ser feliz. O próprio casamento pode modificar
muita coisa, trazer felicidade, mas também causar decepção e transtorno, o que
se tem de superar, como qualquer contratempo na vida. A dedicação à família, à
profissão que escolher, é o segredo do sucesso para a mulher, como para o
homem, de acordo com a capacidade de cada um. O importante é que a mulher não depende
mais da sorte num relacionamento. O casamento pra nossos avós como acertar na
loteria.
Do
seu passeio pelas lojas Mara havia comprado, sabem o quê? Chocolate. Uma caixa
lindamente embrulhada que ela presenteou seus anfitriões. Antero agradeceu
dizendo:
-
Após um bom filme e um saboroso café, só mesmo o próprio chocolate, “doces e
inocentes prazeres”. Melhor que isso só o amor ou a amizade entre as pessoas.
Não
demorou muito o filho de Antero e Aurora virem buscá-los para irem todos à
missa naquele domingo.