COISAS DA VIDA
conto
A chuva parou de cair, forte naquela época do
ano, o céu ainda com nuvens escuras, Jandira
tinha pressa de chegar à clínica distante duas quadras antes que caísse outro
pé d’água. Levava um frasco bem acondicionado contendo material recolhido pelo
médico para exame de biopse, após extração de um pólipo no útero. Já deixara os
dois filhos no colégio. Para que táxi? Ia caminhar e poder melhor refletir. A
mãe viera visitá-la, e era sempre uma alegria acompanhá-la nos passeios e
visitas a parentes, os quais pouco via. Até que sentiu aquele mal-estar, depois
de um longo passeio. Jandira residia há pouco tempo no Rio, sem ver dificuldade,
apesar de cidade grande, cheia de histórias boas e ruins, que seduzia as
pessoas, lugar de oportunidades, capital federal. Estava ali por força das
circunstâncias, e podia proporcionar aos três filhos boas experiências nessa fase
da infância, dentro de poucos anos estariam crescidos.
Jandira deixara um bom emprego para acompanhar o marido, e não via
sacrifício nisso, mesmo com pouco tempo para pensar em si mesma, a prole já
definida, um homem e duas mulheres. O tempo não parecia ter muita importância,
a vida correndo para sua família, igual a qualquer outra. Sentia-se confortável
na situação de dependência total do marido, o que algumas mulheres já começavam
a contestar, queriam menos filhos e ter uma atividade fora da casa. Não que elas
tivessem uma vida de passividade, pois cuidavam
do lar, onde a mulher podia realizar-se na
maternidade. Lógico que seria um céu se os maridos ajudassem mais com as
crianças, se incentivassem a mulher no sentido do estudo e de uma profissão.
Acontecia de Jandira viver em paz.
O feriado do dia anterior, com
exaustivos passeios, de repente aquela indisposição, quando foi atendida pelo
médico em casa. Os
carros alvoroçados na ida e vinda para o almoço. Estava até arrependida de não
ter tomado uma condução, temia o novo aguaceiro que se formava no céu. Cismara
com a recomendação do Dr. Arruda para que fizesse com urgência aquele exame.
“Sinto falta do dr. Filogônio”, a mãe falou à saída do consultório do antigo médico
da família, já falecido. Ela conhecia bem a nomenclatura médica, e arregalou os
olhos quando o médico falou “biopse”, o que impressionou a filha, agora mais
aflita por conta da mãe, até esqueceu que a doente era ela. Se estivesse mesmo
com câncer? A cura uma promessa distante,
e Jandira agora estava apreensiva por ter deixado a mãe sentada frente à
janela, a dizer que não ia mais lugar algum, o olhar perdido, num silêncio assustador,
seu interior certamente em turbulência. Mais razão tinha sua filha. Acontece ter
a avó de Jandira morrido da doença poucos anos antes, e todos ficamram
apavorados com a suspeita de terem na genética aquela semente. E não adianta
palavras de consolo, nada. A morte como que rondando por perto, parece até que
abraça a pessoa. Maior que essa dor só a felicidade da cura. É como renascer
para a vida, o que quase todos experimentam um dia.
“Só daqui a quinze dias” murmurava de volta para a casa. Agora era
esperar pelo resultado. O triste passado não lhe saía da cabeça. Mais um motivo
de apreensão. Estaria a tragédia se repetindo? O resultado do tal exame só
sairia dali a quinze dias, foi o que o disseram no laboratório. Até lá teria,
uma vez mais, que levantar o astral de casa, além do seu próprio.
Principalmente tinha que convencer a desalentada senhora que nem ela nem a filha iam morrer de câncer, o que realmente Jandira
achava. A chuva foi-se, mas o dia continuava abafado. A cabeça a pesar-lhe.
Parou para atravessar a rua. Só daqui a quinze dias, repetia para si mesma. O
sinal de trânsito lá adiante, mas estava com pressa, atravessaria ali mesmo. Os
carros numa corrida desenfreada, os condutores, audaciosos em suas máquinas,
ultrapassavam uns aos outros. Cada um por si e Deus por todos.
Parou alguns minutos na calçada, e nada de poder alcançar o outro lado.
Enquanto isso continuava pensando sobre a morte inevitável, e o medo que temos
dela. O pavor que acompanhou a mãe pela vida afora, o que não era o seu caso,
nunca pensou em morrer. Lembrou-se do psiquiatra falando na televisão, que “a
morte é o processo de nossa vida e o fim dela; tentar vencê-la enseja os
esforços mais criativos do ser humano”. Belas palavras. Enfrentar o mal é o que
faria daí para frente, estava justamente numa cidade onde existiam os melhores
recursos.
Antes de tudo vencer o medo. “É preciso ter coragem”, diz o poema de
Olavo Bilac. O medo de morrer, quase patológico na mãe, tinha raízes profundas,
da infância. Aquele pai bondoso, mas ao mesmo tempo um quase tirano com os
filhos, como todos os pais eram na época. Vê-lo tão moço e ativo, deitado
inerte no caixão foi desesperador. Paradoxal o amor que se ela sentia pela
vida, e ao mesmo tempo conviver com o pavor da morte, como se estivesse preste
a acontecer. A tia Nazária, antes de partir, disse, apertando a mão de Jandira:
“Eu nunca quis sair de perto de vocês e sinto que tenho de deixá-los.” Missão
espinhosa fazer alguém, num momento de desalento, acreditar num bom
diagnóstico, ter confiança.
“Uma ida sem volta, a única coisa que se pode dizer que é para sempre”,
repetia dezenas de vezes sua aflita tia Olga após a perda do marido. O
pensamento de Jandira indo longe. Mas não é bem assim. Podemos dizer que
permanecemos na memória das pessoas, na descendência. A vida tem de continuar.
O resultado do exame seria negativo, tinha certeza. O trânsito parecia pior que
nos outros dias. Voltou a chover, uma chuva chata, miúda. Daqui a quinze dias
ia busca o resultado do exame. E atravessa a rua. Logo estava na entrada do
prédio, o porteiro vendo a romântica novela Cabocla na pequena televisão
em preto e branco, a comentar com alguém que ele mesmo não perdia um capítulo,
por nada. Não a viu passar. A atenção grudada no amor dos protagonistas. O
romantismo que pode servir de consolo para a dura realidade da vida, até mesmo
para a morte. O amor como a razão do viver; não só entre duas pessoas, mas o
amor em nível superior, maternal, filial, etc. Escuta ao longe a cantoria: “Cabocla
teu olhar está me dizendo/ que você está me querendo/ que você gosta de mim”.
Jandira não estava com pressa, atravessa o cuidado jardim do prédio,
como que observando tudo pela primeira vez, tantas vezes ficara sentada naquele banco de
ferro lavrado, enquanto as crianças brincavam. Coisas banais que de repente
chamam sua atenção: a paisagem derramada de folhagens, a decoração, mas faltando algo, as flores. Cadê
a alegria? O elevador de serviço, logo naquele dia estava enguiçado, para onde
se dirigiu fugindo dos olhares sempre indiferentes, e que agora podiam se
tornar perscrutadores; temia que percebessem sua angústia. Teve mesmo de pegar o social. Que pelo menos
subisse vazio. Os moradores de bem com a vida, ela também, até àquele momento.
Muito bom o imóvel na burguesa Tijuca, dois espaçosos quartos, uma linda
cozinha, varandão, único alugado no prédio quase de luxo, o preço dentro do
orçamento, o proprietário na assinatura do contrato de aluguel afirmando que fez
questão de escolhê-los como primeiros habitantes.
Entrou antes do casal de namorados, absortos um com o outro, aos beijos
e abraços; uma novidade esses arroubos de ternura em frente a estranhos. Namoro
moderno. O pensamento dela agora voltado para os dois enamorados, que fossem
sensatos, com tanta liberdade (da AIDS, nem se tinha notícia da existência, mas
que iria grassar, logo, logo - no fim do século). Não pareciam promíscuos, mas nunca se sabe.
Os jovens hoje se acham espertos, mas como são tolos; no passado pareciam
tolos, mas eram bem espertos. A mente de Jandira analisando tudo numa compulsão.
Saiu apressada do elevador. Que
estranho o hall de entrada! O que havia acontecido? Mudaram o piso, trocaram o
forro da parede. Assim mesmo pegou a chave para enfiar na fechadura, que
resistiu bravamente. Foi quando a porta se abriu, e junto com ela um sorriso de
surpresa, mas acolhedor. Ainda mais intrigante as pessoas que estavam sentadas na sala, os dois grandes sofás no
centro de uma decoração vista de relance e que lhe pareceu flutuar. Da janela, parcialmente
coberta pela cortina, saia um facho de luz. Uma cadeira de estilo medieval logo
na entrada? O que fizeram? Preferia a decoração de antes. Sentindo um torpor acomodou-se
entre duas senhoras. Todos muito atenciosos. Ou estavam embaraçados, como
acontece quando se está diante de um intruso. Algo estava errado. Que pessoas
inconvenientes! Esperaria que se
retirassem para que pudesse falar com a mãe sobre a demora de quinze dias na
entrega do exame. Nem sua empregada aparecia para dizer algo.
Ia beber água e logo sair outra vez para pegar os filhos de volta no
colégio. Deu por si! Entrara na residência errada, no apartamento abaixo do
seu, no quarto andar. Apressou-se a pedir desculpas, alegando que estava com
pressa saiu sem maiores explicações. O que teriam pensado dela nem valia a pena
elucubrar, as preocupações que tinha já eram bastante.
Quinze dias depois Jandira foi buscar o resultado do exame. E, como era
esperado, deu negativo; não havia câncer algum.
“Conto premiado, no II Prêmio Literário da
Livraria Asabeça -2003”
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