SEMPRE MEMORIA II
Nossa
juventude apaixonada, como todas, e podia ser por alguma causa nobre, por
exemplo, o “Movimento das Missões”, a que se dedicavam as alunas do Colégio
Santa Teresa no segundo semestre do ano letivo. Às vezes expostas a sermos
abusadas coletando dinheiro, o caso de uma aluna que pediu para um
contraparente furar um número na cartela e ele passou a mão na menina. Isso não
abatia as jovens entusiastas que éramos. Os africanos não eram batizados,
passavam necessidades? Ao lado das freiras íamos cuidar da salvação espiritual
e de livrar da fome essas pessoas. O trabalho em favor dos povos da África, de
onde muitos vieram como escravos para Brasil, sangue que impulsionou nosso
progresso. Também nossa miscigenação, forte na população maranhense, que conta
ainda com a contribuição do índio. Toda semana eu levava para o colégio alguma gostosura
feita por Nazária para vender no recreio, e arrecadar dinheiro para enfrentar
as “batalhas” travadas entre as meninas, ver quem dava mais para as obras de
caridade.
Falava-se ainda a linguagem da guerra, e no fim do ano, lá estava eu com
minhas medalhas, ganhas nas tais batalhas. Se dependesse de nós não haveria
fome no mundo e preservada seria a fé. A paz retornara, e doravante poderíamos
viver sempre assim. A miséria ainda não havia feito tantas vítimas, senão as da
extinta escravidão e da guerra que findara. O mundo civilizado saía vitorioso
da luta contra primitivas maldades, com nossa geração esperançosa de um futuro
mais brilhante, que, todavia, passaria o
a sofrer outras guerras, outras escravidões. Os interesses nem sempre justos, com o que se
perderia para sempre a capacidade de viver em paz de verdade. Pessoas e nações
envolvidas em eternos conflitos, o que se refletia na vida como um todo. A
África ainda hoje grandemente afetada pela miséria, região de natureza ingrata
que sofre o descalabro de ter chefes tribais como governantes.
Exceto aos domingos, sempre no fim da tarde, após os deveres escolares -
cumpridos à risca – eu ia com minha amiga Leila andar na sua linda bicicleta prateada,
um luxo, que ela me deixava compartilhar. Dar voltas no fim da tarde em frente
à recém-inaugurada Biblioteca Benedito
Leite. Meu irmão precisava se desenvolver e ganhara a sua de varal,
impedimento para minhas saias rodadas e anáguas. As calças compridas ainda veste
só para homens, sem o jeans. A praça ficava repleta de jovens; os dois sexos em
confraternização, uma modernidade. Os carros em menor número, e mesmo uma
raridade. Experiência única equilibrar o corpo e comandar tão elegante
mecânica. A tecnologia começava a deslumbrar o mundo, e me fazia feliz nos meus
onze e doze anos, a desafiar a gravidade numa bicicleta, sem levar tombos.
Andar de bicicleta e de bonde era uma delícia, veículos dos meus
primeiros passeios públicos. Também podia fazer passeios intelectuais,
introspectivos, nos livros, guardados naquele imponente edifício de arquitetura
neoclássica. Minha intenção era ler todos os livros. Teria tempo? Devia
apressar-me. Mas o certo é ler durante a vida bons livros, de acordo com a
idade, e se possível relê-los sempre, o que aprendi. A família sempre residindo
em local nobre; durante décadas perto da Igreja, até a morte prematura dos chefes, em duas gerações seguidas, quando
então a morada-inteira em frente à encantadora Praça Odorico Mendes foi deixada
para trás antes de eu nascer. A herdeira era uma tia-avó que, por questão
financeira, alugava a casa, local onde
hoje funciona um colégio. Com as perdas a família passou a habitar uma
meia-morada, a poucos passos do lar antigo. A mudança de endereço condizia com
os novos tempos, e se devia tirar proveito do saber dos livros, que recebiam em
São Luis especial abrigo. Do jardim de casa observara a formação dos alicerces
para o prédio dedicado à lavra das letras, logo apelidado de “bolo-de-noiva”, devido
a graciosidade do prédio, que se harmoniza com o belo casario imperial,
revestidos de azulejos portugueses, eleito Monumento Universal de Arquitetura e
Urbanismo.
Ter treze anos não é o mesmo que ter onze, doze, a vida quase uma
miragem. Aos treze as aspirações começam a se manifestar, o amor chegando ao
coração. Deusdete de olho em Leila desde o domingo no cinema. O amigo Vicente
dedicando-se com afinco aos estudos, lendo em inglês e francês, o que me
impressionava. Mas longe ainda os namoros de verdade. Da rua vinha aquele cheiro de chão molhado
das tardes de chuva, quando então eu ficava a cismar olhando a água cair das
telhas. Lia e relia Louisa May Alcott, autora preferida da minha
juventude, após o encantamento da infância com Monteiro Lobato. Da autora
americana meu avô trouxe de Portugal os dois primorosos volumes de capa
vermelha, para minha mãe se habituar a
ler, o que ela me disse ao passar-me o presente dos dois volumes: As Quatro Raparigas e Alguns Anos Depois. Atualmente
conhecidos como Mulherzinhas. Quatro jovens
em seus anseios: Jô, a menina intelectualmente
talentosa, quer ser um menino, certamente por conta do desprezo ao
talento feminino na época; a doce Guida, desde cedo com o dom de ensinar, até
se casar com um homem de caráter, por ela mesma escolhido para fazê-la esposa e
mãe, ideal abraçado de coração; May, a criança voluntariosa, que se transforma
em adorável mulher e casa com amigo de infância Lourenço, capaz de lhe
satisfazer a ambição, menos de sucesso
artístico, por lhe faltar talento, o que ela tinha de sobra para brilhar em
sociedade. No meio da narrativa a fatalidade da morte prematura de Beth, o anjo
da família, quando então chega ao fim, silenciosamente, a inocência,
representada por essa irmã, contraponto ao desejo de realização pessoal e
liberdade das outras. Com Beth a intenção da autoria é trazer o sentimento de
devoção e caridade presentes na jovem para o confronto com suas irmãs que
seguem lépidas e fagueiras, desejosas de progredirem. Uma heroína cristã e
católica (a decantada pobreza de espírito?). E quem mais admira Beth é a irmã
Jô – o seu oposto – espírito inquieto, que recusa Lourenço, um par perfeito,
não para ela, que se casa mais tarde com
o professor alemão Baher, filho do prático e resoluto país do protestantismo,
ou do ideal racionalista.
Ainda da minha infância e da minha mãe, guardo a preciosa herança dos três livros da Condessa de Ségur: Os
Desastres de Sofia, As Meninas Exemplares e As Férias. Que
bom se eu fosse como Camila, Madalena, ou Margarida, crianças virtuosas,
pensava com os meus botões. Metáforas das virtudes teologais: a fé, a esperança
e a caridade? Já Sofia seria a desastrada mente humana, infantil, curiosa,
filosófica e cheia de arte. Martirizava-me ser parecida com a menina que é capaz de experimentar por a boneca de
cera – presente do seu querido pai – para aquecer ao sol, e que se derrete. Limites que a mente criativa
deixa de observar nas suas experiências.
Trágica personagem, que procede como mitológico Pégaso, no seu desejo de
alcançar o sol com asas de cera, mas que se desfazem ao calor do astro rei. A
certa altura Sofia parte do interior da França com os pais para residir na
América, na companhia do primo Paulo e
sua devota família. Sofrem um naufrágio, onde morre a mãe de Sofia, sobrevivendo ela e o pai. No novo mundo, sem mais notícias de Paulo,
acontece o casamento do pai com a malvada Fichini (feiticeira?). Logo depois,
morre também o pai, deixando Sofia sob a tutela da madrasta, ao lado de quem
ela vai sofrer toda sorte de desditas, até que na idade adulta retorna à
Europa, ou às origens.
Ao ler O Tronco do Ipê
repleto de mistérios, fiz o paralelo entre a bondade do pai Benedito e a
maldade da Fichini. O escravo, guardião dos segredos da fazenda Boqueirão, era
a imagem do “feiticeiro bom”, sob as bênçãos de quem Alice se casa com Mário.
Para o naturalismo de José Alencar, o bem estaria na natureza, e o mal perto do
homem civilizado, como o barão, pai da moça. Ao contrário do que acontece com a
narrativa da Condessa de Sègur, que faz Sofia retornar à Europa, onde ela se
casa com outro amigo de infância, o civilizado João de Rugès, que lhe dará paz
à alma inquieta, dentro da tradicional fé católica. O Novo Mundo, todavia, mais
virtuoso que bárbaro, foi o que testemunhou Nazária, sobre meus antepassados
europeus no Brasil, filha de escrava
alforriada com pai branco, tendo acompanhado o tranquilo sucesso
financeiro da família, assim com sua elegante decadência.
Gonçalves Dias em A Canção Dos Tamoios canta que “A vida é
combate/ que os fracos abate/ que os fortes, os bravos/ só pode exaltar”.
Os fortes e bravos de espírito. Mas a robustez física torna-se apreciada, após
uma geração em que bonito era ser frágil e morrer em plena juventude. Minha avó a se gabar da própria fragilidade.
Após a morte prematura do marido, comerciante próspero, foi uma mulher exemplar
no caráter e determinação. O trabalho para a viúva torna-se um bom combate, não
sendo adepta da ideia da dor como um bem, falsidade ideológica, que levava à
cultura do sofrimento, da passividade, diante dos revezes da vida. A dor não
seria o melhor aprendizado, nem o prazer coisa inconsequente. “Só é feliz de
verdade quem se sente bem consigo mesmo!” diziam minha avó e minha mãe, certas
de que o sofrimento prolongado avilta, assim como a luxúria, de que são
possuidores os escravos das honrarias e dos prazeres, pessoas suscetíveis de
tornarem-se vítimas do medo, da inveja e da cobiça.
Convenção, modismo, numa geração de mulheres que jamais admitiam ter
saúde. Quanto à minha intrépida avó – nem gorda, nem magra, e com boa saúde –
mesmo assim, se gabava de estar com a vida por um fio. Algumas mulheres
obrigadas à inatividade - não minha avó. Talvez se dissessem doentes para
legitimar sua fraqueza, e serem interessantes, até para se livrarem das
sucessivas gestações. As mulheres nos desmaios escondiam sua fortaleza, geração após geração sem
vontade própria, nem disposição para enfrentar a vida. Discriminadas,
aceitavam, o que acontecia antes da emancipação feminina. O que ainda se vê nos
dias atuais, a justificar que se apregoe como real vocação da mulher a utópica
tranquilidade do lar, o que contraria os ideais de modernidade. Quanto à nossa
geração, éramos uma fortaleza em todos os sentidos, e podíamos até nos orgulhar
da nossa capacidade mental sem sofrer grande
censura.
Telefonia e telegrafia precárias, e minha avó recebendo mensagens
telepáticas, como a notícia da morte de uma amiga que acabara de falecer a
léguas de distância, sem acreditar que fosse coisa do outro mundo. Havia poucas
maneiras de nos livrar da dor, contra a qual o homeopata receitava a Nazária,
seus incipientes medicamentos tirados de uma preciosa maletinha de doutor. Não
muitas as dores da nossa infância, até
mesmo as inventadas para impressionar e sermos tratados com mimos, o que
mais importa em caso de doença. A farmácia aperfeiçoando-se para combater as
doenças, e nada mais alvissareiro que a promessa de uma vida prolongada e quase
sem sofrimento. Nossa condição de seres racionais, que deve pautar seus atos na
reflexão. As decisões tomadas conscientemente, sobre o que se quer da vida, não
obstante muitas coisas aconteçam independentes da nossa vontade. Trabalhar a
nosso favor e não contra, ter responsabilidade para conosco e para com os
outros seres, principalmente, nossos semelhantes. Seria uma resposta sobre o
sentido da vida humana. Ainda não bem acordada, uma voz feminina me fala, certamente vinda do passado, que por um bom
tempo escutei, mesmo sem entender. Aquela voz amiga me dizia algo importante, e
penso que ela refletia todas as vozes que me falaram durante minha vida, na
vida real e na ficção. Concluí que ainda
esperavam muito de mim, pelo que me deram, e não foi pouco.”
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