COM O LIVRO SE FAZ GENTE
Com as invasões bárbaras a tradição
da leitura e da escrita no Império Romano foi grandemente afetada, prática
inexistente para os merovíngios francos, falantes do germânico, que tinha as
runas como alfabeto. A transmissão oral. Diante da iminente dissolução da
Igreja romana, o renascimento carolíngio trata de dar boa formação aos padres,
a educação através do latim, o que foi decisivo para a civilização ocidental.
Era em latim que as pessoas eruditas liam no medieval, em especial a Bíblia. A
leitura como um ato sagrado em si. “E o Verbo se fez carne e habitou entre nós”
(João 1:14).
O cristão lia a Bíblia em latim,
leitura restrita, até a reforma protestante, quando o texto sagrado foi vertido
para o alemão e passou a ser impresso na língua de cada nação, e difundido em
grande escala. O Cristianismo torna-se a religião do livro, herança direta da
veneração judaica à palavra escrita, uma vez que os protestantes consideravam-se
herdeiros dos hebreus. Para os judeus talmúdicos, que viam no texto sagrado uma
fonte infinita de inspiração e aprendizado, a leitura era uma ato devocional,
uma revelação em si. Desde sempre a vida dos judeus focada na leitura e na
escrita. No medieval ensinavam aos meninos num ritual: “Que o Torá seja sua
ocupação”. Povo inteligente porque devotados à leitura.
Na efervescência cultural do século
XI patrocinada pelo Islã, o grande cientista conhecido como Al Hazen elabora
sua teoria sobre ótica, onde faz a distinção entre “sensação” e “percepção”. Ao
contrário da sensação, a percepção demanda um ato voluntário de reconhecimento,
como ler um texto. Pela primeira vez era dada uma explicação formal para o
processo da atividade consciente que distingue “ver” e “ler”. “Palavras,
palavras, palavras” responde Hamlet ao seu mordomo quando esse lhe indaga sobre
“o que lê o senhor?” Mais sensação que percepção do jovem príncipe, a quem falta
maturidade para depurar a leitura que faz evoluir a alma, enriquecer a mente. Não
é o que acontece atualmente com muita gente lendo um livro, uma revista, ou
diante do computador, sufocados de informações que mal podem digerir? Amplo o acesso
aos livros, que abarrotam as livrarias e bibliotecas, a maioria best sellers.
As almas cada vez mais sedentas nesse
mundo maravilhoso em que vivemos atolados de tecnologia e informação, onde num
simples toque estamos conectados, recebendo e mandando mensagens através das
redes de relacionamentos na internet. Outra leva de vândalos querendo invadir
nossas vidas, nossas almas, desalojar-nos de nós mesmos? Empreendemos uma
viagem coletiva na internet, aventura cada vez mais sedutora. Nas páginas dos
livros nossa mente faz outro tipo de viagem como navegador solitário. Com o verbo
se faz gente. Mas, na tela virtual, Narciso muitas vezes está ali para ver sua
imagem refletida no lago.
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