CONTO
SE
Era a família
ideal para aquela época, cinco irmãos, com os pais em união indissolúvel,
adeptos do bom convívio familiar; do lado da mãe pessoas conservadoras, tidas
como intransigentes, que evitavam elogios, ou algo nesse sentido, o medo que a prole
crescesse fraca de caráter, os jovens acompanhados com atenção, para que
escolhessem bons caminhos. Por parte de pai os condescendentes, a se dizerem
liberais, justificando que a liberdade era o ideal maior propugnado pela
espécie humana.
O poema Se de Rudyard Kipling estava
colocado no mural da escola. Maria anotou-o
numa folha de papel, e colou na parede da sala para todo mundo ver. Aí estão
alguns versos:
Se és capaz de manter a tua
calma quando
Todo mundo em redor já a perdeu
e te culpa;
Se és capaz de crer em ti quando
todos duvidam,
E para esses, no entanto, achar
uma desculpa;
Se és capaz de esperar sem
desesperares...
— Sentenças desafiadoras, pouca gente
disposta a seguir o que dita o poeta inglês.
Foi a tia da parte paterna de
Maria quem falou, certa tarde de reunião da família. O questionamento se era
justo receber um tapa e dar a outra face, para se salvar, custe o que custar. Os
brasileiros não tendo a obrigação de seguir regras tão disciplinares, ditadas
por um anglo-saxão, frio por natureza. Veio a contradita materna:
— O sol inclemente castiga nossa gente,
que por qualquer coisa perde a cabeça, e tudo o mais que se perde, ou se ganha,
por sermos quem somos.
— Diferentes, sim, mas poderíamos
ser melhores, ter uma boa política educacional, por exemplo, em vez de patinarmos
no atraso. E acabamos nos últimos lugares nas pesquisas lá fora. Por acaso,
seria melhor se habitassem apenas os índios por aqui?
O mais velho da família, que
parecia não estar nem de um lado nem do outro, quis dar uma aula:
— Criou-se aqui um povo diferente, principalmente
no quesito alegria e descontração. Aí está o ponto forte do brasileiro, ao
mesmo tempo onde reside sua fraqueza. A espiritualidade dos brasileiros por
conta do seu pluralismo cultural. Nosso país descoberto por um português, Pedro Alvares Cabral, cuja terra já era habitada,
uma população numerosa a que deram o nome de índios, mais tarde aqui aportando os
negros africanos como escravos. Para completar, hoje muitos brasileiros são
adeptos do espiritismo, criado na França, que vingou aqui como em nenhum outro
lugar. Mas que o espírito do nosso avozinho Portugal não nos abandone.
Alguém fugiu um pouco do
assunto, para lembrar da postagem que saíra no Face:
— Há coisa boa e ruim cá, como
lá. Uma piada de péssimo gosto comparar a centenária cidade de Porto em
Portugal, com outra também centenária cidade brasileira de S. Luís, fundada por
franceses e construída rua por rua pelos portugueses. Foi o que fez um
engraçadinho em uma postagem no Face. A diferença é gritante. A principal rua da
capital maranhense apinhada de gente passeando descontraída, sobre um
calçamento recém-reformado, de comovente simplicidade. Enquanto em terras
lusitanas, poucas pessoas passeiam bem vestidas por uma conservadíssima avenida,
artisticamente calçada. Vendo de relance parece S. Luís, mas é Porto. Portugal de
Camões tão perto da Inglaterra de Kipling, hoje infelizmente tão longe do
Brasil do nosso grande e miscigenado Machado de Assis.
O apoio foi geral às palavras do
mais novo membro da família, nos seus 22 anos:
— Ah se fosse diferente por aqui. O
Brasil não perderia tanta riqueza mineral, extraída da terra, causando mais
pobreza, mortes e uma irreversível falência ambiental. E nosso país, a exemplo da capital maranhense,
considerado a terra do “já teve, hoje não
tem”.
O debate foi interrompido para o café com
beiju que estava sendo servido, e todos quedaram-se a degustar com prazer a
iguaria nordestina. O poeta Kipling certamente apreciaria o silêncio, assim
como teria apoiado a breve e democrática discussão sobre seu poema Se.
Nada melhor do que trocar ideias
em família.