RAÍZES
|
PRAÇA DEODOR. Também conhecida como PRAÇA DO PANTEON |
Andar de bonde era uma maravilha, assim como dar voltas de bicicleta em torno do imponente edifício da praça
Deodoro, a Biblioteca Benedito Leite, a poucos passos da minha casa. A bicicleta emprestada da minha colega-amiga, futura médica, competente para dar nome a hospital em S. Luís. Vendo a biblioteca, minha intenção era ler todas os livro ali guardadas. Teria tempo? Devia
apressar-me. Mas o importante é ler durante a vida bons autores e relê-los. A residência
da família sempre em local nobre e perto da Igreja dos Remédios. A morada-inteira ficava em frente à encantadora Praça Odorico Mendes, onde eu nasci, pela mão da parteira Celeste. Depois fomos
morar na meia-morada, perto do lar
antigo. A mudança de endereço por conveniência, e de acordo com os novos
tempos, que se devia tirar proveito do saber dos livros, que recebiam em São
Luís especial abrigo. Do jardim de casa eu observara a formação dos alicerces do
prédio dedicado à lavra das letras, que ao surgir parecia um bolo-de-noiva, daí
seu apelido, o estilo neoclássico a se harmonizar com o belo casario
imperial, revestidos de azulejos portugueses, eleito em 1959 Monumento
Universal de Arquitetura e Urbanismo.
Ter treze anos não é o mesmo que ter onze, doze, a vida quase uma
miragem. As aspirações começam a se manifestar, e o amor chegando ao
coração. Laila de olho em Deusdete, desde que o avistou no cinema. Seu amigo
Vicente a impressionar-me por suas leituras em inglês e francês. Mas longe
ainda os namoros de verdade. Da rua
vinha aquele cheiro de chão molhado das tardes de chuva, quando então eu ficava
a cismar vendo a água cair das telhas. Lia e relia Louisa May Alcott,
autora preferida da minha juventude, após o encantamento da infância com Monteiro
Lobato. Da autora americana meu avô trouxe de Portugal os dois primorosos
volumes de capa vermelha, para minha mãe habituar-se na leitura o que ela me disse
ao passar-me o presente dos dois volumes: As
Quatro Raparigas e Alguns Anos Depois. Obras atualmente conhecidas como Mulherzinhas, sobre quatro irmãs em seus anseios. Jô, a menina intelectualmente talentosa, quer ser um menino, certamente por
conta do desprezo ao talento feminino na época; a doce Guida, desde
cedo com o dom de ensinar, até casar-se com um homem de caráter, por ela mesma
escolhido para fazê-la esposa e mãe, ideal abraçado de coração; May, a criança voluntariosa, que se casa com amigo de infância Lourenço,
capaz de lhe satisfazer a ambição, menos
de sucesso artístico, por lhe faltar talento, o que ela tinha de sobra
para brilhar em sociedade. No meio da narrativa a fatalidade da morte prematura
de Beth, o anjo da família, silenciosamente chegando o sentimento de devoção e caridade presentes na
jovem em confronto com suas irmãs que crescem lépidas e fagueiras, desejosas de
sucesso pessoal. Quem mais admira Beth é a irmã Jô – o seu oposto – espírito
inquieto, que recusa Lourenço, um par perfeito, não para ela, que se casa mais tarde com o professor alemão
Baher, filho do prático e resoluto país racionalista.
Da infância guardo ainda na minha estante a preciosa herança dos três livros da Condessa de Ségur: Os
Desastres de Sofia, As Meninas Exemplares e As Férias. Imaginava o quanto adoraria ser como Camila, ou Madalena, ou Margarida, metáforas das virtudes teologais católicas: a fé, a esperança e a
caridade. Menos exemplar era a menina Sofia, eu a temer ser parecida com essa personagem
desastrada, que coloca a boneca de cera
– presente do seu querido pai – para aquecer ao sol, e tem os pés derretidos. A
mente humana criativa, mas infantil, que não observa seus limites. Trágica
personagem, que procede como mitológico Pégaso, no seu desejo de alcançar o sol
com asas de cera, mas que se desfazem ao calor do astro rei. A certa altura
Sofia parte do interior da França com os pais para residir na América, tendo como companhia o primo Paulo e sua devota
família. Sofrem naufrágio, a mãe de Sofia morre, sobrevivendo ela e o pai. No novo mundo, Sofia não tem mais notícias de
Paulo, e acontece o casamento do viúvo com a malvada Fichini (a feitiçaria no
novo mundo), que ao morrer, deixa a menina sob a tutela da
madrasta, ao lado de quem Sofia vai sofrer toda sorte de desditas, até que retorna à Europa, ou às origens.
Ao ler José de Alencar, autor do Tronco do Ipê, fiz o paralelo
entre a bondade do pai Benedito e a maldade da Fichini. O escravo, guardião dos
segredos da fazenda Boqueirão, era a imagem do “feiticeiro bom”, sob as bênçãos
de quem Alice se casa com Mário. O naturalismo do ator brasileiro aponta o
bem presente na natureza, enquanto o mal estaria mais perto do homem
civilizado, como o barão, de origem europeia, pai da moça, contra o enlace. Já na narrativa da Condessa de Sègur, Sofia retorna à Europa, para se casar com
outro amigo de infância, o civilizado João de Rugès, que lhe trará paz à alma
inquieta, ou a cultura europeia greco-romana em suas conquistas além-mar. O Novo Mundo,
todavia, virtuoso em sua inocência. Cito Nazária, nascida na
lei do “ventre livre”, que acompanhou o tranquilo sucesso financeiro de uma família
de imigrantes portugueses, assim como seu elegante empobrecimento. Minha raiz fincada no Brasil para sempre, gratidão que devo os meus avós.
Para a avó que me criou ser grata tinha essência de civilidade e de obrigação.
Nenhum comentário:
Postar um comentário