FICÇÃO
O SEGREDO DA CAIXA
Maria morava em outra cidade, desde quando casara há mais de cinquenta anos. Acabava de chegar para a festa de comemoração pelos cem anos da mãe. Sentada ao seu lado, lhe fala:
—Ficou
muito boa a reforma da casa, parabenizo a todos, em especial Mariana e Nazaré.
Nazaré entra na sala com
uma caixa, reconhecida de imediato por Maria, que escuta a explicação da irmã:
—Antes
de começarem os trabalhos dos pedreiros e demais profissionais, para essa reforma, Mariana e eu resolvemos
fazer uma faxina na casa, tinha sacos escondida atrás de móveis, além de um quarto
cheio de coisas acumuladas, roupas nos cabides e bolsas dependuradas em um canto que dava para abrir um brechó. Encontramos essa caixa, Maria, com teu nome
escrito na tampa.
Maria
lembrava bem daquela caixa, onde guardara algumas lembranças suas do tempo de colégio, da vida de solteira. Casara e foi morar em outra cidade por conta do trabalho do marido e a caixa ficou como que esquecida. Agora ela estava
a sua frente pedindo para ser aberta. Mesmo ansiosa para rever tudo que
guardara com tanto carinho, ia deixar para mais tarde, quando estivesse sozinha.
Agradeceu o achado e falou que ia sair.
Enfrentar as ruas esburacadas de
S. Luís e suas ladeiras era um feito heroico para uma pessoa de 84 anos. Mas nem
pensava em sair de bengala, que só usou quando esteve em São Tiago de
Campostela - fazia parte do charme do passeio. Via gente mais nova e já de
bengala. Maria se sentia muito bem, totalmente recuperada do acidente doméstico
quando quebrou um braço. Ficou satisfeita de não ter de tropeçar nos vendedores
ambulantes, que deixaram a Rua Grande e foram montar as barracas nas ruas
laterais. Uma hora depois estava de volta. Ainda tinha muito chão para visitar
nos próximos dias.
Não
era uma tarefa fácil caminhar por tempo muito longo, os ossos começavam a
reclamar o esforço empenhado. Um calor “abrasador”, sem as sombras das mangueiras e dos oitizeiros,
como reclamava sua tia falecida. Merecia uma campanha pela volta das árvores, que
sumiram da cidade, em grande quantidade no passado. Os caminhos conspurcados
pelo descuido do ser humano, esquecido do que valia a pena cultivar e preservar.
As pessoas deviam ser cobradas por destruírem o bem coletivo, em especial, a
natureza.
Ao
aproximar-se olha para a casa que a mãe praticamente reconstruíra, quando a
comprou caindo aos pedaços. A cor da parede frontal em rosa, sua cor preferida,
diferente do azul das residências que lembravam cemitério, como ela dizia. O pessoal de casa
havia saído, só tinha a cozinheira, e assim que chegou ao quarto, lá estava a caixa
memorável sobre a escrivaninha, pedindo para ser aberta. A tampa emperrada precisou
algum esforço. Mas logo Maria começou a manusear o material preservado no
tempo, o que ela ia ter, sim, o maior prazer, e novamente se
encantar.
Pela
manhã o esforço fora físico. À noite Maria tinha certeza que ia soltar as
emoções. A primeira lembrança a ter em mão outra vez foram as duas medalhas
recebidas no colégio das freiras, que com o maior carinho as confeccionavam
para premiar as alunas que se destacavam. Uma delas recebida pelas boas notas e a
outra pelo trabalho nas Missões do colégio. E lá estavam os quatro cadernos com os
problemas dados nas aulas da professora Amélia Nogueira para o
exame de admissão ao ginásio. Logo a seguir, pegou o discurso proferido pelo
padre Ribamar Carvalho, paraninfo da conclusão do científico realizada com
pompa e circunstância. Tinha um missal de capa de couro e também uma cópia mimeografada de um hino em latim, o Deo Vero, que nós, alunas do Santa Teresa, cantavam no coro da igreja em dia de missa festiva.
Uma
por uma saltavam da caixa as lembranças a provocarem emoção em Maria. E no
fundo da caixa as cartas que Maria escrevera
ao noivo, que fora assumir o trabalho em outro estado, encadernadas como
um livro e ele lhe ofertara no dia do casamento. Admirou-se, não imaginava que
tivesse registrado tão bem uma parte importante da história de sua vida. Um
tempo pavimentado de esperança, quando então sentiu-se livre de qualquer pensamentos negativos
que lhe ocorressem, afinal os
bons fluidos que há em ter uma mãe centenária. Chegaria lá? E qualquer que fosse
a fração de tempo que lhe restasse, não iria desperdiçá-lo. Foi a conclusão de Maria
ao abrir aquela caixa - a caixa de Maria, diferente da caixa de Pandora.
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