COISAS DA VIDA
Na
década de 60 um jovem casal aluga uma simpática casa em João Pessoa, no pequeno
jardim canteiros forrados de antúrios, folhagem de belo colorido, muito em voga.
Pintura nova, inclusive das janelas, mas
quando Maria olhou para o piso foi aquele susto, nunca tinha visto coisa igual,
os antigos moradores haviam deixado o piso em estado deplorável, os tacos
sumidos em camadas e mais camadas de cera, que iam do amarelo ao ocre, com
rajadas de vermelho, mistura demoníaca, de arrepiar. Na época, as boas donas de
casa mantinham o piso da casa no maior capricho, eram mulheres que não
trabalhavam fora e se ocupavam em cuidar da casa. Havia uma competição de quem,
por exemplo, tinha seu precioso chão de taco mais brilhante, embora não houvesse
enceradeira elétrica, e o sinteco ainda longe de ser inventado. Mantinha-se o
piso de taco encerado e brilhando, o trabalho feito com um escovão, e haja
braço. A cera velha removida a cada quinze dias.
Inacreditável
o que Maria via sob seus pés. Na manhã
seguinte pôs mãos à obra para remover com lixa grossa toda aquela cera
acumulada. Findo a primeira parte do trabalho, os tacos já mostravam sua
beleza, mas ia deixar para espalhar a cera e passar o escovão no dia seguinte, o
calor estava de rachar. Lembrou que havia visto um galho repleto de limões, que
avançava para seu quintal, o limoeiro plantado rente ao muro de separação das
casas. Resolveu fazer uma limonada para se refrescar. Mal pegou o primeiro
fruto uma voz gritou do outro lado que tirasse a mão dos frutos de sua propriedade.
Como assim, tinha vigia de plantão?... E aquele galho não estava invadindo a
propriedade alheia? Deixou pra lá, tinha duas crianças para buscar na escola. No
dia seguinte ia comprar limões na feira do bairro, perto de casa, e sem saber ia satisfazer
o desejo de grávida do terceiro filho.
Quando
o marido de Maria chegou do trabalho e soube do ocorrido, foi consultar o
Código Civil. Leu alto os artigos 1,282 e 1,284, que tratam do assunto: “Os frutos
caídos numa propriedade vizinha pertencem ao dono do solo onde caíram, mesmo
que o tronco da planta encontre-se no terreno confinante”. No caso de Maria, os
limões não estavam no chão, mas no galho que dava para seu lado, ou seja, ocupava
espaço alheio. O caso acabou ali, não ia brigar com vizinho, mas comprar o
produto no dia seguinte, na feira. Já estava grávida do terceiro filho e o
desejo da limonada aumentou.
Tem
gente sem noção, ou simplesmente abusada, pronta para tirar proveito dos
outros. Uma amiga da mãe de Maria,
contou o acontecido mesmo com todo o aperto financeiro, raspou as economias
para mandar fazer um vestido de tafetá azul celeste, cor da esperança, e ainda
pagar os olhos da cara pelo chapéu exigido para a cerimônia. E lá se foi em
companhia da irmã prestigiar as bodas do filho que acabara de completar 20 anos,
recentemente empregado no BB. Tempo em que ainda muitos jovens iniciavam-se na
vida de casados. E tinha a justificativa do dito popular, que “casamento e
mortalha no céu se talha.” As bodas em outra capital, e houve ainda a despesa das
passagens de avião. Não contavam com a pouca
simpatia da família da noiva, que viu
aquelas duas mulheres chegarem sem seus maridos, fato que se devia à
falta de dinheiro para eles comprarem a fatiota. A tia do noivo, que era do ramo, foi
incumbida da confecção dos doces e salgados para recepcionar os convidados. Como
assim, não haviam contratado o serviço local de Bufet para a festa, como seria o
certo? Mas nada havia sido providenciado nesse sentido para oferecer aos convidados. “As magrelas que paguem a hospedagem com trabalho, não
fiquem mal acostumadas, pensam que somos ricos”, palavras segredadas pelo pai
da noiva para a mulher. Resultado foi que faltou o que oferecer aos convidados,
não houve tempo de dar conta de tudo. Na despedida outra surpresa, a sogra abusada
do filho falou para a mãe dele: “Agora o casal vai precisar de nossa ajuda
financeira.” Resposta à altura: “Nunca
pensei em receber ajuda do meu filho, e penso que o casal, que ora se forma, deve
cuidar de si, não contem comigo nesse sentido, tenho ainda três filhos para terminar de criar.” O noivo nas
nuvens... Mas não ia demorar a cair na real.
A
mãe de Maria, funcionária pública, sempre ia passar as férias com a filha
no Rio, ou onde estivesse morando o casal, que andou muito por esse Brasil. Dia
de passeio pelo comércio no centro da cidade, acompanhada pelo seu querido tio Joaquim, senhor de idade
avançada, mas andejo que só ele. Quando chegou da rua não demorou a passar mal, o calor de
fevereiro estava nas alturas dos 40º. Foi chamado o médico indicado pela
vizinha, que ao examinar a paciente, informou haver algo errado, que fosse ao
seu consultório para um exame mais minucioso. Assim foi feito, sendo coletado pelo
médico o material para exame de biopse. A palavra “biopse” caiu como uma bomba nos
ouvidos daquela senhora na menopausa, que se disse possuidora de uma vida
longa, desde que não soubesse que tinha câncer, uma doença incurável na época, “pena
de morte”, acusou. A filha foi deixar o material no laboratório, sendo avisada
que o resultado só sairia em quinze dias.
Uma eternidade para Maria, que comunicou
aos parentes e amigos cariocas sobre o estado da mãe, que não mais deu uma
palavra e sentou-se em frente à janela, em perigo. Desde então não parou de
chegar visitas, e quando se achou que houvesse passado o susto, a mãe pensou em se
jogar diante do ônibus, mas, emfim, estava ali contando sua história de superação. Também
não havia câncer algum na mãe de Maria... e nunca houve alegria maior para mãe e
filha como aquela notícia tão alvissareira. Foram 105 anos de vida lúcida, ainda
que com o mesmo temor da morte, que tristemente também chegou para ela. SAUDADE!
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