O MUNDO POSSÍVEL
Mais pagã que cristã a
imagem feminina que admiramos no quadro A Mulher da Balança. Uma
representação da justiça, com poder para equilibrar as forças da natureza,
tanto quanto avaliar os vícios históricos do homem. O prumo da balança, o da
consciência humana diante dos desejos, fortemente ativo no mundo moderno. Acredita-se
no peso justo dado às ações humanas, a todas as coisas, o que livraria do medo
infundado e também dos excessos. Na ideologia tripartite indo-europeia a primeira das três funções é a justiça,
espaço “sagrado”. A Delft holandesa de Vermeer como Delfo. Em plena Grécia
clássica, a velha aristocracia cede lugar a polis-democrática, em que Apolo é
vencido pela deusa da sabedoria. O poder de Atena direcionado às artes, ao
comércio, que deu vida à primeira mulher, Pandora, a Eva dos gregos, que recebeu
uma caixa fechada de presente, inadvertidamente aberta, fazendo com que os
males se espalhassem pelo mundo. Mas restou a esperança para que não se
acredite no inexorável, e sim nos deuses, ou num só Deus, ao lado dos homens,
na alegria e no sofrimento.
A mulher da balança
está diante de sua mesa de trabalho, coberta por um tecido no tom azul escuro,
parte amassado, dando ideia do mar, o que se confirma na figura estilizada do
animal marinho alinhado logo baixo, uma sutil presença do abstrato, imagem
surrealista. O mar navegado de lá para cá e de cá para lá; a vida transitando
entre o alto e o baixo, entre o abjeto e o sublime. A caixa paira sobre o mar
de Vermeer, e faz a vez de embarcação, da qual pende uma corrente de ouro e um
colar de bolas de prata. Prisão ao solar e ao lunar? Caixa de Pandora, que carrega
as riquezas explorados no continente americano, e vão despertar o apetite,
agitar a alma, pesadas as consequências. O ouro e a prata que serviam de troca
no comércio europeu em forma de moedas, quatro delas sobre a mesa. Também ali se
encontra boa quantidade de pérolas extraídas dos bancos de ostras no golfo de
Paria na região que hoje faz parte da Venezuela, reservas que se exauriram após
intensa extração, e serviam para enfeitar o colo e a cabeça das moças europeias.
Ao lado da riqueza e vaidade a miséria do tráfico nrgreiro, também de mulheres. A esperança feita de sangue a cor do fundo da
caixa.
A realidade moderna na
experiência individual do conhecimento, da comunicação e dos prazeres, do que
trata a arte de Vermeer. O rosto doce e sereno da mulher, ou da civilização,
com sua balança, e diz do juízo de autoridade da mulher, por um poder recém-conquistado.
A própria humanidade que tem o poder para medir, conciliar, em equilíbrio dos
sentidos e das ações. Intriga a segurança e tranquilidade dessa figura, como em
estado de ataraxia, do grego ataraktos,
ou seja, sem inquietação, o que Epicuro compara ao mar tranqüilo, quando nada
vem revolver a superfície, ou agitar as ondas, diferente do outro mar, o
tenebroso. Típico da cultura helênica a sanidade, a consciência, o limite, e em
especial a modéstia e o sentimento do dever, que alerta sobre os males da
intemperança, dos excessos daqueles que cultivam a irracionalidade.
O importante é
acreditar na vida, ter esperança, fruto do desejo de viver, de perseverar como
autêntico ser humano. Nada como um dia após o outro, o que se diz quando as
coisas não vão como a gente quer, sempre havendo esperança, fé, de superação
das dificuldades. As dores que podem ser de uma perda, ou da queda em desgraça
por qualquer motivo. O tempo sempre fluindo a favor, e não contra nós, se
quisermos que seja assim. A esperança ás vezes feita de sangue. Não o sangue das guerras, da escravidão, da
violência, pois, por mais desastrada que seja a civilização, a individuação, em
qualquer tempo, se deve acreditar na capacidade humana para superar
adversidades, vencer os obstáculos surgidos à frente. É a esperança que
alimenta a alma, e nunca devemos desistir de nós mesmos, dos nossos sonhos,
quase sempre possíveis, já que os criamos na mente, e não ter pensamentos
negativos que nos afetam, de nós mesmos e dos outros. A sabedoria a nos dizer
que tem quem acredite em nós. E se há os que nos desprezam, e ameaçam desistir
da gente, não podemos seguir por esse caminho.
O esboço do Juízo Final
serve de pano de fundo no quadro, drama histórico de um passado de medo, na
atmosfera dos tenebrosos dias do século XVI, quando estava ainda em jogo o
próprio destino da humanidade e da civilização. O quadro dentro do quadro para
lembrar a ideia cristã da culpa e respectivo castigo, sinal de que o mal existe
no mundo, e não se deve relaxar. Em Vermeer não há, todavia, noção de
fatalismo, mas de destino humano, sua busca pela razão, pelo juízo, que não
seria final ou do outro mundo, mas aqui mesmo na terra. Os valores conceituados universalmente,
levando-se em conta cada sociedade em suas particularidades, cada pessoa em sua
individualidade, afastada a ideia do julgamento fatal que pode trazer
inquietude. Mas se deva apelar para o juízo que faça valer a pena viver sobre a
terra. A cabeça da mulher paralela à
imagem iluminada de Cristo ressuscitado no painel de Miguelangelo. O modo
esperançoso de ver o mundo através do Cristianismo.
O aqui e agora
decepciona por não se querer olhar à frente, mas agir aleatoriamente,
imaturamente, sem ter aprendido nada com o passado, sem ver as perspectiva
futuras, e desse modo sair atirando em todas as direções, até que se entregar
ao desânimo. Aprender a saborear a existência com gosto de viver o presente,
que deve ter em vista o futuro. É o que de melhor o jovem pode fazer, mesmo em
qualquer idade, em qualquer tempo. Um trabalho de paciência e, principalmente
de persistência. Ser feliz depende da fé em nós mesmos, na nossa natureza
racional, respeitado o irracional, que não se deve negar, nem explorar
inadvertidamente. O século XVII e XVIII da promoção do ser humano, em espírito
e matéria. Havia esperança de se viver melhor, eliminada a opressão, o
sofrimento das mulheres, dos negros, dos trabalhadores, todos os responsáveis pela
riqueza que transbordava no mundo.
No mundo moderno homens e mulheres no luxo;
outros oprimidos no trabalho indigno, mal remunerado, o que é uma violência
contra a dignidade humana. Tantas pessoas ainda vítimas do abandono, sofrendo
com os vícios, que priva as pessoas da felicidade, da cidadania. Essa pouco
conhecida na época de Vermeer, que também desconhecia a ideia de civilização e
progresso, como se pensa atualmente, sem se levar em conta as condições de
bem-estar para todos. Cidadania significa educação, acesso à cultura, e
consequentemente ao trabalho e lazer, necessários à realização pessoal e
social. O descaso com a educação, a
falta de políticas públicas eficazes, é desastroso para o ser humano, que deve se
desenvolver como ser biológico e psicológico.
O mundo que sonha com o progresso, principalmente, no sentido de justiça
para todos, quando muitos ainda padecem por ignorância, desesperança. Sangue
derramado, mas que ele tenha a força da redenção, sob pena de sermos tomados
pela descrença na própria humanidade, e não passaríamos de bichos, monstros, e
não gente de verdade.
Aconteceu o milagre da
esperança nos povos pagãos que acreditavam nos deuses, como nós acreditamos em um
só Deus, capaz de ofertar grandes bens a todos, sem discriminação. Os cristãos acreditando
na força do sofrimento redentor. Por outro lado grandes são os males que
decorrem da falta de ética, dos desacertos pessoais e sociais, da ausência do
bem no mundo. É necessário capacitar as pessoas para que elas construam,
modifiquem coisas erradas, mas sem destruir o que existe de bom. Não se destrua
a natureza, a civilização, a si próprio, a razão de viver e ser feliz. O homem
contemporâneo se valendo da ciência e tecnologia. Mas, nos avisa a santa
experiência - que dá cobertura à nossa santa ignorância - que se deve ter parcimônia,
e adotar a caridade, virtude humana por excelência. Sem sermos muito duros, nem benevolentes demais. Nobre e
heroica humanidade que desde sempre vem lutando pelo conhecimento, pelas luzes
do saber que liberta. Nosso passado
histórico, mitológico, em evolução até o universalismo cristão.
No medieval as mulheres
a fazerem suas simpatias, bruxarias, colaboradoras do conhecimento alquímico,
subsidiário da ciência. Para Hipócrates “há
um sopro comum a todas as coisas, e que estão em simpatia.” Ou em
espelhamento, como diz atualmente a ciência. Fluxo social de ação e reação, num
acordo que deve existir diante dos fatos e exigências do momento. No século XVI,
Século das Almas, santas mulheres renovam a fé católica, ao constituírem
mosteiros, congregações, abrigos, ao se engajarem na melhoria de vida para suas
irmãs. Às portas de uma nova Era, Santa
Verônica de Giuliana(1660-1727), irmã clarissa,
exerce no mosteiro de Cittá Del Castello todos os ofícios, desde cozinheira,
enfermeira, professora das noviças, até abadessa. Personalidades femininas
fundamentais na reconstrução da Igreja, exemplos de vida no amor e na fé. Luisa de
Torelli, condessa de Guantala, em 1530, funda as “Angélicas de S. Paulo”,
dedicadas às moças órfãs, ditas da vida, que merecem uma oportunidade de vida
melhor. Outra grande figura a se destacar é Ângela de Mereci (1474-1537) que,
inspirada em Santa Úrsula, funda as “Irmãs de Caridade”, reunindo moças que iriam viver para louvar a Deus, na
pobreza, castidade e obediência. As ursulinas
tornam-se responsáveis pela educação das jovens de todas as classes,
enquanto os jesuítas ocupam-se da
instrução dos rapazes. Religiosas e religiosos que grandes serviços prestaram e
prestam até hoje à educação, à fé. Por conta disso, nossa modernidade é mais
luminosa que sombria ao se perseguir a luz da razão. As pessoas livres do medo
infundado, e possam acreditar na justiça. A fé servindo de mediadora da
renovação, ao obrar na caridade. O mundo que necessita mais que nunca da força
espiritual, que se renova, assim como da razão no sentido de paz, de justiça.