LEMBRANÇAS DA AVÓ
Na
casa da rua das Hortas a avó Carmelita cuidava do seu jardim. Lá para o fim da
tarde fazia sua lista de compras com um lápis de ponta rombuda, o ouvido
grudado no zumbido do rádio, centro das atenções na casa. Sempre confiante no
aconselho divino: “Faz, que eu te ajudarei!” Filha de pais abastados, casada
com comerciante promissor, cedo enviúva, quando então se pôs a trabalhar em
doces e salgados finos para festas. Acontecia na Europa o segundo e último conflito
mundial do século XX e o país inteiro ligado nesse quase instrumento de guerra
que era o rádio. Não tardaria estarmos todos diante da TV, esse extraordinário veículo
de comunicação. As novas transmissões ao vivo e a cores, prova do espetacular
progresso humano, também da sua barbárie, nossa barbárie. As guerras, por
exemplo, não deixariam de acontecer, vistas hoje no momento mesmo em que
acontecem. Do mais pobre ao mais rico, em qualquer idade, quase todos de
telefone celular em punho, objeto imprescindível na comunicação moderna,
imediatista e ansiosa, num mundo que muda a cada passo, sem que se saiba se
para melhor. O computador a consumir boa parte da vida das pessoas que passaram
a se comunicar através de e-mail e nas redes de relacionamento, como o
Facebook.
– Nada de novo no Front! – Falou minha avó.
Ia começar o blackout. O jeito era se recolher aos braços de Morfeu.
–
Esqueceu vó? Amanhã começa o retiro, vou passar o dia no colégio. Bênção!
–
Deus te abençoe!
Eram
três dias de silêncio para escutar o voz de Deus e do palestrante. Só retornávamos
para casa após a última palestra do Arcebispo Dom José, já no fim da tarde.
Toda minha vida escolar fiz no Colégio Santa Teresa, do primeiro ano primário
ao científico, a fé piamente cultivada naquele estabelecimento de ensino, para
que tivéssemos um futuro sem grandes percalços, no que acreditava, e ainda
acredito. Não me via como religiosa, apenas abençoada pela paz interior que a
religiosidade proporcionava. As mestras exigentes com as alunas para a nota
máxima em religião, comportamento, civilidade e ordem,
sinal de que não havia complacência com nossa natureza original. O boletim
escolar dando destaque aos itens necessários para uma vida correta, e nos tornarmos
pessoas civilizadas, evoluídas. A evolução um tanto custosa para alguns
temperamentos, não muito afeitos à santidade preconizada pelas Irmãs; os
desejos quase todos julgados negativos, e se alimentados no íntimo, causariam
feridas. O saber considerado insuficiente para uma vida social e familiar
santa. Importava, todavia, nos livrarmos da ignorância na língua portuguesa, na
matemática, história, geografia e outras matérias. A sociedade patriarcal e
paternalista evoluía para o exercício da cidadania em nova ordem de justiça
social e progresso.
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O
ano de 1945 e meu irmão com seus soldadinhos de chumbo, em pleno ataque, quando
soube do fim de Hitler, consequentemente, término da guerra. Tio João disse
indignado: “Aquele lá era uma besta quadrada”. Estava encerrada no cenário
mundial a ação ridícula e perversa de um louco. Ano especial, o de 1945, e eu toda
feliz caprichava na caligrafia com meu lápis ponta afinada. Já sabia ler e
escrever, e tudo de bom me podia advir do grande feito. Aos sete anos, o trunfo
civilizador da palavra escrita, depois da evolução de andar e falar. Tinha
entrado na idade da razão, o que disse a avó, entusiasmada comigo. A explicação
que deu era que se perdia o suposto paraíso para, em contrapartida, adquirir
discernimento para assumir responsabilidades. As crianças sob os cuidados das
mães; ora austeras, ora de uma sofrida benevolência. Mães instintivas, ainda
não adeptas de ideologias permissivas, como a da autodeterminação das crianças,
coisa para futuras gerações. E que tipo de gente sairia do rolo compressor que
então se formou?
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A
fina flor da sociedade carioca disputava palmo a palmo os salões do Clube
Militar, ornamentados em homenagem a Baco deus do vinho e da alegria. Chegamos
quando a orquestra brindava o seleto público com o hino carioca: Cidade
Maravilhosa /Cheia de encantos mil/...Coração do meu Brasil. De arrepiar! A prima com sua extravagante cor
de cabelo, recém-pintado de acaju, por erro do cabelereiro. Temerosa, a dizer
que não conseguiria nem um pião de obra para dançar, se aparecesse algum por
ali. Acontece que logo de início Lenita
atraiu a atenção do simpático rapaz que vagava entre os foliões a procura de um
par. Não teve dúvida, achara. E não desgrudou da moça de cabelos de fogo
durante os três dias de folia, e também nas sessões de cinema no Metro Tijuca.
Ele não era pião, mas filho de militar graduado.
A
certa altura refugiei-me na sacada do Mezanino, dali ver o movimento, saudosa
dos carnavais maranhenses. A folia no auge, e minha animação em baixa. Ainda na
cidade natal Vicente se despedira friamente ao partir de muda para Recife com
pais e irmãos. Teria notado a decepção em meu rosto? O pessoal cada vez mais
animado no salão. Pensava na avó Carmelita que sentiu o desânimo da neta e veio
consolar: “Ninguém mais deseja que sejas feliz, e faz tempo que eu planejei
essa viagem, quero que me acompanhes.” Fiquei surpresa: “Tão depressa assim?” A
avó prosseguiu: “Já está tudo acertado, vou visitar parentes, que estão
contentes em nos receber. Podes continuar os estudos.” Abracei-a com gratidão:
“Você acha que sou uma boba e egoísta?” Recebi resposta tranquilizadora: “Não,
pois não há quem deixe de passar por momentos assim, de desesperança. Precisas saber
o que queres para tua vida. Dá tempo ao tempo.” Segurava minha mão, como se
temesse que fugisse dela, precipitadamente, como fizera a filha tempos atrás.
Em
pleno baile de carnaval pensava no passado e também no futuro. Quando vi minha
avó e sua irmã arremessadas para além da sacada de onde os mais velhos
acompanhavam os filhos naquele alvissareiro e, também, perigoso reino de momo,
brigas sempre aconteciam. Despertada do meu torpor, desci apreensiva, para logo
recomeçar meus saracoteios ao som das marchinhas, misturado com o barulho característico
do assoalho antigo. A dança proporcionava um prazer imenso naquele momento, e havia
a esperança da folia carnavalesca transbordar para outra, a matrimonial. Uma
coisa não tendo nada a ver com a outra, mas tudo na vida é tão paradoxal!
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