O MOVIMENTO DAS MISSÕES
Vermeer em homenagem ao
jesuíta Francisco, o primeiro papa das Américas.
Com as descobertas
marítimas e a ocupação das terras conquistadas, a Igreja assume a missão de
preservar a fé e educar os colonizadores, dever que se estendia aos povos
nativos para convertê-los e livrá-los da exploração. No século XVI o
missionário espanhol Bartolomeu De las Casas elaborou as primeiras defesas dos
direitos humanos. Ao saber das ações cometidas pelos espanhóis contra os
nativos nas Américas declara: “Todos os
homens são iguais no que diz respeito a sua criação.” Os primeiros europeus
que embarcaram para viver no Novo Mundo eram vítimas das perseguições
religiosas nos países ibéricos e na Inglaterra. Mais tarde, colonizadores atravessaram o oceano em busca de terras para
viver ou comercializar com os nativos o ouro, a prata, o fumo. Na tela de
Vermeer Mulher com a Jarra de Água o que mais seduz o espectador é a
expressão de felicidade daquela que pode ser uma noviça segurando uma jarra ao
mesmo tempo que olha com devoção para o pálido vitral renascentista da janela
do mosteiro, de onde ela vai partir na segurança que lhe dá a fé cristã. Vai
vivenciar o novo, no trabalho educacional, missionário, atividade que lhe
proporciona realização, lhe dá oportunidade de mostrar o próprio valor. O humanismo
medieval constituído pela fé existente, herética ou não, que teve início com as
missões nestorianas, coptas e cristãs célticas.
A mulher, a
civilização, renovada pela fé cristã. A renovação pelo espírito, que purifica o
sangue derramado na conquista do poder político e territorial, comercial, aquém
e além-mar, inclusive do “além”. A Europa, saída das trevas das superstições e
perseguições religiosas, vendo possibilidades no mundo em expansão. A jarra de
água difere dos vasos fechados de cerâmica em outros quadros de Vermeer,
contendo produto destilado, oculto. A água é do batismo cristão. A origem da
vida nas águas. Sem água e sem luz não existiria vida. Capaz de se transformar
em matéria sólida ao frio e voltar a se liquefazer, ou evaporar ao calor, a água
é substância vital, que constitui um terço do corpo, sem a qual ninguém
sobreviria mais que três dias. O mesmo se pode dizer da fé, que tanta falta faz
ao espírito, a ponto de não haver felicidade sem ela. Próxima da abstração pela
transparência, a água pura do batismo cristão. A prata da jarra servindo de
metáfora para a fé missionária, tridentina, contrarreformista.
A noviça sorri feliz
por pertencer a algo que lhe dá uma boa
consciência e sentido à vida, compromissada com a sociedade, com a família, com
o mundo em que vive. Importa a realidade que vai além da simples vontade e
liberdade, tanto para a fé, quanto para o gênero feminino, sujeito a valores, e
não aos próprios desejos, nem aos quereres dos outros. A mulher retratada no
quadro goza da felicidade de ter uma missão a desempenhar, em sincronia
com o mundo, fruto da ação católica, que passa a atuar fora dos mosteiros. Há
um caminho novo a percorrer, abertos pelas Missões em todo o mundo, daí o mapa
pendurado na parede. A fé renovada, em ação de caridade, após a ruptura protestante
e lutas religiosas. Luminoso despertar para quem tem uma fé que a protege, com
a qual pode ver o mundo, as outras pessoas, as coisas, como são de verdade.
Conjurado o fantasma da angústia, da dúvida, do medo.
Ao sair do confinamento
do lar, ou do convento, para enfrentar a vida, emerge uma nova mulher, que tem
consciência de si mesma, e que vê o mundo de modo mais límpido, transparente.
As armas que vai usar contrapõem-se às de fogo das guerras, ou das coisas que
exacerbam as paixões na alma. São as dos valores cristãos e seus conceitos. Em
vez de ideias sombrias, de fogos-fátuos, as obras missionárias ancoradas na
fonte viva da espiritualidade cristã. A trajetória do espírito em missão
evangelizadora faz companhia à mente em busca do conhecimento racional,
científico. Velhas certezas e incertezas, acrescidas de novas esperanças que
chegam à Europa através dos navegadores, dando notícia da natureza exuberante.
O mundo mágico da América, decantada por Pero
Vaz de Caminha em sua carta, sobre as riquezas da terra brasílica,
recém-descoberta, “em que se plantando
tudo dá”.
Para o confucionismo, a principal meta da existência
é o desenvolvimento do caráter. Na doutrina de Confúcio (600-500 a.C.) o
pessoal é o social. O taoísmo de Lao-tsé (VI-V a.C.) prega que o “pessoal é a relação com a cultura”. O
caminho do Tao é para que se forme uma sociedade harmoniosa com fé na natureza humana
e tolerância para com os homens sem instrução e cultura, pois o que importa é a
sintonia com o ritmo da vida, de acordo com o que lhe é próprio. Todavia, o
taoísmo discorda da ideia da bondade inerente ao ser humano. A Europa seduzida
pela filosofia oriental, quando os missionários da Companhia de Jesus foram
acusados de irem longe demais ao condescenderem com as superstições, não só
chinesas, mas dos povos nativos do Novo Mundo, no trabalho das Missões. Acusação
feita pelos jansenistas contra os jesuítas que teriam adotado as superstições
com uma boa vontade suspeita. Heroicos missionários, de quem Vermeer teria
absorvido ensinamentos. Vizinhos de sua casa, os jesuítas lhe encomendaram um
quadro sobre a fé. Fez dois: “Alegoria da
Fé” e “Moça com Jarra de Prata”.
Heroica a trajetória humana, suas paixões, a par de um conhecimento que se quer
racional, científico.
No limiar dos tempos
modernos encontram-se razão e fé. A busca é por uma vida interior rica, ao lado
do também rico existir cotidiano, mundano, transoceânico. Grande parte das
mulheres europeias boas religiosas, prontas para prestar serviço à Igreja como
missionárias, ou no exercício de outras funções sociais. Catarina de Gênova
dirige um hospital com rara competência e santidade, dentro da fé católica,
preocupada com a melhoria de vida material e com a conversão das almas. O
grande padre missionário Antônio Vieira
acreditava na conversão universal a cargo da Coroa lusitana, em sua aventura
pelo mundo afora, seguindo o desiderato de um destino venturoso, após a derrota
na batalha na África em que morreu o rei de Portugal, dom Sebastião. Em sua
“História do Futuro” o jesuíta, considerado “apóstolo das navegações”, abençoa
o trabalho missionário. No Brasil, diz Vieira aos maranhenses: “Os homens de quem aqui fala Davi são aqueles
que estão nos dois últimos extremos da terra onde nasce o dia e a noite; uns
nos confins do Oriente, que são as Índias Orientais, outros nos confins do
Ocidente, que são as Índias Ocidentais.” Lá no fim do mundo, de onde teriam
buscado o papa Francisco para Roma, conforme suas próprias palavras.
Motivo de otimismo os europeus tinham com
tanto ouro, prata e pedras preciosas, exploradas na América espanhola, depois no
Brasil português, a partir de 1700. “Um Eldorado achado nos trópicos”, como
diziam. A fé caminhando ao lado do poder temporal, onde são travadas lutas
tenebrosas na disputa das almas e das riquezas, no mar, na terra e no “céu”.
Parece que tudo de bom e de mal da modernidade começou a vicejar no século XVII.
Aos grandes educadores jesuítas devemos o bom costume da leitura, quando o
pioneiro padre Vieira fez chegar ao Brasil as primeiras publicações. Vieira, grande
propagador da fé católica, também dos nativos, contra o massacre cultural e o trabalho
escravo. Grande a paixão pelas Missões. No Brasil, os missionários fundaram o
primeiro colégio em São Paulo, dedicado ao “ensino dos rudimentos”, ou
elementar, de ler, escrever e contar, justamente por onde a evangelização se
efetiva, ou seja, através da educação.
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