quarta-feira, 8 de setembro de 2021

 


FICÇÃO - baseada em fatos reais

                            

                         QUARENTENA 2020 - UMA SAGA

                            PARTE III


Em S. Luís, Lydia é acometida de repentina indisposição, atendida no hospital próximo de sua casa. Uma experiência dramática, adoecer em plena quarentena, o que mais temia ao pensar na mãe idosa. Grande o número de infectados à procura de atendimento, os hospitais sem estrutura e poucos leitos de UTI. Um pandemônio na pandemia, o que as pessoas constatam ao procurar atendimento médico. Começam a construir hospitais de campanha nos estádios de futebol, estruturas faraônicas da Copa de 2014, quase ociosos, os bilhões de reais consumidos, grande parte do dinheiro desviado por políticos corruptos. O médico, desconfiado de alguma coisa, colhe material para biópsia. Apenas prevenção,   tranquilizada sua paciente. Como não é Covid-19, ela deve recorrer no momento a laboratório particular. Ainda bem que possui plano de saúde, pensa. A caminho, na praça da Alegria, avista alguém  que parece conhecer, quer ter certeza. Esconde-se atrás da árvore, firma o olhar para ver com   mais clareza: “Faz tanto tempo!...acho que seja...é ela mesma...Laurinha.” Elucubra que depois da saúde as finanças o que mais preocupava os habitantes do planeta, a pandemia a gerar expectativas negativas. E sobre a vizinha, amiga da rua das Hortas, conclui: “Realmente Laurinha é uma privilegiada, formada, foi trabalhar no conceituado escritório de advocacia do pai. Começou por baixo, como estagiária, para dar bom exemplo, o que importa a uma família católica praticante”.

Resolve não se dar a conhecer. Escapa de ser vista, segue adiante.

 

Dizem que as coisas ruins costumam acontecer uma atrás da outra, Lydia com uma preocupação adicional, a suspeita de estar com câncer. Lembra da mãe a lhe falar: “Vais ficar doente, não paras nem para comer direito. Sempre em cima do carro, para lá e para cá. Uma vida agoniada, que fez muita gente que eu conheço entrar em crise nervosa, ter depressão. Verdade, há muito que deixara de ir ao médico e também ao analista por falta de tempo. Fazia análise desde o término do seu último relacionamento. Entrego o material para exame e a atendente avisa que o resultado do do exame só ficaria pronto dali a quinze dias, urgência só  para os casos mais graves, e do Covid-19. Sai e sem pressa de chegar em casa, resolve fazer um caminho mais longo. As ruas do Centro desertas, naquele dia de lockdown, decisão do governo estadual, para evitar aglomeração nas ruas, o povo sem querer obedecer à quarentena. Só na marra obedecem, pensa. Policiais a postos em cada esquina. A ordem é transitar apenas quando for preciso, e dizer o que faz na rua.

Lydia fica parada na esquina da rua Grande em frente ao antigo cinema Éden, uma beleza de prédio. Lança o olhar, acima e abaixo da artéria mais importante da cidade, gosto vê-la reformada e livre de pessoas aglomeradas no local, com os camelôs impedindo a passagem. Sorri  ao lembrar do vídeo feito por um   maranhense radicado em terras lusitanas, que fez uma pegadinha direcionada aos internautas seus conterrâneos, e da forma como foi gravada a rua das Carmelitas na cidade do Porto, os dois logradouros antigos     eram facilmente confundidos. A capital maranhense, fundada por franceses, mas colonizada por portugueses, era em muitos pontos da cidade parecida com a antiga capital portuguesa. Escuta gritos, vindo não sabe de onde:

 

—Ladrão! Ladrão!

 

Três rapazes surgem do nada, perseguidos por policiais. Tiros reboam no silêncio daquela tarde deserta. Os meliantes aproveitando para entrar em ação. Lydia corre em direção à rua mais próxima. Ainda na esquina olha numa residência lá adiante e fica assusta“...Parece que aquela é ... É ela mesma na janela...dona Cotinha!” Estranha ver uma velha amiga de sua mãe, tão jovem. Apressa o passo e está na rua de sua casa. Chega.

“Que coisa... mudou tudo no jardim... os canteiros sem as rosas...


                       Entra assim mesmo. A sala totalmente diferente, na penumbra. Cadê a mãe, que sempre está a postos. E sabia que a filha tinha ido ao laboratório. Senta numa cadeira, até então desconhecida. Fica assim alguns segundos, quase em pânico. Não demora aparecer a dona da casa, com seu melhor sorriso. Lydia dá por si. Entrara por engano na casa de dona Mercedes, casada com seu Haroldo da padaria. Os dois bangalôs    geminados. “A que ponto eu cheguei...” Pede desculpa pela invasão do domicílio. Sai apressada.

 

A vizinha ficou sem entender nada.

 

Ao entrar    finalmente em casa, Lydia narra para a mãe o ocorrido. O   susto com a polícia atirando para o alto, atrás dos ladrões, a entrada por engano na casa vizinha. “E o mais intrigante”- fala para a mãe - “foi ver sua velha amiga remoçada, na janela". A resposta vem com um sorriso compassivo:

Cotinha de dona Cotinha morreu muito tempo, filha. Tu viste foi a neta da minha amiga,  que se foi tão cedo! Estás estressada, precisas parar com as preocupações, tudo vai passar. Vamos para a cozinha, Miriam acaba de coar o café, e tem beiju. Acabo de ler Olavo Bilac que diz: “É preciso ter coragem”. Vou declamar para ti um trecho de um poema que decorei:

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena 

Se a alma não é pequena.


Quem quer passar além do Bojador Tem que 


passar além da dor.

 

 

O medo que Lydia tinha da morte é  muito grande, podia  ter raízes profundas. Sempre com a impressão de que algo ruim está prestes a acontecer.            O pai, suave criatura, mas tão exigente, ela vira ainda moço   baixar à sepultura. Desde então, a filha em seu paradoxal amor pela vida, e ao mesmo tempo sentia a morte iminente. A morte é uma ida sem volta, a única coisa que se pode dizer para sempre”, repetia sem parar sua tia Olga, após a perda do marido. Mas Lydia sabe que não era bem assim, permanecemos, sim, em nossa descendência. E a crença religiosa na vida eterna,    consoladora nesses dias de dor e mortes. Quanto mais mais elevados os pensamentos, menos maléfico o tempo de quarentena. E há o exemplar caso do médico, já com sintomas do Covid-19, mas não quis parar, e continuou na missão de salvar vidas. Questionado, explicou de imediato: “Eles precisam de mim”. A luta a favor da vida, da esperança, do amor ao próximo. Contra o ódio, a desconfiança, o preconceito. Dias incríveis vividos, e por viver no futuro, e que sejam melhores, no que Lydia acredita. Quinze dias depois recebeu o resultado do exame, e como era previsto, não havia câncer algum, o que ela precisava era extrair um cisto no ovário. 

Meses depois, ao acordar,  Lydia vai surpreender-se com a notícia na internet: “As internações dos infectados faz uma semana que diminuem dia após dia, a curva começa a baixar. Sinal que a quarentena vai chegar ao fim. O incrível é sentir que perdera a vontade de sair de casa. Ocorre-lhe um pensamento: Que mundo vamos encontrar lá fora?”  Dirige-se para a mãe:

—Vou voltar de cabeça erguida.

                  

                 No domingo Lydia dá a Leonor seu testemunho:

                 —  O ano 2020 não vai sair da memória dos que viveram tempos tão aflitivos, o mundo paralisados por um vírus. Mas foi a oportunidade que o ser humano teve de refletir sobre sua fragilidade, repensar suas atitudes frente à vida. Tantas mortes a lastimar. A abundância desse mundo rico e maravilhoso, os bens materiais e também espirituais para    serem repartido com amor, justiça, caridade. 

E depois de um breve silêncio Lydia continua:

 

                  —     Lembra de Júlio, meu antigo namorado, também biólogo, fizemos doutorado juntos, e temos um trabalho em conjunto. Ele convidou-me para participar dos estudos sobre o novo coronavírus, que acontece em um importante centro de pesquisa particular em S. Paulo, estou de malas prontas. Quanto à livraria, que é a minha paixão, vou deixar aos cuidados da prima Almira, para ela tomar as providência necessárias.

Leonor escuta a irmã e lembra que havia interrompido a faculdade de Letras para casar, tornar-se esposa e mãe em tempo integral. Assídua leitora na quarentena já começava a digitar algumas impressões pessoais com intenção de divulgar no blog na internet, estava empolgada, cheia de inspiração. Passou a ter aulas de português, e lembra da avó que dizia orgulhosa: “A última flor do Lácio, culta e bela”. Palavras ditas na capital maranhense, que tinha a fama de falar o melhor português do Brasil. Aprova a volta da irmã à sua biologia. E quanto a ela, Leonor,  definitivamente ao lado de Mario, unidos no propósito de mudanças, que lhes chegaram à mente durante a pandemia. E com auxílio de Machado de Assis, dá um toque especial ao diálogo citando suas palavras:  Deu-se sangue e morte ao inimigo, e que a humanidade, redimida, alcance a sonhada paz e prosperidade para todos.

Nota: A covid19 ainda iria enveredar pelo ano de 2021 com mais e mais mortes. Até a descoberta da bendita vacina, vendo-se então luz no fim desse túnel.  


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