QUARENTENA 2020 - UMA SAGA
parte II
Domingo pela manhã, religiosamente, Lidiane liga de S. Luís para a Leonor, residente em Brasília. Ao primeiro toque e lá está a irmã na linha para sua conversa dominical. Nas últimas semanas o assunto é a quarentena do novo corona vírus, uma pandemia, que avança célere, sem tempo para acabar: Os cientistas do mundo todo empenhados na busca por descobrir uma vacina que evite a disseminação da Covid19.
— Bom dia, minha querida! Mesmo que seja custoso acreditar, o dia pode ser bom, tem que acreditar e tomar as devidas precauções para preservar a saúde. Aqui, além do medo de adoecer, estou preocupada com meu empreendimento, que acabo de iniciar, e já se finda ao que parece. Há indícios de falência, sim, minha e de muitos empreendedores locais. Sem me deixar abater, estou fazendo descobertas importantes, o quanto nossa casa é um lugar ideal para se viver, o valor inestimável em estar só comigo mesma. Tenho minhas leituras, além do trabalho doméstico, que não me desagrada, pelo contrário, gosto de arrumar a casa e cozinhar. Já tirei os livros de culinária da estante. E nem sabia que eu tinha tantos livros em casa, ainda por ler, e também um estoque de momentos agradáveis para lembrar. Sempre é um prazer gozar do convívio de nossa mãe, que esteve contigo há pouco, e trouxe notícias. Ela também era devoradora de livros, herdado do nosso pai intelectual, juntamente com a casa. E tem os livros que recebo de autores iniciantes, alguns bons, que passei a vender em minha livraria.
Em Brasília, Leonor está sentada no sofá, bem acomodada para a longa conversa com sua irmã mais nova, ainda solteira, sempre com um noivo, mas nunca decidida a casar. Tem amor pela irmã, admira sua coragem para viver só e ser uma empreendedora. Fala da sua preocupação com o marido retido na Europa, sem poder retornar ao Brasil. Não quer entrar em pânico, mas que de vez em quando se vê acometida de de um pensar caótico, vulnerável, sem conseguir controlar a mente. Pensa também no filho residindo longe, na Austrália. Diz para a irmã que tenta lembrar dos fatos agradáveis e adequados para vencer o medo. Silêncio entre as duas.
—???!!!
—Você está escutando?
—Pode falar, mana.
—Com medo de faltar produtos em casa comecei a fazer pedidos pela internet para abastecer a dispensa da casa, as entregas não param. Já não sobra lugar para mais nada, um terço do local de armazenamento tomado por pacotes e mais pacotes de papel higiênico. Ontem fui conferir os produtos estocados, e o que vi não me deu segurança e, sim, tristeza. Quantas pessoas desempregadas, sem ter dinheiro para as compras da família . Sentei em frente à porta, chorei e chorei. O que fazer com aquilo tudo? Resolvi doar para quem precisa de verdade. Já liguei para minha igreja vir buscar parte daquilo tudo.
Do outro lado da linha, Leonor aprova a iniciativa da doação, que servia, inclusive, para aliviar a consciência. Fala sobre sobre sua situação:
- Quase um mês de pandemia e o dinheiro acabando, Mário já tendo recorrido à embaixada brasileira em Portugal. No hotel os turistas convocados para se retirarem do local, e cadê avião para o retorno, uma loucura.
Após a meia hora de consolo mútuo, despedem-se. Dona Clarice escuta a conversa feita a viva voz. Retribui o beijo que a filha manda de Brasília para ela, e depois comenta:
-Leonor detesta ser invasiva, talvez por ser a mais velha, criada com mais rigor.
Dito isso, pega de volta o livro que havia parado de ler, o crime ainda longe de ser desvendado. Pensa nos dez livros que estão na fila, tendo tempo de sobra para devorar todos eles, velhos conhecidos seus, herdados por Lidiane, assim como a casa. E diz para si mesma: “Livro é que não falta por aqui, felizmente, e podem vir os encalhados da livraria... Ainda bem que há um mirante para abrigá-los"..
Lidiane já está diante do computador, confere as postagens nas redes sociais, notícias e mais, notícias da pandemia. Revolta-se com o último fake New. Toma cuidado para não se deixar enganar, as mentiras não param, mas há boas informações. Bendiz a tecnologia, que possibilita a comunicação à distância. Lê o conselho de saúde para lavar tudo o que vem da rua, que pode estar contaminado. O pessoal nas redes sempre criativo, e lá está a postagem que diz: “Meu sonho de consumo é uma máquina de lavar compras.” Provocar humor e emoção faz parte dessa comunicação em tempo de pandemia. Emocionante ver a Banda do Exército Brasileiro nas ruas de Fortaleza tocando o hino “Vencendo vem Jesus”. A capital do Ceará com um dos maiores índices de infectados, a responsabilidade por conta do o turismo. Não tem como não ficar emocionada com uma futura mamãe a sorrir confiante, mostrando a ultrassonografia do seu bebê. A solidariedade em alta, pessoas de boa vontade mobilizadas para arrecadar e distribuir produtos de primeira necessidade. O mundo não vai acabar, quem sabe vai até melhorar — pensa Lidiane.
Em Brasília Leonor toma um comprimido para dormir, o que não costuma fazer. Rapidamente pega no sono. No dia seguinte acorda e consulta o relógio. Passavam das dez. Normalmente dormia apenas cinco horas, o suficiente no seu caso particular. Essas última oito horas de sono só com ajuda de remédio, o que não é nada bom, lastima. Fala para si mesma: “Serenidade”. E antes de colocar a máscara e pegar a bolsa para sair, dá uma espiada pela janela. Observa o tempo, a chuva, raridade na cidade acaba de ir embora. Está preparada para enfrentar a rua. Mascarada, entra no elevador vazio, se tivesse alguém tinha que recuar, conforme o protocolo. Ao passar pelo pessoal da portaria observa a troca de olhares. Teriam questionado: “O que vai fazer uma idosa na rua?”
"Sobre o que mesmo estava pensando na noite anterior?”
É hora do almoço, descongela o picadinho no micro-ondas. Feliz solução, os congelados. Enquanto almoça pensa em Augusto, único filho, que na Austrália deve estar tomando suas providências para sobreviver. Sente falta dos homens da casa. Nada para fazer até a hora da missa na televisão, às seis da tarde. A vontade é ficar desligada de qualquer pensamento negativo, não consegue, o cérebro bem desperto, pronto para entrar em atividade. Os olhos fechados, mas a mente alerta e tensa, como se esperasse acontecer algo inesperado, i nclusive de morte de alguém próximo.
Morte era o que não faltava, infelizmente, as vítimas contadas aos milhares. Lembra a todo momento em Lidiane, com problemas financeiros: ”Situação de muitos comerciantes, de tantas pessoas que perderam os empregos. Focada no problema econômico, pensa que é uma boa hora das pessoas pensarem nos desperdícios. A irmã está certa de doar o que lhe sobra. A poltrona geme ao levantar-se. Quer sair outra vez para fazer outra caminhada, sintoma de depressão. Volta a sentar-se. Sente dificuldade em interpretar o sonho da noite passada com o filho, que fazia um curso de especialização na área de relações internacionais. Ele ia ficar fora por ano e meio, e costumavam caminhar juntos, e lhe havia dito ao telefone:
—Relaxa mãe, você está perfeitamente bem, mas é bom disciplinar os pensamentos, a saúde mental é o mais importante.
O filho imensamente compassivo, o que seria um sinal de fraqueza para o homem, o que não era o caso dele. Leonor tinha certeza da sua firmeza de caráter. Incrível como o tempo passa rápido, ou lento, de acordo com cada situação. Talvez fosse melhor não sair mesmo de casa. pensa com um aperto no coração. Por fora era a mesma pessoa que iniciara o período de quarentena, mas só ela sabia a mudança incrível que começava a ocorrer com todos. No seu caso, outra mulher brotava, era aquele o momento justo para a mudança. Barreiras derrubadas com a maré crescente do medo e solidão. Adormece sem comprimido. Sonha com o marido:
“Mario,
Mario! ”
Leonor percebe que a qualidade do ar está melhor, sim, após alguns dias da quarentena. Acompanha os comentários na TV, que há multiplicação dos animais marinhos nos oceanos, e todos os animais terrestres revigorados. Os habitantes aquáticos nunca vistos nas águas turvas de Veneza, nadam felizes, uma agradável surpresa, pena que em circunstâncias tão trágicas. Lembra do pássaro que por alguns segundos ficou acomodo no peitoril da janela do escritório, parecia observá-la no computador. Pensa se há uma compensação para essa tragédia humana. Seria o aumento da solidariedade. Aconteciam atos inesperados de altruísmo e coragem desse ser tão vulnerável ao egoísmo, ao medo e à ganância.
Outra vez em casa, acessa a internet.
Acompanha os lives, artistas
mundialmente famosos dão shows grátis para os aquartelados. Também inspirados anônimos, chamam a atenção pela criatividade, parecem
dizer: “Eu existo, eu estou vivo,
penso em vocês, nós todos, navegantes do mesmo barco, tentamos nos
salvar desse ataque invisível”. O milagre da tecnologia. A surpresa de ver o tenor José Carreras na sacada de sua casa em Paris, brindando os vizinhos e os internautas, com seu admirável
vozeirão. Curado do câncer, mal que não abate facilmente os que resistem, ela mesma é testemunha disso. A vida, nosso bem
maior, que se refaz a cada ataque
do mal.
Estava encantada com a presença do tenor no seu laptop, quando o marido aparece a sua frente. Leonor exulta ao vê-lo. Como previsto, ele foi colocado no último voo para o Brasil. Mesmo sentado na última fila, perto do banheiro, um suplício para quem costuma viajar na classe executiva. Mas dá graças a Deus por estar vivo e em casa. Depois de beijar a esposa, Mario pede um café, se possível, com pão de queijo quentinho. Fala da impressão que teve ao encontrar Brasília deserta, como em Portugal, e os demais países da Europa, o mundo todo na mesma situação. Todos envolvidos universalmente por esse específico mal. Mário fala para a esposa:
—O Covid-19 não vai eliminar a vida sobre a face da terra, o mais certo é que faça o ser humano refém dele para sempre.
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