FICÇÃO
BOM VIVER, COM SOL, OUCHUVA
CHUVA EM S. LUÍS - MA |
A nova
cafeteria perto da casa de Maria teve sua indicação para o encontro com das
amigas após os dois meses de pausa devidos aos festejos de fim e início de ano,
incluindo o carnaval. Cinco presenças no dia combinado, todas aposentadas, com idades
na faixa dos “enta”, a começar pelos setenta. Depois da animação por voltarem a
se ver, já sentadas na mesa que escolheram perto da janela, e antes de serem
servidas, contam rapidamente como passaram os dias de festejos. O verão está
sendo o mais quente em milhares de anos, o que Marta soube através dos comentários nas redes
sociais, informação que passa adiante sem confirmar a veracidade, e diz ter aproveitado
o carnaval para não ir a parte alguma, apenas arrumou os armários, e com o ar
refrigerado ligado no máximo. Cibele viajou com a família, e sente-se aliviada por todos terem
voltado sãos e salvos, livres da dengue e do covid.
Por medo Alice havia desistido de fazer o circuito das águas em Minas,
também ficou em casa, vendo o carnaval pela TV. Não houve passeio ao exterior, o
que seria uma heresia sair do país quando turistas do mundo todo aportam no
Brasil para ver de perto a folia, opina Mirtes, que também optou por ficar em casa pondo em dia
suas leituras. Cleide, recém-divorciada após vinte anos de casamento, acaba de
completar 70 anos, data que festejou em Fernando de Noronha com o namorado da
mesma idade. Resumo das biografias. O assunto programado para comentarem nesse encontro é sobre o tempo de juventude,
o que cada uma vivenciou quando jovem, e como se sentem no momento. Cleide dá
início aos depoimentos.
— Faz parte da
vida as mudanças; mudamos nós, e muda o
mundo junto conosco. Certo que nunca
somos os mesmos a cada dia que passa, e haja mudança no que for bom mudar. Ficar o tempo todo na mesma, quem quer? Certo que a juventude é tempo dos sonhos, ainda
que sejam superados, e tudo se realize de forma diferente, indo além do que foi sonhado. Tenho queixas, sim,
e toda a vida tive que me reinventar
várias vezes, o que acontece com muita gente boa, o meu caso. Vivi de peito
aberto, tirando lições dos desafios que
a vida impõe.
Alice pede para
falar.
— Queridas,
somos sortudas por estarmos vivas e com boa saúde. Só não demore além da conta o inevitável desfecho, e eu possa ir emboara com a tranquilidade com que vivi. Certo que quanto
mais demorarmos por aqui, aumenta a possibilidade de perdermos a sorte, que nos acompanha, sendo assim, melhor partir na hoara certa, não adianta querer protelar, ou adiantar a partida. Deus é quem sabe. E enquanto a morte não chega vivermos os abençoados dias de maturidade, quando então podemos aproveitar
melhor a vida. Tive meus questionamentos quando jovem, e os tenho ainda hoje, bem menos, pois a vida nos ensina a ver
as coisas com mais tranquilidade e leveza.
Mirtes está
ansiosa para contar as aflições que
passou quando jovem.
— Nem queiram
saber o quanto fui apressada, aflita, com pressa em aprender e fazer as coisa acontecerem, por achar que a gente perder a própria vida se não estiver realizando alguma
coisa, em agitação. “Pintei e bordei”, como se diz. Certo que “tudo vale a pena
se a alma não é pequena”. E por isso estou aqui e agora seguindo devagar e
sempre com minha vida, ciente que não vale a pena desperdiçá-la. Vale a pena viver, e ponto.
Cleide é um doce de pessoa, como
reconhecem suas amigas, mas vai surpreender com seu depoimento.
— Sou assim
mesmo, sem vocação para entrar em
conflito, que me altere o humor. Penso até que sou autista, desligada dos
problemas, meus e dos outros. E não sei como estou aqui com vocês. Só lastimo
na vida não ter dado maior atenção às pessoas à minha volta, que tanto mereciam.
A madrinha de todos da família, por
exemplo, já bem velhinha, pedia para eu sentar perto dela para conversar, e
dizia: “Senta aqui, meu bem, eu estou para deixar vocês.” Palavras que até hoje
me toca na alma. Rapidamente eu beijava
suas faces enrugadas, para logo partir em direção ao meu esconderijo preferido,
atrás dos livros. Experimentei ser poeta, inspirada em Baudelaire. Imagina o
que saiu da minha cabeça, sem que possa conferir, pois perdi todos os meus
apontamentos.
Maria,
a mais idosa, acaba de completar 80 anos, é a última a falar.
— Vivo um
momento em que nada me faz querer sair do comodismo da minha casa, cidade,
país. Estou numa fase de rejeição de muita coisa, até mesmo das viagens, o que
muito me seduzia. Passei minha infância e juventude sempre no mesmo lugar, bom
para experimentar a estabilidade, necessária à formação. Já a mocidade foi de mudanças daqui para ali,
quem sabe para compensar o tempo em que
não saia para lugar algum . Conhecer
novos horizontes passou a ser uma meta, contando com a boa vontade do
meu companheiro de estrada. Paramos, que a idade pesa, e estamos felizes por enxergar
e ainda caminhar sem ajuda de bengala. Com sol ou chuva, é bom vive.r
As falas não
demandaram muito tempo, estão na
cafeteria há mais de duas horas. Sobram coisas para contar, mas fica para outra
ocasião. Partem do local, sendo observadas pelo dono do estabelecimento, amigo
de juventude dessas idosas, ainda dispostas a aproveitarem a vida, até mesmo
aprontarem alguma.
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