AOS 96 ANOS DE MINHA MÃE – QUASE MEMÓRIAS
Ela
quis dar uma mexida na vida, os filhos praticamente criados, ia fazer concurso
público. O antigo sonho de Ivone que retorna, ter uma profissão, seu próprio
dinheiro, depois de uma década dedicada exclusivamente ao lar. Desconfiava do
constrangimento que ia causar, inclusive para a mãe, com as filhas das amigas
sustentadas pelo marido... Saía de casa para trabalhar por necessidade, iam
dizer! O marido mandando na mulher dentro do lar e no mundo lá fora, igual aos
outros homens. Eles, sim, seres evoluídos. A vida pública o “elo perdido” da
evolução feminina, o que a mulher de Herculano acabara de descobrir, disposta a
pegar condução rumo aos novos tempos. Os bondes elétricos sumiram, agora só
veículos motorizados corriam nas vias urbanas asfaltadas: ônibus, carros, para
transportarem as pessoas com a rapidez necessária na corrida progressista. Os automóveis
prestigiavam a individualidade, para quem na época podia adquirir tão maravilhosa
máquina, o cobiçado Fusca, o pioneiro da fabricação nacional. Ivone desejava
ter um branquinho com forração vermelha, a família prestes a ter um desses,
adquirido num consórcio. Era o máximo! Ia andar de carro com a família, ótimo, mas
queria deixar de ser apenas dona de casa, embora feliz por estar casada com aquele homem, pelos três filhos, e pertencer à
classe média, ainda não de todo esmagada por compromissos a mais e recursos de
menos. Uma classe média preste a se extinguir, o que diziam os pessimistas, mas
vivia seu auge, e que sairia prestigiada da crise.
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Pela terceira ou quarta vez ela passava
por ali em direção ao curso noturno de contabilidade, foi quando avistou atrás
do balcão o bem apessoado rapaz, olhos azuis da descendência inglesa, a padaria
de sua propriedade em vias de fechar as portas. Nem podia imaginar que os dois pudessem
um dia estar unidos para sempre. Nem tão separados socialmente, mas quão diferentes,
difícil a convivência. O pai da moça, médio comerciante e português,
intransigente com a filha que ele almejava ver formada em ciências domésticas,
na conceituada Escola Doméstica de Natal, o que seria a educação mais avançada
para a mulher no mundo científico, com o dever de cuidar da família.
Continuaria seu trabalho dentro do lar, uma mais expedita “mulherzinha”, pondo
a grandeza do conhecimento adquirido a serviço exclusivo da procriação. Mãe
coroada pela ciência. O destino da mulher cuidar do marido e da prole, cumprido,
em parte, pela mãe de Delzuíte, que teve de trabalhar fora, não por gosto, mas necessidade.
E chegou a lamentar o desejo da filha, já casada, seguir a carreira de
funcionária pública. Nas aflições (quem
não as tem?) ela recorria aos Santos e aos Salmos. Nas missas a mais fervorosa,
não por carolice, sempre em seu lar entronizado a imagem dos corações de Jesus
e de Maria, que deviam ser os verdadeiros donos. Teve sucesso na condução da
família, na educação e amor aos filhos biológicos e da adoção.
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Elas nunca apelavam para as lágrimas, pois as
virtudes estoica deviam prevalecer sobre qualquer poder advindo do
sentimentalismo e seus exageros. A burguesia dera a largada para o progresso econômico, da produção e
do consumo, mas teria formado pessoas acomodados e sem maiores arroubos, apenas
pacatos partícipes da evolução dos acontecimentos. A classe protestava, dizendo
que a exibição era para os burocratas corporativos, em ascensão social, mas a
quem se deve o processo de consolidação das instituições. Diderot havia
declarado do alto do seu iluminismo: “Tudo
deve ser sacudido, sem exceção e sem timidez”. As filhas de diona Dezinha, Célia e Ana, não eram
atingidas por aquele iluminismo redivivo, sob forma de feminismo, e bem longe dos arroubos românticos, de sentimentalismo e pessimismo desgastante, desses atuais
rebeldes, que infernizam a sociedade de prosperidade e controle burguês. No
século XX os comunistas, ao fugirem da ganância da burguesia, caíram na armadilha
do poder e ambição dos burocratas comunistas. É a civilização que cria meios de
evoluir, e sempre com capacidade de corrigir a rota quando as coisas degeneram.
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Cleonice tinha o coração
não tão largo quanto o de sua mãe, que parecia abrigar toda a humanidade,
indiscriminadamente. Sobre isso a filha refletia que, um coração para agir assim,
só tinha uma razão: amar todo mundo para não ter é de amar ninguém em especial,
e com isso estaria livre da carga de sofrimento que um tal amor egoísta carrega
consigo. Em contrapartida, experimentaria um amor universal. Dona Dedinha apaixonada
pelo marido e cuidando muito bem dos filhos, mas parecia querer o impossível para
ela e o mundo. Ao sofrer um assalto, não o único em sua vida, disse
despreocupada: “Mais tem Deus para dar!”. Para Cleonice a mãe queria se livrar
do “vil metal”. Seria melhor se fosse
pobrezinha? E parecia avisar: “Não me peçam nada, não deem nada para mim, não
posso fazer nada, sou apenas uma pobre mulher, ou em outras palavras: sou um
nada”. A filha menos desprendida que a mãe, e sem toda aquela ambição da amiga
Paula, de quem recebeu conselho para escolher uma carreira que desse muito
dinheiro. Melhor cada um construir sua vida, realizar um trabalho meritório, com esforço
e bom senso, priorizando a boa consciência.
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S.
Luis do Maranhão, Rua Rio Branco, que voltou a ser Rua dos Remédios. A filha de
dona Carmelita quando passava de bonde via sempre Yeda na janela. O bonde e a
vida que não saiam dos trilhos. A aparência excessivamente cuidada da janeleira,
sempre sorridente... Ou ela estaria chorando? De um modo geral as mulheres
impassíveis, numa premeditada falta de expressão, consumidoras de lingerie de luxo, quando na Europa os
sutiãs estavam sendo queimados em praça pública. Yeda ria de que? Podia ser da
felicidade por ser mulher. E quando parecia chorar, seria pelo mesmo motivo. As mulheres com pouco estudo – certamente
para não perderem a feminilidade, o que achavam possível de acontecer com aquelas
que desenvolvessem alguma atividade cerebral e produtiva, considerada na época
inimigas da função reprodutiva. Assim os homens não perderem a ilusão sobre a
mulher, e o mundo sempre o mesmo...Mas como haveria de mudar!
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A prima com vinte e três anos estava temerosa
de ficar para o caritó, ou seja, encalhada. Era o fim das que não se casavam na
época considerada a certa. A mãe de Ilva, pessoa evoluída, amiga, mesmo assim,
com indiretas, que a filha mais velha aos vinte e um anos já estava casada, “e
muito bem casada”, ponderava. E a mais nova não tardasse em conquistar um bom
marido para ter filhos, enquanto para tudo o mais a mulher tinha todo o tempo
do mundo, e tinha mesmo. Únicas responsáveis pelo sucesso ou fracasso dos
familiares, as mulheres, em sua maioria, vivam uma espécie de zona sombria, tramando
a favor de cada um, sempre tentando fazer as coisas acontecerem, e com real
influência sobre tudo. Mães sem uma realização profissional, ou escondendo tais
ambições, que as novas gerações começavam a almejar. A luta primeira, todavia,
vencida por dona Deusa que teve autonomia sobre o próprio corpo, controlando o
número de filhos, sendo corriqueiro que as mulheres engravidassem mais de uma
dúzia de vezes, quando não morriam antes, os partos um atrás do outro. Pouco se
ouvia falar de Simone de Beauvoir para quem a mulher não nascia mulher, se
fazia mulher. Lógico que não se pensava em deixar de ser mulher por não casar,
nem ter filhos. Hoje se fala abertamente em casamento entre pessoas do mesmo
sexo, fazendo pouco caso da família, constituída de pai, mãe e filhos. Amar e
procriar era prioridade para a mulher e o homem, que mereciam a compensação de
uma vida completa no seio do lar. O compromisso maior com a vida, com a
sociedade. Impossível a mutação desses novos “casais” em famílias de verdade, inclusive,
com filhos, pois não há como abolir a distinção entre homem e mulher e sua
reais funções. Igualar os casais héteros e gays, no que se refere à reprodução,
é uma engenharia social que beira a aberração, e uma simples lei civil não pode
consolidar. Ideologia libertária absurda para reascender a chama do marxismo,
anarquismo, e outros ismos, mas que coloca lenha na fogueira do terrorismo. Ou
são apenas velas acesas para os mortos, inclusive, para a família?
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