TRABALHOS DE AMOR E
FORTUNA
Os povos ibéricos, de
fé católica preponderante, desprezavam os ofícios mecânicos, o que não ocorria
na parte setentrional do continente europeu. Tanto na intransigente Alemanha,
quanto na condescendente Holanda, duas laboriosas nações, de maioria
protestante, foi adotada a ética do trabalho. A Rendilheira exalta de
modo claro o trabalho feminino, tecendo o fio, comodamente sentada. O mesmo
acontece em A Leiteira que está de pé derramando leite no tacho para fazer
o pão de cada dia. Além do que está oculto nas duas pinturas. Concentradas em
suas tarefas, as mulheres transmitem dignidade pessoal e ao trabalho a que se
dedicam, em cada ação embutido valor
moral e econômico. O ethos do
trabalho nos dois quadros para libertar as pessoas de poderes arbitrários,
consoante o que determina a sociedade utilitarista protestante. As duas mulheres
em atividades que podem até subjugá-las, vulgarizá-las, mas também pode
torná-las livres de cair nas tentações do mundo. A robusta leiteira está
vestida de modo simples, com as mangas da blusa arregaçadas, deixando ver a
alvura do antebraço, a pureza do seu corpo, que tem a mesma cor do leite, o que
certamente não se trata de racismo.
Questionamos ainda se a
rendilheira não seria uma mágica ledora de renda, dessas que foram queimadas
como bruxas, torturadas. No século das almas, além do trabalho nas oficinas,
havia o de cunho espiritual, mágico, e o quanto as mulheres foram perseguidas
por isso, precursoras que foram da ciência moderna. Fruto de especial magia,
por exemplo, é a moderna técnica psicoterápica de “reinstalar a fiação” (rewied), como remédio contra a
depressão, e que é usada para provocar “mudanças metabólicas cerebrais
regionais adaptativas”. O trabalho de “mentalização” capaz de curar o cérebro
depressivo. O trabalho como método de cura,
uma vez que a mente ocupada pode prevenir contra os males psicossomáticos.
Exemplares as personagens de Vermeer habilitadas nos ofícios, quando menos,
para fugirem do vazio existencial, pelo bem estar que oferecem a si próprias e
a outras pessoas. A saída honrosa contra a miséria estaria na rotina do
trabalho, tanto do corpo quanto da alma, o que Calvino incentiva para as
mulheres. O aprendizado dos ofícios seguindo rígida disciplina, uma vez que a
insegurança se faz presente mesmo no melhor dos mundos.
A ética protestante,
segundo Max Weber, é por um ideal de vida que exige autocontrole e precisão de
conduta. Assim, por trás das duas trabalhadoras, as paredes estão nuas, apenas um
prego denuncia que algo esteve suspenso ali e foi retirado, e poderia ser algum
mapa geográfico, uma tela de cupido, uma paisagem, ou mesmo um famoso quadro da
fé católica, que servem de fundo em outros quadros de Vermeer. Todos varridos
do local, por representar aos puritanos e calvinistas coisas de ímpios, de
desonestos. Intrigante o pontilhado luminoso que aparece no azul-escuro da
manta de lã ao lado da redilheira. O mesmo pontilhado do pão produzido pela
leiteira, salpicado de pequenos pontos dourados. Exprimem obscuridades que vêm
à luz. O invisível quer se tornar visível e fazem parte da natureza e suas
leis; humanidades saídas da obscuridade, tornadas mais claras possíveis. Diz
Aristóteles em sua Metafísica : “Indicar a
substância de uma coisa nada mais é do que indicar o ser próprio dela”. O
pontilhado de Vermeer, uma tentativa de revelar o sentido oculto das coisas,
metafísico e moral, também, as ínfimas partículas da matéria, que a ciência não
tardaria a revelar, tal como o valor vitamínico dos produtos, necessário para o
bom funcionamento do corpo, o que os valores espirituais representam para a
alma. Na Holanda, à época, o inventor Leeuwenhoek de Delf deixa todo mundo
abismado, principalmente os humanistas, ao fazer as primeiras observações sobre
a natureza dos tecidos, servindo-se a princípio de uma lupa, depois com um
microscópio rudimentar por ele inventado.
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