FICÇÃO
LIÇÕES DA PATAGÔNIA
Ela gostava de
viajar. Aos oitenta anos o sentimento de Dalva a respeito do assunto era de
todo modo contraditório. Andou demais por esse mundo afora, viagens uma atrás
da outras, isso desde que se aposentara. Não pretendia mais enfrentar aeroportos,
e tudo o mais que as viagens exigem, parecia estar satisfeita, feliz com tudo
que viu, agora era só recordar. À tarde costumava assistir um programa na
televisão sobre lugares exóticos, quando viu a Patagônia na tela, e de imediato disse
para si mesma: Como havia deixado de fora essa aventura?
Pela
manhã, coincidentemente, a amiga Maria, que há muito não via, lhe falara ao
telefone que ia para o Rio, tinha comprado um apartamento em Copacabana. Ligou
de volta, propondo fazer-lhe companhia, caso concordasse. Sua ideia era aproveitar e dali partir para a
Patagônia, que ficava entre a Argentina e o Chile, ver os animais de perto, não
apenas admirá-los nas gravuras e na tela da televisão. Ia por os olhos cansados
nos mais interessantes animais existentes na terra.
Comunicou
ao marido a nova viagem, só a do Rio, não a aventura na Patagônia, embora ele jamais
tenha reprovado alguma coisa que ela fizesse, era da santa paz, aprendera no
seminário. Ele dera um basta, alegava estar farto após três excursões ao
exterior. Enquanto a mulher continuava a viajar, numa quase compulsão, essa a verdade,
até que ela mesma resolveu parar, afinal os anos já lhe pesavam. Mas de repente
veio esse seu desejo de Dalva conhecer o lugar onde Darwin deu início às
pesquisas que resultaram na sua teoria da seleção
natural, ou da evolução das espécies.
Católica fervorosa, adepta do criacionismo, também admirava os avanços da
ciência. “Ai de nós se não fossem as vacinas nessa pandemia do covid19”, dizia
para os incrédulos, gente que não acredita em nada.
Maria
aceitou de bom grado ter a companhia de Dalva naqueles quinze dias que ia
passar no apartamento novo. Sem que estivesse em seus planos estender o passeio.
E quando a amiga ao chegar falou da ida à Patagônia ficou aflita. Terra erma,
sítio que remetia à vida selvagem, à ancestralidade. Sentindo-se responsável
pela amiga tratou de entrar em contato com o marido dela, que de imediato disse
ser impossível dissuadir a mulher de alguma coisa que quisesse fazer, em
especial viagens. E mais, confiava na sua acompanhante para a aventura
naturalista, nas pegadas do cientista inglês.
Ainda
em Copacabana Maria percebeu que Dalva estava o tempo todo pondo a prova sua
amizade por ela. Disse-lhe então que podiam, sim, fazer aquela viagem. Pensou: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”.
Boa ideia observar os animais no seu habitat. E assim partiram as duas para a
aventura. Uma surpresa o tamanho minúsculo dos pinguins, seu andar
desengonçado, escorregando nas pedras como em tobogãs para caírem na água,
namorando, e o que se sabe é que esses animais são alegres criaturas e os mais
fieis dos amantes, para inveja dos tristes e infiéis seres humano. Darwin,
todavia, ficara abalado com o problema do mal. Observou o sofrimento e a dor
no reino animal, por exemplo, uma vespa
paralisa uma lagarta para servi-la viva como alimento aos filhotes.
Quando
Dalva viu um mandrião em disparada mergulhar nas comunidades dos pássaros e
pegar um filhote e voltar a disparar, grita revoltada: “Solta ele, bicho
mau”. A infeliz presa esperneia, e logo chega outro mandrião para compartilhar
o repasto. Maria rebate:
—
Não, Dalva, o mandrião não atacou a presa por maldade, agiu por instinto. A única
forma dos irracionais conseguirem alimento é essa que acabamos de ver. A
violência e tudo por mais estranho que seja, faz parte da vida selvagem. Darwin
relutou em perder a fé em Deus, mas parece que nunca foi um ateísta. Deus é o
Bem. A fé em Deus que redime de todo mal. Amém!
Encantada
com os pinguins, Dalva faz a observação:
— Os
pinguins e as focas mergulham para pegar o peixe e devorá-los ainda vivos, mesmo
assim, transmitem uma imagem de inocência infantil, como crianças. Só que diferente
dos irracionais os seres humanos, racionais, têm sentimento, e há pessoas que
não comem carne em consideração aos outros seres vivos, mesmo que seja um bom alimento.
Conclui
Maria:
— Como
é o sentimento que nos move vale observar nossas ações, se há maldade. E quanta
maldade há no ódio, na inveja, no ciúme, na ganância. Sendo assim, vivemos tão
perigosamente na cidade como na selva, temos que nos acautelar. A maldade é
contagiosa, mas, felizmente, a bondade também. Podemos aperfeiçoar-nos no
sentido de sermos bons, cada vez melhores.
Já
estavam de volta, Dalva havia abandonado sua desconfiança e fastio, e Maria podia
dizer sem medo de errar: ”Se alguém quiser conhecer outra pessoa faça uma
viagem com ela.” Verdade.
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