sábado, 11 de junho de 2022

 

FICÇÃO

          

                                     LIÇÕES DA PATAGÔNIA





 

Ela gostava de viajar. Aos oitenta anos o sentimento de Dalva a respeito do assunto era de todo modo contraditório. Andou demais por esse mundo afora, viagens uma atrás da outras, isso desde que se aposentara. Não pretendia mais enfrentar aeroportos, e tudo o mais que as viagens exigem, parecia estar satisfeita, feliz com tudo que viu, agora era só recordar. À tarde costumava assistir um programa na televisão sobre lugares exóticos, quando  viu a Patagônia na tela, e de imediato disse para si mesma: Como havia deixado de fora essa aventura?

Pela manhã, coincidentemente, a amiga Maria, que há muito não via, lhe falara ao telefone que ia para o Rio, tinha comprado um apartamento em Copacabana. Ligou de volta, propondo fazer-lhe companhia, caso concordasse.  Sua ideia era aproveitar e dali partir para a Patagônia, que ficava entre a Argentina e o Chile, ver os animais de perto, não apenas admirá-los nas gravuras e na tela da televisão. Ia por os olhos cansados nos mais interessantes animais existentes na terra.

Comunicou ao marido a nova viagem, só a do Rio, não a aventura na Patagônia, embora ele jamais tenha reprovado alguma coisa que ela fizesse, era da santa paz, aprendera no seminário. Ele dera um basta, alegava estar farto após três excursões ao exterior. Enquanto a mulher continuava a viajar, numa quase compulsão, essa a verdade, até que ela mesma resolveu parar, afinal os anos já lhe pesavam. Mas de repente veio esse seu desejo de Dalva conhecer o lugar onde Darwin deu início às pesquisas que resultaram na sua teoria da seleção natural, ou da evolução das espécies. Católica fervorosa, adepta do criacionismo, também admirava os avanços da ciência. “Ai de nós se não fossem as vacinas nessa pandemia do covid19”, dizia para os incrédulos, gente que não acredita em nada.

Maria aceitou de bom grado ter a companhia de Dalva naqueles quinze dias que ia passar no apartamento novo. Sem que estivesse em seus planos estender o passeio. E quando a amiga ao chegar falou da ida à Patagônia ficou aflita. Terra erma, sítio que remetia à vida selvagem, à ancestralidade. Sentindo-se responsável pela amiga tratou de entrar em contato com o marido dela, que de imediato disse ser impossível dissuadir a mulher de alguma coisa que quisesse fazer, em especial viagens. E mais, confiava na sua acompanhante para a aventura naturalista, nas pegadas do cientista inglês.

Ainda em Copacabana Maria percebeu que Dalva estava o tempo todo pondo a prova sua amizade por ela. Disse-lhe então que podiam, sim, fazer aquela viagem. Pensou: “Tudo vale a pena se a alma não é pequena”. Boa ideia observar os animais no seu habitat. E assim partiram as duas para a aventura. Uma surpresa o tamanho minúsculo dos pinguins, seu andar desengonçado, escorregando nas pedras como em tobogãs para caírem na água, namorando, e o que se sabe é que esses animais são alegres criaturas e os mais fieis dos amantes, para inveja dos tristes e infiéis seres humano. Darwin, todavia, ficara abalado com o problema do mal. Observou o sofrimento e a dor no reino animal, por exemplo, uma  vespa paralisa uma lagarta para servi-la viva como alimento aos filhotes. 

Quando Dalva viu um mandrião em disparada mergulhar nas comunidades dos pássaros e pegar um filhote e voltar a disparar, grita revoltada: “Solta ele, bicho mau”. A infeliz presa esperneia, e logo chega outro mandrião para compartilhar o repasto. Maria rebate:

— Não, Dalva, o mandrião não atacou a presa por maldade, agiu por instinto. A única forma dos irracionais conseguirem alimento é essa que acabamos de ver. A violência e tudo por mais estranho que seja, faz parte da vida selvagem. Darwin relutou em perder a fé em Deus, mas parece que nunca foi um ateísta. Deus é o Bem. A fé em Deus que redime de todo mal. Amém!

Encantada com os pinguins, Dalva faz a observação:

— Os pinguins e as focas mergulham para pegar o peixe e devorá-los ainda vivos, mesmo assim, transmitem uma imagem de inocência infantil, como crianças. Só que diferente dos irracionais os seres humanos, racionais, têm sentimento, e há pessoas que não comem carne em consideração aos outros seres vivos, mesmo que seja um bom alimento.

Conclui Maria:

— Como é o sentimento que nos move vale observar nossas ações, se há maldade. E quanta maldade há no ódio, na inveja, no ciúme, na ganância. Sendo assim, vivemos tão perigosamente na cidade como na selva, temos que nos acautelar. A maldade é contagiosa, mas, felizmente, a bondade também. Podemos aperfeiçoar-nos no sentido de sermos bons, cada vez melhores.

Já estavam de volta, Dalva havia abandonado sua desconfiança e fastio, e Maria podia dizer sem medo de errar: ”Se alguém quiser conhecer outra pessoa faça uma viagem com ela.” Verdade.

 

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