MINHA TIA IMPRESSIONISTA II
Mais nova das duas irmãs, tia Ilza, era caprichosa em tudo, e naquele
dia eu observava ela dar um laço de fita
no papel de seda sobre as balas de ovos, quando o primo Tonico entrou com a
notícia que um Zeppelin dava
voltas pela cidade. Corri para fora de casa, olhei para o alto e nada vi. Era cá
em baixo o que vi foi uma horrenda imitação do charuto de gás da aviação alemã,
que passava com dificuldade pelas ruas estreitas da cidade, um novo transporte
público. O gigantesco Hindemburg voara perigosamente sobre as cabeças, mas explodira
no ar um ano antes de eu nascer, pondo fim à carreira dos tais dirigíveis, antes
do fim da Segunda Guerra, com a vitória dos aliados. Voltei para dentro de casa
um tanto decepcionada, era muito feio aquele monstrengo, diferente dos nossos
elegantes ônibus “cara chata”. Minha tia continuava a embalar os doces, encomenda para a festa de casamento
da noiva sortuda, que se unia a um endinheirado. Uma nova rica que, cheia de si
e de exigências descabidas, em plena rua haveria de reclamar do bolo de
aniversário da filha, que estava menos bonito que o da filha da amiga, ricaça
tradicional, ela suspeitando de preconceito. A confeiteira tentava explicar que
aquela era sua melhor receita de bolo, confeitado com o esmero de sempre. Mas,
para a deslumbrada, bonito mesmo era seguir regras sociais toscas, por exemplo,
muito consumir, desperdiçar, em suma, reclamar de tudo.
Na
estante da tia Ilza, como de qualquer moça daquela época, não podia faltar os romances
de M. Delly, pseudônimo de um casal e irmãos. Também abrigava títulos do
escritor cearense José de Alencar, e de outros romancistas nacionais e
estrangeiros. Meu tio em seu peculiar jeito de brincar avisava para a sobrinha:
“Escrava... ou Rainha? Nem pensar,
ouviu mocinha? Nem O Tronco
do Ipê”. Para ele, os casamentos inadequados aconteciam devido à certas leituras.
Dizia mais: “A idade justa para a moça
casar é 33 anos, idade de Cristo!” Certamente porque foi nessa idade que
Jesus aceitou a crucifixão... Ao contrário da estante de tia Ilza, a pequena
biblioteca de tio Juvenal continha livros de peso literário, como Crime e
Castigo de Dostoievski, e
outras obras do escritor de fé ortodoxa. E mais Tolstoi, Nietzsche, Platão, Pascal,
autores que aguçavam minha curiosidade, tão difíceis de entender. Também
tinha os livros de autoajuda dos dois papas no assunto: Napoleão Hill e
Dalle Carnegie, fora do meu interesse. Mas do nosso grande Machado de Assis
nada, falha imperdoável nesse pequeno acervo, do qual restou a Ética de Espinosa, herança familiar que
guardo na estante, minha e de meu marido, bem mais cheia de livros. A vitrola
meu tio trouxe de uma viagem ao Rio, com discos de Caruso, que deslumbrava o
mundo com seu vozeirão, e se dizia ser capaz de quebra cristais. A canção La
Mer eu acompanhava num francês arrevesado.
Certa noite tia Moema fez uma
pergunta que deu início a um longo papa entre as irmãs :
– Ilza, lembra da prima Berta?
– Era boa professora, e ainda cuidava da irmã aluada e seus gatos,
carregando por toda a vida um amor bandido, mas ela lembrava do noivo como se
fosse um herói, desses que morreram na guerra, mas sumira no mundo, dias antes
do casamento. Ela sempre a lastimar: Coitado do Alfredinho!
Lembraram ainda tia Apolônia, com as pernas mais finas que eu já vira,
em cujas feições não mais se percebia rastro algum de beleza. Apelidada de
Pulu, também saudosa do noivo, piloto de avião, que se espatifou sob seu
comando, meio de transporte inusitado na época, invenção recente de Santos
Dumont.
– O noivo de Apolônia quis se exibir no ar para a noiva, remorso que ela
levou vida afora, como se tivesse matado o desafortunado homem.
Rebatida tia Ilza:
– Sim, mas guardou esse amor como o melhor de si. Sem instrução adequada
ao exercício de uma profissão, e sem marido que a sustentasse, mourejou até
idade avançada, por último, numa padaria amassando pão. E ainda dizem que as
mulheres são frágeis, mas, pelo que sei de muitas das nossas companheiras de
sexo, posso afirmar o contrário. Todos sabem que o destino pode ser amargo para
certos amores, que não se concretizam, vítimas da fatalidade e de equívocos. O
“para sempre”, ou “até que a morte os separe” deixa de acontecer, como prova da
transitoriedade de tudo que existe. E o amor como um bem inatingível. O amor, o
prazer, como um enigma para não ser de todo revelado por essas mulheres
intocáveis e amoráveis, que foram educadas na rigidez da religião do amor sublime,
eterno. Tiveram o rompimento súbito de um sentimento, desde então por elas
sublimado, o que teria acontecido, quem sabe, para que não sentisse o lento e
doloroso fim de sua paixão. Uma delas levada à consciência da morte, reverso da
medalha, tão complexa e trágica é a vida.
Tias e madrinhas que eu convivi ficaram sem maridos por força do
destino, ou coisa que o valha. “Homem é que não falta”, dizia Sulica nossa
empregada, com uma creche particular, crianças de pais diferentes. Ninguém
podia ignorar a subida aos céus do amor, ou descida aos infernos da paixão, do
desejo. Nem uma coisa nem outra para a vítima de um inveterado, que mexia com
as babás dos filhos, uma delas quase criança, levada por ele ao prostíbulo.
Genoveva, nome de uma santa de grande coragem, que conseguiu com heroísmo
afastar a horda dos ferozes e supersticiosos hunos, enfrentando inclusive o
pânico dos homens. Ela conclamava suas companheiras para a resistência, na
entrada do batistério de São João-de-Rond: “Podem os homens fugir; nós mulheres
pediremos a Deus, e ele acabará ouvindo as nossas súplicas.” Sua homônima não
conseguiu se livrar do pior de todos os bárbaros que é o estuprador.
Geração de machistas, que mesmo depois da lutas feministas, diante de
uma menina, ainda achavam estar em frente da insipiente concupiscência, pelo
jeito sensual, que inconscientemente aparentam. Virgílio, na decadente Roma,
fazia versos sobre as meninas que desabrochavam - um poeta que gostava mesmo
era dos rapazes. Petrarca platonicamente apaixonado pela quase criança
Laurinha. Inconsequentes, quase selvagens, eles deviam estar sujeitos às leis
da infância e da juventude, que só foram implantadas na terceira década do
século XX na Inglaterra, e bem mais tarde adotadas no nosso país do carnaval e
da permissividade. Um célebre ninfomaníaco foi parar nos tribunais, Lewis
Carroll, isso por conta da denúncia de uma mãe que descobriu cartas libidinosas
endereçadas a sua filha, vindas do escritor, que teria se inspirado na menina
para escrever o célebre livro Alice No País das Maravilhas.
No humanismo barroco do século XVII, a atividade moral era agir por
dever, instruir através da arte, foi quando Vermeer pintou seus quadros para
que as mulheres se mirassem neles, refletissem sobre seus reais interesses no mundo
que se modernizava. De consciência calvinista e jesuítica o artista pintou
figuras femininas mostrando o quão prazerosos eram os desejos, mas quão demoníacos
também podiam ser. Vermeer, tal qual Fausto, anuncia os novos tempos e o
interesse financeiro neles contido, faz propaganda do vestuário para acirrar a
vaidade feminina, também dos livros ao
lado delas, como vaidade intelectual. “Vaidade, vaidade, tudo é vaidade!”
Tia Ilza findava o papo erguendo outra vez as sobrancelhas para mim.
– Já sei, tenho de acordar cedo para o colégio.
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