sábado, 18 de outubro de 2025

 


                                                              MINHA TIA III


SI LUÍS - MA 


               

                     

Será que minha tia ficava feliz quando me via? Convivi com essa tia por anos, e outros tantos longe de suas vistas, como pôde isso? Ela sempre atenta aos parentes, perto ou distante, e colhia notícias minhas por terceiros, embora cada um que sabe de si, ou onde o sapato lhe aperta. Depois de algum tempo sem nos vermos, eu morando em outra cidade depois de casada, certo dia em visita a sua casa na Rua Grande, ela chamou-me para olhar um baú guardado no porão. Descemos, e quando ergueu a tampa daquela peça antiga e empoeirada era como se abrisse a caixa de Pandora. Não foi medo, mas senti um aperto no coração.

Naquele baú havia lembranças da Rua das Hortas que a tia recolheu quando os habitantes da casa foram embora, em esperançosa debandada, que a vida não para. Mas isso é outra história... E lá estavam retratos da família, alguns desenhos em nanquim do meu irmão, artista amador à época, o toca discos do meu tio com apenas dois discos de vinil, um do tenor Caruso e a canção La Mer, que por milagre não se quebraram. Revistas, que meu irmão colecionava, como o Tico-Tico da nossa infância, e quando ele ficou maior colecionava O Cruzeiro e Fatos e Fotos. E lá mais no fundo estavam as fotos que ele tirou da máquina fotográfica Laica do nosso tio, sobre o movimento político de 1951 em S. Luís, que ficou conhecida como Ilha Rebelde. E surpreendeu-me encontrar a pequena caixa de lata com lembranças escolares, inclusive as duas medalhas que ganhei pelo meu trabalho nas Missões.  Outras coisas mais guardadas naquele baú.

A tia deixou-me naquele o assombroso porão e subiu para entregar uma encomenda de doces. Depois de algum tempo vasculhando aquelas coisas envelhecidas pelo tempo, adormeci. E sonhei estar em uma caverna, de onde vi surgir espectros saindo do chão, jovens que choravam enquanto falavam que haviam sido abusadas no local pelo senhor que habitava a casa no passado. Gritavam que foram mortas e enterradas em sua pureza. De repente sou acordada pelo barulho do porão sendo aberto e alguém desce a escada. Era a prima que veio me buscar. E ao escutar meu sonho ela comentou que dias atrás um parente da família havia sonhado que havia uma riqueza ali enterrada, e já vinha de marreta em punho. Impedido pela falta de estrutura do prédio que podia desabar.

Dois sonhos que me fizeram concluir que é melhor deixar que o tempo enterrem nossos sonhos mortos. Eu e a prima deixamos o porão, e acabei por colocar uma pedra sobre o triste assunto das moças violentadas, e esqueci o acervo do baú. Quanto ao que teria acontecido às jovens chegadas do interior e ali teriam sido violentadas, hoje tenho remorso de não ter me informado melhor sobre esse caso. Remorso também por não ter escolhido como recordação algo daquele precioso baú, principalmente levado comigo a caixinha que me pertencia, e dela tenho saudade até hoje. Minha tia teria ficado decepcionada pela falta de interesse da sobrinha, afinal eram recordações de um tempo que também me pertencia. Questiono-me o porquê da minha atitude, e lembro o dito popular ao dizer que “do perdido se tira o sentido”, o que não é bem assim.


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