ARTE - VERMEER
"ATELIÊ DO PINTOR" - O LIVRO E A TROMBETA
No quadro Ateliê do Pintor a figura feminina, que representa Clio, musa da História, tem nas mãos uma trombeta. Estaria anunciando um novo destino para a história humana, que pede socorro da
história, batizada ou coroada pela natureza. A História representada por uma jovem
que posa para o artista, e está vestida com um luxuoso tecido azul-celeste, cuja intenção seria dar maior distinção àquela moça, uma simples
camponesa com sua corneta alpina. O toque da trombeta em alerta contra a heroica e herética modernidade, ou tocada a seu
favor? O sopro da civilização, que também trás a baila o trabalho feminino, a
exemplo da “sopradora” de vidro em outro quadro do pintor? Ou o toque da trombeta é de silêncio? Que se escute o que anuncia o
presente, onde se vive um renascimento das
ideias, a par dos avanços da técnica e da ciência. E não esquecer o som
estridente do instrumento de sopro que pode ferir os ouvidos, ensurdecer, sendo
preciso compatibilizar as diferenças, não exacerbar o que incita a modernidade.
Glória e
também tragédia das civilizações no passado de guerras, que na presente civilização
europeia sai esfacelada das guerras religiosas para anunciar um novo tempo. No
que tange ao político, a trombeta teria o sentido de toque de recolher, e se referir
ao Sacro-Império Romano-Germânico. Luzes que se apagam, como as luzes do
candelabro no mesmo quadro, com as três águias dos Habsburgos. O pintor sentado
à frente da cartografia das ricas províncias sob o governo da Casa de Orange, e
de costas para quem o observa em seu trabalho de propaganda barroca da
reformada República holandesa. E o pintor vai mais além, mas esconde o rosto,
uma brincadeira, e se possa imaginar, por sua vestimenta, o artista espirituoso
e jovial, típico dos antigos camponês burgúndio, os primeiros povos católicos, característica
herdada pelo povo holandês, seu espírito aberto e desinibido.
Após a
invasão da Burgúndia por Átila, rei dos hunos, surge lendas sobre fatos e
feitos heroicos do mundo pagão e cristão ao mesmo tempo, quando os monges
eremitas eram apelidados de marmotas, erguendo
tendas entre árvores ao longo do Reno, como os pequenos seres habitantes
da floresta, e fundaram mosteiros, onde se cultivava o vinho, tornados ricos e famosos, enquanto a
civilização se consolidava. Foi no século VI que o irlandês rude São Columbano,
independente de Roma, realizou a missão de converter os povos, em missões
espontâneas pregando ao longo do Reno, e funda o primeiro mosteiro de Luxeil.
Independente e vitorioso São Columbano seria precursor de Lutero. No século
VIII outro missionário, o inglês São Bonifácio, que comungava sua fé com
Roma, investiu nas missões na região da
Frísia de férreo paganismo, que acabou vítima
fatal dos frísios, convertidos, mas que retornaram a suas antigas crenças e
costumes. Glória e também tragédia do passado, enquanto no presente a
civilização europeia sai esfacelada das guerras religiosas para anunciar um
novo tempo.
No último canto do Paraíso de Dante, a metáfora para o universo é um livro, justamente o Livro Sagrado, chave para o conhecimento da história do espírito, também a história das primeiras experiências humanas. O momento era especial, em que o Ocidente parece sair da barbárie para a vida civilizada, ou passa do macrocosmo da guerra, do poder absoluto e hegemônico, para o microcosmo da família, da individualidade e civilidade. O livro impresso como arma para enfrentar o perigo de retorno à barbárie, ao absolutismo e obscurantismo. Daí para frente que se ignore o que não estiver no livro impresso, e até mesmo se desdenhe dos que não estudam as ciências, nem aprendem nas universidades. No quadro, o volumoso livro que Clio tem na mão tem a cor do sol, do saber, mas que ainda da ideia que suas páginas estejam com as folhas em branco. Uma nova história o mundo vai contar daí para frente, tal qual a mente de um recém-nascido – uma folha em branco para John Locke(1632-1704)onde novas experiências e sensações vão ser registradas.
O luminoso livro nas mãos da musa da História, que pode ser ainda uma coletânea dos lendários, dos contos de fadas, águas doces e tranquilas na aparência, a fazer parte do jogo, vindas do paganismo, de tradições não ortodoxas, que faz contraponto com o volume de aspecto envelhecido, que está semi-aberto sobre a mesa, e pode conter, por exemplo, as obras clássicas, de Virgílio, Tito Lívio e Cícero, entre outros autores dos primeiros séculos. Caudalosa fonte, como a que jorra da mesa sobre a qual além do livro antigo, há uma escultura de Aquiles. Na fonte grega do Estige a mãe de Aquiles mergulhou o filho, a fim de torná-lo invulnerável. O antigo culto à natureza coexistindo com outras formas antropomórficas de religiosidade.
Os olhos semi-serrados de Clio é de humildade, ou desdém? A história, ou o feminino, que, todavia, vai se beneficiar do saber cientifico e tecnológico, do conhecimento, ainda incipiente. A mulher até então apena dedicadas à caridade, e às causas humanitárias passa a contribuir para o progresso de modo efetivo, como membro atuante na sociedade moderna, que tem para a mulher um projeto liberal. Vermeer certamente por suas filhas torna-se mensageiro desse ideal, que está assentado no valor econômica, em colaboração com a ética protestante de que fala Max Weber. O trabalho propulsor do progresso, e os holandeses tenazes trabalhadores para salvar o seu solo das águas. A tenacidade também da fé protestante naquele país ainda afogado no paganismo, e tudo o mais que atrasa, principalmente, a vida da mulher.
Em 1648 foi impresso em Amsterdã o livro intitulado História Naturalis Brasiliae, contendo 429 desenhos, em grande parte retratando a fauna e a flora, bem como os nativos do nordeste do Brasil, obra do médico Willem Piso e do botânico Georg Maregreve. Para Francis Bacon o conhecimento viria da experimentação, tanto no sentido interior quanto exterior, o que marca claramente o fim do saber antigo e o início do moderno. E em livro, o fabuloso Novum Organum, trata o ser humano como ser biológico e cultural, filho da natureza e da cultura. O livro dourado de Clio conteria ainda os sermões e cartas do padre Antônio Vieira (1608-1697), lido e admirado em muitos países. O visionário autor jesuíta de História do Futuro, adepto da cabala judaica, da mística milenarista, e outras fontes, que esteve em visita à Holanda, e logo depois exilou-se no Maranhão, onde passou a defender os índios da exploração dos colonos, instruindo e educando tanto uns quanto outros. Vermeer, peculiaríssimo artista dos pinceis, como Vieira é da pena.
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