domingo, 27 de julho de 2025

 


                                                   ATELIER DO PINTOR

 



A palavra ateliê, segundo o dicionário, significa uma “reserva de material produtivo, dando ideia de desordem, sucata de fecunda inspiração”, tudo o que mostra o quadro Ateliê do Pintor, onde uma jovem modelo posa para ser pintada como a figura mitológica de Clio, cercada por objetos-símbolos, as antiguidades vistas ao lodo dos produtos modernos, o que constitui a matéria prima utilizada pelo artista, inclusive, para divulgação comercial. Não é sem motivo que o faustiano pintor está de costa, dando início à sua pintura pela coroa da musa da história, feita de folhas, representando a natureza, e os poderes medicinais dos produtos naturais, o que a botânica começa a desvendar os segredos. A modernidade, que começa no humanismo naturalista. O naturalismo renascentista, por onde se inicia a grande virada para os tempos modernos. E muito se fala na época sobre a alquimia, o que pintor faz com os materiais extraídos da natureza para produzir as especiais cores com que pinta seus quadros. O Ocidente parece querer fazer pacto com os demônios, e sendo assim as coisas passam a ter valor monetário. O sentido é que tudo que se faz, ou produz, é para ser negociado, e Vermeer não foge à regra.

 A apropriação que o pintor faz da história e da natureza, acrescida do sal filosofal que seria o conhecimento, também o trabalho. Uma alquimia que Vermeer-Mefistófetes, coloca no caldeirão do seu ateliê, onde tudo se mistura. Por força da dúvida cartesiana o quadro fala das coisas do passado, que serve de guia na viagem para um novo tempo de liberdade e progresso, até certo ponto na contramão da história. O mundo prestes a ser dominado pelo poder econômico, os fins a justificarem os meios, o que pode ser fatal. A dúvida que paira sobre essa nova idade de ouro para o homem, inclusive, para a arte, a famosa arte holandesa do século XVII. É patente a apreensão do pintor ao tentar fugir do artificial, quando então apela para a beleza natural das cores, que ele mesmo fabrica. A cor dourada do volume que Clio carrega como um filho, um volume impresso, tendo ainda uma trombeta na outra mão, tudo o que a modernidade representa a liberdade para a mulher. O valor que o livro tem, onde se adquire o ouro alquímico do conhecimento, que se difunde em maior escala através do livro impresso. Um suntuoso tecido ressalta a beleza e também a riquezada musa, o que expressa os costumes e gostos que começam a se sofisticar, ao mesmo tempo em que enche os bolsos de mercadores e comerciantes, com a produção intensa para o consumo e exportação. Assim como o luxo do conhecimento, que enriquece os bolsos e as cabeças renascentistas, desde o conhecimento bíblico, filosófico, mitológico e lendário, até chegar à ciência, tudo como presente dos deuses, ou de Deus, seguindo os ditames da história, ou mesmo fora dela.

As artes e ofícios que levam as pessoas a se integrarem a algum ateliê, ou guilda, onde fazem e vendem sua arte, e expõem seus objetos. Dentro dessas estruturas corporativas reúnem-se recursos, colaborações, adquire-se conhecimento, onde também são tratados os dilemas de natureza transcendental. As habilidades transmitidas dos mestres para os aprendizes, estimulados pela competição entre estilos, técnicas, o que beneficia a produção e respectivo desenvolvimento técnico, propiciador do sucesso social para todos os envolvidos. No século XVII é intensa a produção de bens, e os trabalhos realizados em conjunto nos ateliês, ou nas oficinas, nunca são deixados a cargo de uma única pessoa, mesmo dos mestres, segundo Richard Sennett no seu livro “O Artífice”. Cada projeto, o custo da obra - do começo ao fim – a cargo das corporações que tinham convicções também fora da área material. O perigo que corre a imaginação, cuja tendência é se desviar da realidade para percorrer caminhos obscuros, como aconteceu na nacionalista Alemanha de Hitler, segundo Peter Gay para quem “a realidade histórica não tinha como concorrer com a fantasia teutônica”. Mas a modernidade encena uma nova história, real, globalizada, onde a  participação feminina é fundamental, quanto à sua emancipação, num novo contexto, calcado no ideal burguês e liberal, de trabalho e progresso.

Estava sendo dado o grande salto rumo ao futuro, conquanto a humanidade sofresse, como ainda hoje, com obscuridades. Drama, não uma tragédia grega, o que o pintor encena, em consenso com instrutores e patrocinadores na recém-fundada República holandesa. O mundo em expansão territorial, sendo olhado no sentido de transformá-lo, principalmente através das ideias, dos costumes, outra alquimia, sob os auspícios da produção crescente, tanto local quanto a que chega do outro lado do mundo. Sedas e especiarias vêm do Oriente, produtos para comercializados, assim como a produção nacional, com os quais as pessoas enriquecem individualmente, assim as cidades e as nações. Resta conviver com essa nova realidade, acatar o avanço tecnológico, sem ferir a primitiva natureza, de onde se extrai todo essa riqueza, aliada do homem, não uma inimiga a ser explorada à exaustão.  A ética reformista e o ideal progressista da burguesia passam a ditar regras. O trabalho como mola propulsora do processo.

 

 

    

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