ATELIER DO PINTOR
A palavra
ateliê, segundo o dicionário, significa uma “reserva de material produtivo,
dando ideia de desordem, sucata de fecunda inspiração”, tudo o que mostra o
quadro Ateliê do Pintor, onde uma
jovem modelo posa para ser pintada como a figura mitológica de Clio, cercada
por objetos-símbolos, as antiguidades vistas ao lodo dos produtos modernos, o
que constitui a matéria prima utilizada pelo artista, inclusive, para
divulgação comercial. Não é sem motivo que o faustiano pintor está de costa,
dando início à sua pintura pela coroa da musa da história, feita de folhas,
representando a natureza, e os poderes medicinais dos produtos naturais, o que
a botânica começa a desvendar os segredos. A modernidade, que começa no
humanismo naturalista. O naturalismo renascentista, por onde se inicia a grande
virada para os tempos modernos. E muito se fala na época sobre a alquimia, o que
pintor faz com os materiais extraídos da natureza para produzir as especiais cores
com que pinta seus quadros. O Ocidente parece querer fazer pacto com os
demônios, e sendo assim as coisas passam a ter valor monetário. O sentido é que
tudo que se faz, ou produz, é para ser negociado, e Vermeer não foge à regra.
A apropriação que o pintor faz da história e da natureza, acrescida do sal filosofal que seria o conhecimento, também o trabalho. Uma alquimia que Vermeer-Mefistófetes, coloca no caldeirão do seu ateliê, onde tudo se mistura. Por força da dúvida cartesiana o quadro fala das coisas do passado, que serve de guia na viagem para um novo tempo de liberdade e progresso, até certo ponto na contramão da história. O mundo prestes a ser dominado pelo poder econômico, os fins a justificarem os meios, o que pode ser fatal. A dúvida que paira sobre essa nova idade de ouro para o homem, inclusive, para a arte, a famosa arte holandesa do século XVII. É patente a apreensão do pintor ao tentar fugir do artificial, quando então apela para a beleza natural das cores, que ele mesmo fabrica. A cor dourada do volume que Clio carrega como um filho, um volume impresso, tendo ainda uma trombeta na outra mão, tudo o que a modernidade representa a liberdade para a mulher. O valor que o livro tem, onde se adquire o ouro alquímico do conhecimento, que se difunde em maior escala através do livro impresso. Um suntuoso tecido ressalta a beleza e também a riquezada musa, o que expressa os costumes e gostos que começam a se sofisticar, ao mesmo tempo em que enche os bolsos de mercadores e comerciantes, com a produção intensa para o consumo e exportação. Assim como o luxo do conhecimento, que enriquece os bolsos e as cabeças renascentistas, desde o conhecimento bíblico, filosófico, mitológico e lendário, até chegar à ciência, tudo como presente dos deuses, ou de Deus, seguindo os ditames da história, ou mesmo fora dela.
As artes
e ofícios que levam as pessoas a se integrarem a algum ateliê, ou guilda, onde
fazem e vendem sua arte, e expõem seus objetos. Dentro dessas estruturas
corporativas reúnem-se recursos, colaborações, adquire-se conhecimento, onde
também são tratados os dilemas de natureza transcendental. As habilidades
transmitidas dos mestres para os aprendizes, estimulados pela competição entre
estilos, técnicas, o que beneficia a produção e respectivo desenvolvimento
técnico, propiciador do sucesso social para todos os envolvidos. No século XVII
é intensa a produção de bens, e os trabalhos realizados em conjunto nos ateliês,
ou nas oficinas, nunca são deixados a cargo de uma única pessoa, mesmo dos
mestres, segundo Richard Sennett no seu livro “O Artífice”. Cada projeto, o custo
da obra - do começo ao fim – a cargo das corporações que tinham convicções
também fora da área material. O perigo que corre a imaginação, cuja tendência é
se desviar da realidade para percorrer caminhos obscuros, como aconteceu na
nacionalista Alemanha de Hitler, segundo Peter Gay para quem “a realidade
histórica não tinha como concorrer com a fantasia teutônica”. Mas a modernidade
encena uma nova história, real, globalizada, onde a participação feminina é fundamental, quanto à
sua emancipação, num novo contexto, calcado no ideal burguês e liberal, de
trabalho e progresso.
Estava
sendo dado o grande salto rumo ao futuro, conquanto a humanidade sofresse, como
ainda hoje, com obscuridades. Drama, não uma tragédia grega, o que o pintor
encena, em consenso com instrutores e patrocinadores na recém-fundada República
holandesa. O mundo em expansão territorial, sendo olhado no sentido de
transformá-lo, principalmente através das ideias, dos costumes, outra alquimia,
sob os auspícios da produção crescente, tanto local quanto a que chega do outro
lado do mundo. Sedas e especiarias vêm do Oriente, produtos para
comercializados, assim como a produção nacional, com os quais as pessoas
enriquecem individualmente, assim as cidades e as nações. Resta conviver com
essa nova realidade, acatar o avanço tecnológico, sem ferir a primitiva
natureza, de onde se extrai todo essa riqueza, aliada do homem, não uma inimiga
a ser explorada à exaustão. A ética
reformista e o ideal progressista da burguesia passam a ditar regras. O
trabalho como mola propulsora do processo.
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