terça-feira, 28 de setembro de 2021

 




 

                                  VERMEER E O CUPIDO


com e sem cupido


Jean de Vermeer faz parte da extraordinária pintura holandesa do século XVII, na idade ouro do país onde nasceu e viveu, precisamente em Delft. Seus quadros guardam segredos, que até hoje os peritos e pesquisadores anônimos buscam desvendar. E mistérios não faltam nas obra do mestre de Delft, também sobre sua pessoa. Com técnica avançada, algum tempo atrás foi descoberto  um quadro do mitológico Cupido, deus do amor, em “Mulher Lendo uma Carta à Janela”, do qual foi excluído. O pintor teria posteriormente optado por deixar a parede da sala em branco. Pintura dentro da pintura, uma meta pintura, por se tratar da reprodução de um quadro que fazia parte do acervo de Maria Thim, mãe da esposa do pintor. A mesma reprodução do Cupido pode ser vista no quadro Senhora de Pé ao Virginal,  onde uma elegante figura feminina posa para o retratista, enquanto dedilha o instrumento musical, tendo a suave feição voltada para o retratista e nós, os observadores do quadro. 

O tema do amor é uma constante em Vermeer, e no quadro da jovem musicista, é de supor que se trata de candidata ao casamento, uma noiva, o alto astral que ela transmite. Diferente da mulher no outro quadro citado, quando o tema parece ser do amor fati. Daí o cupido ter sido excluído da cena. A carta que a mulher lê diante da janela aberta à sua frente, esta com o papel amassado dando ideia de ser um folheto, e ter passado de mão em mão. A técnica da impressão recém-inventada, facilitadora da difusão de ideiasUma figura fantasmagórica aparece na vidraça, como a refletir a imaginação da leitora da carta, Bem vestida  e penteada ela tem ao seu lado esquerdo uma bacia de frutos passados. A figura na vidraça e os frutos se comunicam, para falar do ser frágil que seria essa mulher, em meio à realidade da vida, suas dores (e prazeres) do nascimento à morte. Os frutos já não servem mais para consumo, perderam valor, e essa mulher sofre (ou celebra) aquele momento, como pessoa e membro de uma sociedade em transformação. 

Há que considerar o dramático sentimento da impossibilidade de conciliação entre culturas, entre pobres e ricos, entre os sexos, e tudo o mais. Os homens em sua conquistas pelos mares que eles procuram desbravar, enquanto as mulheres empreendiam suas buscar em outras águas, não menos perigosas. As fogueira queimando bruxas, na realidade pessoas que lutaram com o conhecimento que tinham, antes da ciência, e muito realizaram para que a vida fosse menos cruel em casa e até mesmo fora do lar. Na progressista Holanda os mais afortunadas seguem os modismos da época, inclusive das superstições, que grassavam a sua volta, e são difundidas através de folheto impressos. Nesse caso, a mensagem que a mulher recebe diz respeito à sua liberdade, daí a janela aberta, mas ela precisa ter cuidado.

Por qual motivo o Cupido foi retirado da sena? A resposta estaria, pois, contida na mensagem da carta, que não seria de amor entre um homem e uma mulher, e o cupido some de cena, fica escondido debaixo da cal da parede. A mulher precisa ter cuidado, alerta  Vermeer em seus quadros, que têm a intenção de instruir, conforme requer a arte barroca. E aquele é um dramático momento de mudanças, início da idade moderna. que requer uma boa consciência. O pintor é protestante de nascimento, convertido à fé católica, religião professada por sua esposa, e suas pinturas são mensagens com intenção de atingir as profundezas da alma feminina. As mulheres consideradas esteio do lar, que se instruam, sigam os ditames da razão e não esqueçam os preceitos divinos contidos na fé religiosa.  


Senhora de pé ao virginal

domingo, 19 de setembro de 2021

 


NAZARÉ PORTUGUESA OU SÃO LUÍS FRANCESA?

                                                       

                                                            Murilo Moreira Veras

 







 

Espécie de segredo histórico, constitui hoje o mito de que a capital do Maranhão, São Luís, foi fundada pelo francês Daniel de La Touche, Senhor de La Ravardière. Mesmo depois da malograda investida em 1612 de  fundação no Maranhão da França Equinocial, o estranho mito persiste — São Luís  relicário brasileiro da civilização francesa.

Capital do Estado do Maranhão, São Luís completou 409 anos em 8.09.21. O mito é voz geral entre os ludovicences, seu fundamento confirma-o  a historiografia oficial, que do fato faz seu principal laudatório.

Ocorre que esse mito não é aceito por muitos historiadores, inclusive maranhenses, Mário Martins Meireles, Rubem Almeida e principalmente Maria de Lourdes Lauande Lacroix, que, em seu estudo assinala que os franceses ali aportaram para fundar uma colônia e divulgar o cristianismo e os portugueses, já instalados na região, dali os expulsaram. De sua vez, Meireles em seu livro “França Equinocial”, edições da Academia Maranhense de Letras, por iniciativa de Jomar Moraes, também estudioso do assunto, explica como se originou o mito. Com base em dados e informações colhidas de historiadores antigos e modernos como Rocha Pombo, o autor afirma que os expedicionários de Aires da Cunha, do triunvirato de donatários da Capitania do Maranhão formado por João de Barros e Fernando Alvares de Andrade, fundaram em 1.513 uma povoação primeiramente chamada Trindade e que teria durado três anos (pag. 39, citado livro). Rubem Almeida, também estudioso da Capitania do Maranhão, acrescenta Meireles no mesmo livro, teria identificado esse povoado a célula mater da cidade, hoje denominada de São Luís.

A cidade fundada pelos franceses em 1.612, como reza a história oficial, teria sido o clímax da chamada França Equinocial, que não passou de uma malograda tentativa de constituir, no Brasil, uma colônia francesa. O fato não significa retirar da cidade seu brilho de suposta descendência francesa em nossas plagas. Ao contrário, move-nos o objetivo de fazer transparecer a verdade dos fatos. Não constitui demérito algum revestir a cidade dos cenários de seus reais  fundadores, os portugueses.

A propósito, em certa viagem que fizemos, eu e minha esposa, ela maranhense de origem, a São Luís, quando nos dirigíamos de retorno ao aeroporto, o taxista que nos atendia, encetando conversa, disse-nos ser formado em história e explicou a verdadeira origem da cidade aquela humilde povoação chamada Nazaré. Não só confirmou como nos levou ao local, no bairro de Vinhais, onde nos mostrou as ruínas de uma igreja. Seria as únicas reminiscências da suposta localidade de onde surgiu, hoje, a cidade de São Luís.

Terra das famosas tradições folclóricas como a do Bum-Meu-Boi, abrigando recantos onde remanescem os cantos e encantos decantados por Gonçalves Dias e outros inspirados vates, ágora cultural mantida como berço de grandes vultos da literatura, a ponto de também no passado ter recebido outro galardão, o de ATENAS BRASILEIRA — o cenário que nos propusemos expor não diminui o mérito da cidade, a pequena Ilha dos Amores, enaltece-a de mais um laurel, ser ao mesmo tempo portuguesa e batizada francesa, para deleite de seu afável povo.   

 

 

Liv

 


quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Valdir Pasa - Amor Eterno e Fandangueiro (Dois Grandes Sucessos )

 



                             ANTIGOS PERSONAGENS

                                      DAS RUAS DE S. LUÍS

 

ANTIGA PRAÇA JOÃO LISBOA



 

                        Imagino se o mesmo acontecia em todo lugar, como em S. Luís, onde havia certos tipos, com características que beirava a insanidade, a perambularem pelas ruas da cidade, o povo a gritar seus apelidos, que ninguém sabe quem os colocou, nem quando, a invencionice era grande. Daquela época, não tem como esquecer  “Bota-Pra-Muê”, de longe  o “doido” mais famoso da ilha, assíduo frequentador da Praça João Lisboa, onde causava admiração por ler o jornal de cabeça para baixo, entre outras artimanhas com que chamava a atenção. Saía dali, e lá se ia ele praguejando contra os xingadores de plantão. 

                     Alguma explicação havia para os títulos pejorativos com que essas figuras da cidade eram tratadas.  Causavam estranhamento, lógico, sem que alguém tomasse a iniciativa de conversar com eles, saber de suas dores, se precisavam de alguma coisa, até ajuda médica e espiritual. EM era um casal de porte miúdo, ambos magrinhos,  o passo miúdo e bem devagar. Talvez fossem irmãos, sós no mundo, e simplesmente saíam de casa para passear.  Eles não revidavam à alcunha, o que era também de estranhar. 

                    Certamente pessoas frágeis, abandonadas à própria sorte, sem meios de se manterem, o que leva à fome e perda do juízo. "Casaca-Curta”, como o nome indica, portava uma casava pequena para seu porte, que pelas ruas cantava um hino de igreja: “Os anjos todos os anjos louvem a Deus para sempre Amem.” Até que parava no meio da cantoria, para revidar ao ritmo da música: “Casaca curta é o c* da mãe...” 

            Parece que “Rodó” e a “Mulher-do-Cachorro eram a mesma pessoa. Sempre muito enfeitada, às vezes carregava no colo seu animal de estimação, como se fosse um filho. Com sua possível morte, ela tentou emprego nas casas, e minha avó, que pouco saía de casa, sem conhecer a pessoa, na falta da secretária do lar naquele dia, deixa a estranha criatura entrar para lhe fazer o serviço de urgência. Nada foi feito, e na hora do almoço a contratada de emergência se recusa a comer dizendo zangada: “Não como comida de branco”. E ela tinha a pele clara. Pesarosa, minha mãe Carmen entende o problema da mulher, e aguarda alguém chegar para despedir amigavelmente a criatura.

                    “Pato” costumava dormir em um banco da Praça da Alegria. Certa noite meu tio-avô sai para procurar uma farmácia aberta e comprar remédio contra febre de um neto que morava com ele. Ao voltar encontra o hóspede noturno do logradouro perto de sua casa, já em preparativos para sua noite de sono debaixo do céu estrelado de uma noite amena de verão nordestino. Não queria parar, mas fica  surpreso quando Pato, ao vê-lo, declara alegremente: “Minha vida é bela, minha vida é uma rosa!” Resolveu sentar-se para apreciar um pouco o silêncio e a beleza daquela linda noite de céu estrelado. Ainda não existia criminosos tocando fogo nos moradores de rua. 

              Não faltavam aqueles que se diziam “Napoleão- Bonaparte. Uma fixação no audaz conquistador francês, por algum tempo vitorioso, conquanto de triste fim. Doidos de rua com mania de grandeza. Queriam ser grandes, conhecidos, aclamados, o que acaba por acontecer de forma por demais tosca.   Minha terra de tantos “doidos” de rua pode ter acontecido por seu passado de glórias, que acabou por receber seu próprio apelido: “A terra do já teve, hoje não tem.” Acabo por imaginar essas pessoas vindas de famílias abastadas, que empobreceram, e seus descendentes, cheios de brio, mas sem ânimo para lutar, coitados. Vítimas do abandono e da pobreza perdiam o juízo. 

 


quarta-feira, 8 de setembro de 2021

São Luís 409 anos - Música de Joellson Braga e Alisson Freitas

 


FICÇÃO - baseada em fatos reais

                            

                         QUARENTENA 2020 - UMA SAGA

                            PARTE III


Em S. Luís, Lydia é acometida de repentina indisposição, atendida no hospital próximo de sua casa. Uma experiência dramática, adoecer em plena quarentena, o que mais temia ao pensar na mãe idosa. Grande o número de infectados à procura de atendimento, os hospitais sem estrutura e poucos leitos de UTI. Um pandemônio na pandemia, o que as pessoas constatam ao procurar atendimento médico. Começam a construir hospitais de campanha nos estádios de futebol, estruturas faraônicas da Copa de 2014, quase ociosos, os bilhões de reais consumidos, grande parte do dinheiro desviado por políticos corruptos. O médico, desconfiado de alguma coisa, colhe material para biópsia. Apenas prevenção,   tranquilizada sua paciente. Como não é Covid-19, ela deve recorrer no momento a laboratório particular. Ainda bem que possui plano de saúde, pensa. A caminho, na praça da Alegria, avista alguém  que parece conhecer, quer ter certeza. Esconde-se atrás da árvore, firma o olhar para ver com   mais clareza: “Faz tanto tempo!...acho que seja...é ela mesma...Laurinha.” Elucubra que depois da saúde as finanças o que mais preocupava os habitantes do planeta, a pandemia a gerar expectativas negativas. E sobre a vizinha, amiga da rua das Hortas, conclui: “Realmente Laurinha é uma privilegiada, formada, foi trabalhar no conceituado escritório de advocacia do pai. Começou por baixo, como estagiária, para dar bom exemplo, o que importa a uma família católica praticante”.

Resolve não se dar a conhecer. Escapa de ser vista, segue adiante.

 

Dizem que as coisas ruins costumam acontecer uma atrás da outra, Lydia com uma preocupação adicional, a suspeita de estar com câncer. Lembra da mãe a lhe falar: “Vais ficar doente, não paras nem para comer direito. Sempre em cima do carro, para lá e para cá. Uma vida agoniada, que fez muita gente que eu conheço entrar em crise nervosa, ter depressão. Verdade, há muito que deixara de ir ao médico e também ao analista por falta de tempo. Fazia análise desde o término do seu último relacionamento. Entrego o material para exame e a atendente avisa que o resultado do do exame só ficaria pronto dali a quinze dias, urgência só  para os casos mais graves, e do Covid-19. Sai e sem pressa de chegar em casa, resolve fazer um caminho mais longo. As ruas do Centro desertas, naquele dia de lockdown, decisão do governo estadual, para evitar aglomeração nas ruas, o povo sem querer obedecer à quarentena. Só na marra obedecem, pensa. Policiais a postos em cada esquina. A ordem é transitar apenas quando for preciso, e dizer o que faz na rua.

Lydia fica parada na esquina da rua Grande em frente ao antigo cinema Éden, uma beleza de prédio. Lança o olhar, acima e abaixo da artéria mais importante da cidade, gosto vê-la reformada e livre de pessoas aglomeradas no local, com os camelôs impedindo a passagem. Sorri  ao lembrar do vídeo feito por um   maranhense radicado em terras lusitanas, que fez uma pegadinha direcionada aos internautas seus conterrâneos, e da forma como foi gravada a rua das Carmelitas na cidade do Porto, os dois logradouros antigos     eram facilmente confundidos. A capital maranhense, fundada por franceses, mas colonizada por portugueses, era em muitos pontos da cidade parecida com a antiga capital portuguesa. Escuta gritos, vindo não sabe de onde:

 

—Ladrão! Ladrão!

 

Três rapazes surgem do nada, perseguidos por policiais. Tiros reboam no silêncio daquela tarde deserta. Os meliantes aproveitando para entrar em ação. Lydia corre em direção à rua mais próxima. Ainda na esquina olha numa residência lá adiante e fica assusta“...Parece que aquela é ... É ela mesma na janela...dona Cotinha!” Estranha ver uma velha amiga de sua mãe, tão jovem. Apressa o passo e está na rua de sua casa. Chega.

“Que coisa... mudou tudo no jardim... os canteiros sem as rosas...


                       Entra assim mesmo. A sala totalmente diferente, na penumbra. Cadê a mãe, que sempre está a postos. E sabia que a filha tinha ido ao laboratório. Senta numa cadeira, até então desconhecida. Fica assim alguns segundos, quase em pânico. Não demora aparecer a dona da casa, com seu melhor sorriso. Lydia dá por si. Entrara por engano na casa de dona Mercedes, casada com seu Haroldo da padaria. Os dois bangalôs    geminados. “A que ponto eu cheguei...” Pede desculpa pela invasão do domicílio. Sai apressada.

 

A vizinha ficou sem entender nada.

 

Ao entrar    finalmente em casa, Lydia narra para a mãe o ocorrido. O   susto com a polícia atirando para o alto, atrás dos ladrões, a entrada por engano na casa vizinha. “E o mais intrigante”- fala para a mãe - “foi ver sua velha amiga remoçada, na janela". A resposta vem com um sorriso compassivo:

Cotinha de dona Cotinha morreu muito tempo, filha. Tu viste foi a neta da minha amiga,  que se foi tão cedo! Estás estressada, precisas parar com as preocupações, tudo vai passar. Vamos para a cozinha, Miriam acaba de coar o café, e tem beiju. Acabo de ler Olavo Bilac que diz: “É preciso ter coragem”. Vou declamar para ti um trecho de um poema que decorei:

 

Valeu a pena? Tudo vale a pena 

Se a alma não é pequena.


Quem quer passar além do Bojador Tem que 


passar além da dor.

 

 

O medo que Lydia tinha da morte é  muito grande, podia  ter raízes profundas. Sempre com a impressão de que algo ruim está prestes a acontecer.            O pai, suave criatura, mas tão exigente, ela vira ainda moço   baixar à sepultura. Desde então, a filha em seu paradoxal amor pela vida, e ao mesmo tempo sentia a morte iminente. A morte é uma ida sem volta, a única coisa que se pode dizer para sempre”, repetia sem parar sua tia Olga, após a perda do marido. Mas Lydia sabe que não era bem assim, permanecemos, sim, em nossa descendência. E a crença religiosa na vida eterna,    consoladora nesses dias de dor e mortes. Quanto mais mais elevados os pensamentos, menos maléfico o tempo de quarentena. E há o exemplar caso do médico, já com sintomas do Covid-19, mas não quis parar, e continuou na missão de salvar vidas. Questionado, explicou de imediato: “Eles precisam de mim”. A luta a favor da vida, da esperança, do amor ao próximo. Contra o ódio, a desconfiança, o preconceito. Dias incríveis vividos, e por viver no futuro, e que sejam melhores, no que Lydia acredita. Quinze dias depois recebeu o resultado do exame, e como era previsto, não havia câncer algum, o que ela precisava era extrair um cisto no ovário. 

Meses depois, ao acordar,  Lydia vai surpreender-se com a notícia na internet: “As internações dos infectados faz uma semana que diminuem dia após dia, a curva começa a baixar. Sinal que a quarentena vai chegar ao fim. O incrível é sentir que perdera a vontade de sair de casa. Ocorre-lhe um pensamento: Que mundo vamos encontrar lá fora?”  Dirige-se para a mãe:

—Vou voltar de cabeça erguida.

                  

                 No domingo Lydia dá a Leonor seu testemunho:

                 —  O ano 2020 não vai sair da memória dos que viveram tempos tão aflitivos, o mundo paralisados por um vírus. Mas foi a oportunidade que o ser humano teve de refletir sobre sua fragilidade, repensar suas atitudes frente à vida. Tantas mortes a lastimar. A abundância desse mundo rico e maravilhoso, os bens materiais e também espirituais para    serem repartido com amor, justiça, caridade. 

E depois de um breve silêncio Lydia continua:

 

                  —     Lembra de Júlio, meu antigo namorado, também biólogo, fizemos doutorado juntos, e temos um trabalho em conjunto. Ele convidou-me para participar dos estudos sobre o novo coronavírus, que acontece em um importante centro de pesquisa particular em S. Paulo, estou de malas prontas. Quanto à livraria, que é a minha paixão, vou deixar aos cuidados da prima Almira, para ela tomar as providência necessárias.

Leonor escuta a irmã e lembra que havia interrompido a faculdade de Letras para casar, tornar-se esposa e mãe em tempo integral. Assídua leitora na quarentena já começava a digitar algumas impressões pessoais com intenção de divulgar no blog na internet, estava empolgada, cheia de inspiração. Passou a ter aulas de português, e lembra da avó que dizia orgulhosa: “A última flor do Lácio, culta e bela”. Palavras ditas na capital maranhense, que tinha a fama de falar o melhor português do Brasil. Aprova a volta da irmã à sua biologia. E quanto a ela, Leonor,  definitivamente ao lado de Mario, unidos no propósito de mudanças, que lhes chegaram à mente durante a pandemia. E com auxílio de Machado de Assis, dá um toque especial ao diálogo citando suas palavras:  Deu-se sangue e morte ao inimigo, e que a humanidade, redimida, alcance a sonhada paz e prosperidade para todos.

Nota: A covid19 ainda iria enveredar pelo ano de 2021 com mais e mais mortes. Até a descoberta da bendita vacina, vendo-se então luz no fim desse túnel.  


terça-feira, 7 de setembro de 2021

 




 


                                 QUARENTENA 2020 - UMA SAGA

                               parte II


Domingo pela manhã, religiosamente, Lidiane liga de S. Luís para a Leonor, residente em Brasília. Ao primeiro toque e lá está a irmã na linha para sua conversa dominical. Nas últimas semanas  o assunto é a quarentena  do novo corona vírus, uma pandemia, que avança célere, sem tempo para acabar: Os cientistas do mundo todo empenhados na busca por descobrir uma vacina que evite a disseminação da Covid19.

—  Bom dia, minha querida! Mesmo que seja custoso acreditar, o dia pode ser bom, tem que acreditar e tomar as devidas precauções para preservar a saúde. Aqui, além do medo de adoecer, estou preocupada com  meu empreendimento, que acabo de iniciar, e já se finda ao que parece. Há indícios de falência, sim, minha e de muitos empreendedores locais. Sem me deixar abater, estou fazendo descobertas importantes, o quanto nossa casa é um lugar ideal para se viver, o valor inestimável em estar só comigo mesma. Tenho minhas leituras, além do trabalho doméstico, que não me desagrada, pelo contrário, gosto de arrumar a casa  e cozinhar. Já tirei os livros de culinária da estante. E nem sabia que eu tinha tantos livros em casa, ainda por ler, e também um estoque de momentos agradáveis para lembrar. Sempre é um prazer gozar do convívio de nossa mãe, que esteve contigo há pouco, e trouxe notícias. Ela também  era  devoradora de livros, herdado do nosso pai intelectual, juntamente com a casa. E tem os livros que    recebo de autores iniciantes, alguns bons, que passei a vender em minha livraria. 

Em Brasília, Leonor está sentada no sofá, bem acomodada para a longa conversa com sua irmã mais nova, ainda solteira, sempre com um noivo, mas nunca decidida a casar. Tem amor  pela irmã, admira sua coragem para viver só e ser uma empreendedora. Fala da sua preocupação com o marido retido na Europa, sem poder retornar ao Brasil. Não quer entrar em pânico, mas que de vez em quando se  acometida  de de um pensar caótico, vulnerável, sem conseguir controlar a mente. Pensa também no filho residindo longe,  na Austrália. Diz para a irmã que tenta lembrar dos fatos agradáveis e adequados para vencer o medo. Silêncio entre as duas.


—???!!!

 

—Você está escutando?

 

—Pode falar, mana.

 

—Com medo de faltar produtos em casa comecei a fazer pedidos pela  internet para abastecer a dispensa da casa, as entregas não param. Já não sobra lugar para mais nada, um terço do local de armazenamento tomado por pacotes e mais pacotes de papel higiênico. Ontem fui conferir os produtos estocados, e o que vi não me deu segurança e, sim, tristeza. Quantas pessoas desempregadas, sem ter dinheiro para as compras da família . Sentei em frente à porta, chorei e chorei. O que fazer com aquilo tudo? Resolvi doar para quem precisa de verdade. liguei  para minha igreja vir buscar parte daquilo tudo.

Do outro lado da linha, Leonor aprova a iniciativa da doação, que servia, inclusive, para aliviar a consciência.  Fala sobre sobre sua situação:

-  Quase um mês de pandemia e o dinheiro acabando, Mário já tendo recorrido à embaixada brasileira em Portugal. No hotel os turistas convocados para se retirarem do local, e cadê avião para o retorno, uma loucura. 

Após a meia hora de consolo mútuo, despedem-se. Dona Clarice escuta a conversa feita a viva voz. Retribui o beijo que a filha manda de Brasília   para ela, e depois comenta: 

-Leonor detesta ser invasiva, talvez por   ser a mais velha, criada com mais rigor. 

Dito isso, pega de volta o livro que havia parado de ler, o    crime ainda longe de ser desvendado. Pensa nos dez livros que estão na fila, tendo tempo     de sobra para devorar todos eles, velhos conhecidos seus, herdados por  Lidiane, assim como a casa. E diz para si mesma: “Livro é que não falta por aqui, felizmente, e podem vir os encalhados da livraria... Ainda bem que há um mirante para abrigá-los"..

 Lidiane já está diante do computador, confere as postagens nas redes sociais, notícias e mais, notícias da pandemia. Revolta-se com o último fake New. Toma cuidado para não se deixar enganar, as mentiras não param, mas boas   informações. Bendiz a tecnologia, que possibilita a comunicação à distância. conselho de saúde para lavar tudo o que vem da rua, que pode estar contaminado. O pessoal nas redes sempre criativo, e lá está a postagem  que diz: “Meu sonho de consumo é uma máquina de lavar compras.” Provocar humor e emoção faz parte dessa comunicação em tempo de pandemia. Emocionante ver a Banda do Exército Brasileiro nas ruas de Fortaleza tocando o hino “Vencendo vem Jesus”. A capital do Ceará com um dos maiores índices de infectados, a responsabilidade  por conta do o turismo. Não tem como não ficar emocionada com uma futura mamãe a  sorrir confiante, mostrando a ultrassonografia do seu bebê. A solidariedade em alta, pessoas de boa vontade mobilizadas para arrecadar e distribuir produtos de primeira necessidade. O mundo não vai acabar, quem sabe vai até melhorar — pensa Lidiane. 

 

Em Brasília Leonor toma um comprimido para dormir, o que não costuma fazer. Rapidamente pega no sono. No dia seguinte acorda e consulta o relógio. Passavam das dez. Normalmente dormia apenas cinco horas, o suficiente no seu caso particular. Essas última oito horas de sono só com ajuda de remédio, o que não é nada bom, lastima. Fala para si mesma: “Serenidade”. E antes de colocar a máscara e pegar a bolsa para sair, dá uma espiada pela    janela. Observa o tempo, a chuva, raridade na cidade  acaba de ir embora. Está preparada para enfrentar a rua. Mascarada, entra no elevador vazio, se tivesse alguém tinha que recuar, conforme o protocolo. Ao passar pelo pessoal da portaria observa a troca de  olhares. Teriam questionado: O que vai fazer uma idosa na rua?”     

"Sobre o que mesmo estava pensando na noite anterior?”

 Antes de tomar remédio para dormir, Leonor havia recordado o seu casamento de trinta anos com Mário, se foi uma união feliz de verdade. Mário tão sólido. Sim era um bom pai e bom marido. sol está de rachar, são quatro meses de seca na Capital Federal. Faz exercícios nos aparelhos ao lado do Templo budista. Não dá para ir  até à igreja, pensa entristecida. Passa pelo restaurante que costuma frequentar, apenas com meia porta aberta para a venda de congelados. Faz compra para a semana. Chega ao prédio, pega a correspondência na portaria, a encomenda comprada através da internet ainda vai demorar, é ter paciência com o Correio, ainda mais agora. pensa.

É hora do almoço, descongela o picadinho no micro-ondas. Feliz solução, os  congelados. Enquanto almoça pensa em Augusto, único filho, que na Austrália deve estar tomando suas providências para sobreviver. Sente falta dos homens da casa. Nada para fazer até a hora da missa na televisão, às seis da tarde. A vontade é ficar desligada de qualquer pensamento negativo, não consegue, o cérebro bem desperto, pronto para entrar em atividade. Os olhos fechados, mas a mente alerta e tensa, como se esperasse acontecer algo inesperado,  i     nclusive de morte de alguém próximo.

Morte era o que não faltava, infelizmente, as vítimas contadas aos milhares. Lembra  a todo momento em Lidiane, com problemas financeiros: ”Situação de muitos comerciantes, de tantas pessoas que perderam os empregos.  Focada no problema econômico, pensa que é uma boa hora das pessoas pensarem nos desperdícios. A irmã está certa de doar o que lhe sobra. A poltrona geme ao levantar-se. Quer sair outra vez para fazer outra caminhada, sintoma de depressão. Volta a sentar-se. Sente dificuldade em interpretar o sonho da noite passada com o filho, que fazia um curso de especialização na área de relações internacionais. Ele ia ficar fora por ano e meio, e costumavam caminhar juntos, e lhe havia dito ao telefone:

Relaxa mãe, você está perfeitamente bem, mas é bom disciplinar os pensamentos, a saúde mental é o mais importante.

O filho imensamente compassivo, o que seria um sinal de fraqueza para o homem, o que não era o caso dele. Leonor tinha certeza da sua firmeza de caráter.  Incrível como o tempo passa rápido, ou lento, de acordo com cada situação. Talvez fosse melhor não sair mesmo de casa. pensa com um aperto no coração. Por fora era a mesma pessoa que iniciara o período de quarentena, mas ela sabia a mudança  incrível que começava a ocorrer com todos. No seu caso, outra mulher brotava, era aquele  o momento justo para a mudança. Barreiras derrubadas com a maré crescente do medo e solidão. Adormece sem comprimido. Sonha com o marido:

Mario, Mario! 

 No dia seguinte, ia entrar no elevador quando o telefone toca. Volta para atender o marido, que lhe  fala da esperança de obter um lugar no próximo voo. “Esperança” — não perdê-la jamais. Sai    de casa com os pensamentos que lhe ocorrera na noite anterior, momentos de humildade e recriminação. A alma está mais leve nesta manhã, tem impressão de ser recebida por aquelas borboletas, que voam revigoradas sob as árvores na área verde das Quadras. É a natureza que comemora a ausência humana no meio ambiente. "Uma pena a Escola Parque sem o burburinho das crianças".

Leonor percebe que a qualidade do ar está melhor, sim, após alguns dias da quarentena. Acompanha os comentários na TV, que há multiplicação dos animais marinhos  nos oceanos, e todos os animais terrestres revigorados. Os habitantes aquáticos nunca vistos nas águas turvas de Veneza, nadam felizes, uma agradável surpresa, pena que em circunstâncias tão trágicas.  Lembra do pássaro que por alguns segundos ficou acomodo no peitoril da janela do escritório, parecia observá-la no computador. Pensa se há uma compensação para essa tragédia humana. Seria o aumento da solidariedade. Aconteciam atos inesperados de altruísmo e coragem desse ser tão vulnerável ao egoísmo, ao medo e à ganância.

Outra vez em casa, acessa a internet. Acompanha os lives, artistas mundialmente famosos dão shows grátis para os aquartelados. Também inspirados anônimos, chamam a atenção pela criatividade, parecem dizer: “Eu existo, eu estou vivo, penso em vocês, nós todos, navegantes do mesmo barco, tentamos nos salvar desse ataque invisível”. O milagre da tecnologia. A surpresa de ver o tenor José Carreras na sacada de sua casa em Paris, brindando os vizinhos e os internautas, com seu admirável vozeirão. Curado do câncer, mal que não abate facilmente os que resistem, ela mesma é testemunha disso. A vida, nosso  bem  maior, que se refaz a cada ataque do mal.

Estava encantada com a presença do tenor no seu laptop, quando o marido aparece a sua frente. Leonor exulta ao vê-lo. Como previsto, ele foi colocado no último voo para      o Brasil. Mesmo sentado na última fila, perto do banheiro, um suplício para quem costuma  viajar na classe executiva. Mas dá graças a Deus por estar vivo e em casa. Depois de beijar a esposa, Mario pede um café, se possível, com pão de queijo quentinho. Fala da impressão que teve  ao encontrar Brasília deserta, como em Portugal, e os demais países da Europa, o mundo todo na mesma  situação. Todos envolvidos universalmente por esse específico mal. Mário fala para a esposa:

—O Covid-19 não vai eliminar a vida sobre a face da terra, o mais certo é que faça o ser humano refém dele para sempre.