segunda-feira, 30 de maio de 2022

 

FICÇÃO


                                 O SEGREDO DA CAIXA

 


 

 Maria morava em outra cidade, desde quando casara há mais de cinquenta anos. Acabava  de chegar para a festa de comemoração pelos cem anos da mãe. Sentada ao seu lado,  lhe fala:

—Ficou muito boa a reforma da casa, parabenizo a todos, em especial Mariana e Nazaré.

Nazaré entra na sala com uma caixa, reconhecida de imediato por Maria, que escuta a explicação da irmã:

—Antes de começarem os trabalhos dos pedreiros e demais profissionais, para essa reforma, Mariana e eu resolvemos fazer uma faxina na casa, tinha sacos escondida atrás de móveis, além de um quarto cheio de coisas acumuladas, roupas nos cabides e bolsas dependuradas em um canto que dava para abrir um brechó. Encontramos essa caixa, Maria, com teu nome escrito na tampa.

Maria lembrava bem daquela caixa, onde guardara algumas lembranças suas do tempo de colégio, da vida de solteira. Casara e foi morar em outra cidade por conta do trabalho do marido e a caixa ficou como que esquecida. Agora ela estava a sua frente pedindo para ser aberta. Mesmo ansiosa para rever tudo que guardara com tanto carinho, ia deixar para mais tarde, quando estivesse sozinha. Agradeceu o achado e falou que ia sair.

                 Enfrentar as ruas esburacadas de S. Luís e suas ladeiras era um feito heroico para uma pessoa de 84 anos. Mas nem pensava em sair de bengala, que só usou quando esteve em São Tiago de Campostela - fazia parte do charme do passeio. Via gente mais nova e já de bengala. Maria se sentia muito bem, totalmente recuperada do acidente doméstico quando quebrou um braço. Ficou satisfeita de não ter de tropeçar nos vendedores ambulantes, que deixaram a Rua Grande e foram montar as barracas nas ruas laterais. Uma hora depois estava de volta. Ainda tinha muito chão para visitar nos próximos dias.

Não era uma tarefa fácil caminhar por tempo muito longo, os ossos começavam a reclamar o esforço empenhado. Um calor “abrasador”,  sem as sombras das mangueiras e dos oitizeiros, como reclamava sua tia falecida. Merecia uma campanha pela volta das árvores, que sumiram da cidade, em grande quantidade no passado. Os caminhos conspurcados pelo descuido do ser humano, esquecido do que valia a pena cultivar e preservar. As pessoas deviam ser cobradas por destruírem o bem coletivo, em especial, a natureza.

Ao aproximar-se olha para a casa que a mãe praticamente reconstruíra, quando a comprou caindo aos pedaços. A cor da parede frontal em rosa, sua cor preferida, diferente do azul das residências que lembravam cemitério, como ela dizia. O pessoal de casa havia saído, só tinha a cozinheira, e assim que chegou ao quarto, lá estava a caixa memorável sobre a escrivaninha, pedindo para ser aberta. A tampa emperrada precisou algum esforço. Mas logo Maria  começou a manusear o material preservado no tempo, o que ela ia ter, sim, o maior prazer, e novamente se encantar.

Pela manhã o esforço fora físico. À noite Maria tinha certeza que ia soltar as emoções. A primeira lembrança a ter em mão outra vez foram as duas medalhas recebidas no colégio das freiras, que com o maior carinho as confeccionavam para premiar as alunas que se destacavam. Uma delas recebida pelas boas notas e a outra pelo trabalho nas Missões do colégio. E lá estavam os quatro cadernos com os problemas dados nas aulas da professora Amélia Nogueira  para o exame de admissão ao ginásio. Logo a seguir, pegou o discurso proferido pelo padre Ribamar Carvalho, paraninfo da conclusão do científico realizada com pompa e circunstância. Tinha um missal de capa de couro e também uma cópia mimeografada de um  hino em latim, o Deo Vero, que nós, alunas do Santa Teresa, cantavam no coro da igreja em dia de missa festiva. 

Uma por uma saltavam da caixa as lembranças a provocarem emoção em Maria. E no fundo da caixa as cartas que  Maria escrevera ao noivo, que fora assumir o trabalho em outro estado,  encadernadas como um livro e ele lhe ofertara no dia do casamento. Admirou-se, não imaginava que tivesse registrado tão bem uma parte importante da história de sua vida. Um tempo pavimentado de esperança, quando então sentiu-se livre de qualquer pensamentos negativos que  lhe ocorressem, afinal  os bons fluidos que há em ter uma mãe centenária. Chegaria lá? E qualquer que fosse a fração de tempo que lhe restasse, não iria desperdiçá-lo. Foi a conclusão de Maria ao abrir aquela caixa - a caixa de Maria, diferente da caixa de Pandora.

 

 

 

 

 


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