terça-feira, 25 de dezembro de 2018



CONTO  
(UM PRESENTE DE NATAL)


OU ISTO OU AQUILO




      Ela gostava de escrever, vasculhava as próprias entranhas, tentava  revolver as vísceras do mundo. Em primeiro lugar era uma mãe de família, apenas filhos homens, quando então quis ir ao encontro de uma profissional da atividade que dizem ser a mais antiga do mundo. O encontro difícil de acontecer, a pessoa procurada, chamada Lia, dificultava, farejando encrenca, polícia. Avisou pelo telefone que a casa dela era de família, os bordéis já em extinção, e foi firme ao declarar: Afinal, coitadinho dos homens, precisam de um local seguro.  Outros telefonemas de ambas as partes, até que dona Lia apareceu, discreta no vestir. Nas falas é que ia denunciar seu modus vivendi. 

           Certo que a vida não era mole, dizia Lia à escritora, encontro no meio da tarde,  que era uma pessoa de bem com a vida, além do mais, satisfeita por poder ajudar um irmão desempregado e ainda pagava o estudo de balé da irmã mais nova, de nove irmãos.  O que mais dizer da conversa que não deu tempo nem para sorver todo o guaraná que pediram, ao se despedirem.  Ao fim, a entrevistada esboçou a seguinte pérola de pensamento: Os homens, coitadinhos, precisam de um lugar seguro! O antigo mangue, ou os prostíbulos eram ruins!  Respondo sua pergunta, as moças, que procuram esse gênero de trabalho,  querem mais é ganhar dinheiro, muito dinheiro. E acrescentou: “isso é ruim”.

         Escândalo para a sociedade, coisa inútil, mas considerado serviço de utilidade pública essa antiga "profissão". A inocência, ou melhor, ingenuidade, de quem vê no sexo a panaceia dos deuses para os homens, e um meio de vida para as mulheres. Não descartada a hipótese de que hajam aquelas que gostam muito disso que fazem, nem pensam em viver de outra forma. Aquela ali pouco tinha a informar, que servisse de inspiração, e assim findou-se o encontro, até nunca mais.

         Um espanto, reconhecia a escritora, que pensou ter falhado na entrevista que fez, ou quis fazer. O resto do dia sentiu a vida, viu o mundo sem graça, e foi assim ainda no dia seguinte, até receber a visita de um amigo, que só queria falar das próximas eleições, o país aos frangalhos, a sociedade dividida. Foi para a cama intranquila, pensando se escrevia sobre isto ou aquilo.  


TODAS AS CRÔNICAS - CLARICE LISPECTOR



NOTA: Conto inspirado em Clarice Lispector no seu livro TODAS AS CRÔNICAS - recém-lançado pela editora Rocco.

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