quinta-feira, 7 de fevereiro de 2013


                  COISAS DA VIDA

                          conto


     A chuva parou de cair, forte naquela época do ano, o céu ainda com  nuvens escuras, Jandira tinha pressa de chegar à clínica distante duas quadras antes que caísse outro pé d’água. Levava um frasco bem acondicionado contendo material recolhido pelo médico para exame de biopse, após extração de um pólipo no útero. Já deixara os dois filhos no colégio. Para que táxi? Ia caminhar e poder melhor refletir. A mãe viera visitá-la, e era sempre uma alegria acompanhá-la nos passeios e visitas a parentes, os quais pouco via. Até que sentiu aquele mal-estar, depois de um longo passeio. Jandira residia há pouco tempo no Rio, sem ver dificuldade, apesar de cidade grande, cheia de histórias boas e ruins, que seduzia as pessoas, lugar de oportunidades, capital federal. Estava ali por força das circunstâncias, e podia proporcionar aos três filhos boas experiências nessa fase da infância, dentro de poucos anos estariam crescidos.
Jandira deixara um bom emprego para acompanhar o marido, e não via sacrifício nisso, mesmo com pouco tempo para pensar em si mesma, a prole já definida, um homem e duas mulheres. O tempo não parecia ter muita importância, a vida correndo para sua família, igual a qualquer outra. Sentia-se confortável na situação de dependência total do marido, o que algumas mulheres já começavam a contestar, queriam menos filhos e ter uma atividade fora da casa. Não que elas tivessem  uma vida de passividade, pois cuidavam do lar, onde a mulher podia realizar-se  na maternidade. Lógico que seria um céu se os maridos ajudassem mais com as crianças, se incentivassem a mulher no sentido do estudo e de uma profissão. Acontecia de Jandira viver em paz.
 O feriado do dia anterior, com exaustivos passeios, de repente aquela indisposição, quando foi atendida pelo médico em casa. Os carros alvoroçados na ida e vinda para o almoço. Estava até arrependida de não ter tomado uma condução, temia o novo aguaceiro que se formava no céu. Cismara com a recomendação do Dr. Arruda para que fizesse com urgência aquele exame. “Sinto falta do dr. Filogônio”, a mãe falou à saída do consultório do antigo médico da família, já falecido. Ela conhecia bem a nomenclatura médica, e arregalou os olhos quando o médico falou “biopse”, o que impressionou a filha, agora mais aflita por conta da mãe, até esqueceu que a doente era ela. Se estivesse mesmo com câncer? A cura uma  promessa distante, e Jandira agora estava apreensiva por ter deixado a mãe sentada frente à janela, a dizer que não ia mais lugar algum, o olhar perdido, num silêncio assustador, seu interior certamente em turbulência. Mais razão tinha sua filha. Acontece ter a avó de Jandira morrido da doença poucos anos antes, e todos ficamram apavorados com a suspeita de terem na genética aquela semente. E não adianta palavras de consolo, nada. A morte como que rondando por perto, parece até que abraça a pessoa. Maior que essa dor só a felicidade da cura. É como renascer para a vida, o que quase todos experimentam um dia.
“Só daqui a quinze dias” murmurava de volta para a casa. Agora era esperar pelo resultado. O triste passado não lhe saía da cabeça. Mais um motivo de apreensão. Estaria a tragédia se repetindo? O resultado do tal exame só sairia dali a quinze dias, foi o que o disseram no laboratório. Até lá teria, uma vez mais, que levantar o astral de casa, além do seu próprio. Principalmente tinha que convencer a desalentada senhora que nem ela nem a  filha iam morrer de câncer, o que realmente Jandira achava. A chuva foi-se, mas o dia continuava abafado. A cabeça a pesar-lhe. Parou para atravessar a rua. Só daqui a quinze dias, repetia para si mesma. O sinal de trânsito lá adiante, mas estava com pressa, atravessaria ali mesmo. Os carros numa corrida desenfreada, os condutores, audaciosos em suas máquinas, ultrapassavam uns aos outros. Cada um por si e Deus por todos.
Parou alguns minutos na calçada, e nada de poder alcançar o outro lado. Enquanto isso continuava pensando sobre a morte inevitável, e o medo que temos dela. O pavor que acompanhou a mãe pela vida afora, o que não era o seu caso, nunca pensou em morrer. Lembrou-se do psiquiatra falando na televisão, que “a morte é o processo de nossa vida e o fim dela; tentar vencê-la enseja os esforços mais criativos do ser humano”. Belas palavras. Enfrentar o mal é o que faria daí para frente, estava justamente numa cidade onde existiam os melhores recursos.
Antes de tudo vencer o medo. “É preciso ter coragem”, diz o poema de Olavo Bilac. O medo de morrer, quase patológico na mãe, tinha raízes profundas, da infância. Aquele pai bondoso, mas ao mesmo tempo um quase tirano com os filhos, como todos os pais eram na época. Vê-lo tão moço e ativo, deitado inerte no caixão foi desesperador. Paradoxal o amor que se ela sentia pela vida, e ao mesmo tempo conviver com o pavor da morte, como se estivesse preste a acontecer. A tia Nazária, antes de partir, disse, apertando a mão de Jandira: “Eu nunca quis sair de perto de vocês e sinto que tenho de deixá-los.” Missão espinhosa fazer alguém, num momento de desalento, acreditar num bom diagnóstico, ter confiança.
“Uma ida sem volta, a única coisa que se pode dizer que é para sempre”, repetia dezenas de vezes sua aflita tia Olga após a perda do marido. O pensamento de Jandira indo longe. Mas não é bem assim. Podemos dizer que permanecemos na memória das pessoas, na descendência. A vida tem de continuar. O resultado do exame seria negativo, tinha certeza. O trânsito parecia pior que nos outros dias. Voltou a chover, uma chuva chata, miúda. Daqui a quinze dias ia busca o resultado do exame. E atravessa a rua. Logo estava na entrada do prédio, o porteiro vendo a romântica novela Cabocla na pequena televisão em preto e branco, a comentar com alguém que ele mesmo não perdia um capítulo, por nada. Não a viu passar. A atenção grudada no amor dos protagonistas. O romantismo que pode servir de consolo para a dura realidade da vida, até mesmo para a morte. O amor como a razão do viver; não só entre duas pessoas, mas o amor em nível superior, maternal, filial, etc. Escuta ao longe a cantoria: “Cabocla teu olhar está me dizendo/ que você está me querendo/ que você gosta de mim”.
Jandira não estava com pressa, atravessa o cuidado jardim do prédio, como que observando tudo pela primeira vez,  tantas vezes ficara sentada naquele banco de ferro lavrado, enquanto as crianças brincavam. Coisas banais que de repente chamam sua atenção: a paisagem derramada de folhagens, a  decoração, mas faltando algo, as flores. Cadê a alegria? O elevador de serviço, logo naquele dia estava enguiçado, para onde se dirigiu fugindo dos olhares sempre indiferentes, e que agora podiam se tornar perscrutadores; temia que percebessem sua angústia.  Teve mesmo de pegar o social. Que pelo menos subisse vazio. Os moradores de bem com a vida, ela também, até àquele momento. Muito bom o imóvel na burguesa Tijuca, dois espaçosos quartos, uma linda cozinha, varandão, único alugado no prédio quase de luxo, o preço dentro do orçamento, o proprietário na assinatura do contrato de aluguel afirmando que fez questão de escolhê-los como primeiros habitantes.
Entrou antes do casal de namorados, absortos um com o outro, aos beijos e abraços; uma novidade esses arroubos de ternura em frente a estranhos. Namoro moderno. O pensamento dela agora voltado para os dois enamorados, que fossem sensatos, com tanta liberdade (da AIDS, nem se tinha notícia da existência, mas que iria grassar, logo, logo - no fim do século).  Não pareciam promíscuos, mas nunca se sabe. Os jovens hoje se acham espertos, mas como são tolos; no passado pareciam tolos, mas eram bem espertos. A mente de Jandira analisando tudo numa compulsão.
  Saiu apressada do elevador. Que estranho o hall de entrada! O que havia acontecido? Mudaram o piso, trocaram o forro da parede. Assim mesmo pegou a chave para enfiar na fechadura, que resistiu bravamente. Foi quando a porta se abriu, e junto com ela um sorriso de surpresa, mas acolhedor. Ainda mais intrigante as pessoas que estavam  sentadas na sala, os dois grandes sofás no centro de uma decoração vista de relance e que lhe pareceu flutuar. Da janela, parcialmente coberta pela cortina, saia um facho de luz. Uma cadeira de estilo medieval logo na entrada? O que fizeram? Preferia a decoração de antes. Sentindo um torpor acomodou-se entre duas senhoras. Todos muito atenciosos. Ou estavam embaraçados, como acontece quando se está diante de um intruso. Algo estava errado. Que pessoas inconvenientes!  Esperaria que se retirassem para que pudesse falar com a mãe sobre a demora de quinze dias na entrega do exame. Nem sua empregada aparecia para dizer algo.
Ia beber água e logo sair outra vez para pegar os filhos de volta no colégio. Deu por si! Entrara na residência errada, no apartamento abaixo do seu, no quarto andar. Apressou-se a pedir desculpas, alegando que estava com pressa saiu sem maiores explicações. O que teriam pensado dela nem valia a pena elucubrar, as preocupações que tinha já eram bastante.
Quinze dias depois Jandira foi buscar o resultado do exame. E, como era esperado, deu negativo; não havia câncer algum.   
     Conto premiado, no II Prêmio Literário da Livraria Asabeça -2003” 

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