quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013


SEMPRE MEMORIA II



Nossa juventude apaixonada, como todas, e podia ser por alguma causa nobre, por exemplo, o “Movimento das Missões”, a que se dedicavam as alunas do Colégio Santa Teresa no segundo semestre do ano letivo. Às vezes expostas a sermos abusadas coletando dinheiro, o caso de uma aluna que pediu para um contraparente furar um número na cartela e ele passou a mão na menina. Isso não abatia as jovens entusiastas que éramos. Os africanos não eram batizados, passavam necessidades? Ao lado das freiras íamos cuidar da salvação espiritual e de livrar da fome essas pessoas. O trabalho em favor dos povos da África, de onde muitos vieram como escravos para Brasil, sangue que impulsionou nosso progresso. Também nossa miscigenação, forte na população maranhense, que conta ainda com a contribuição do índio. Toda semana eu levava para o colégio alguma gostosura feita por Nazária para vender no recreio, e arrecadar dinheiro para enfrentar as “batalhas” travadas entre as meninas, ver quem dava mais para as obras de caridade.

Falava-se ainda a linguagem da guerra, e no fim do ano, lá estava eu com minhas medalhas, ganhas nas tais batalhas. Se dependesse de nós não haveria fome no mundo e preservada seria a fé. A paz retornara, e doravante poderíamos viver sempre assim. A miséria ainda não havia feito tantas vítimas, senão as da extinta escravidão e da guerra que findara. O mundo civilizado saía vitorioso da luta contra primitivas maldades, com nossa geração esperançosa de um futuro mais brilhante, que, todavia, passaria o  a sofrer outras guerras, outras escravidões. Os  interesses nem sempre justos, com o que se perderia para sempre a capacidade de viver em paz de verdade. Pessoas e nações envolvidas em eternos conflitos, o que se refletia na vida como um todo. A África ainda hoje grandemente afetada pela miséria, região de natureza ingrata que sofre o descalabro de ter chefes tribais como governantes. 

Exceto aos domingos, sempre no fim da tarde, após os deveres escolares - cumpridos à risca – eu ia com minha amiga Leila andar na sua linda bicicleta prateada, um luxo, que ela me deixava compartilhar. Dar voltas no fim da tarde em frente à recém-inaugurada Biblioteca Benedito Leite. Meu irmão precisava se desenvolver e ganhara a sua de varal, impedimento para minhas saias rodadas e anáguas. As calças compridas ainda veste só para homens, sem o jeans. A praça ficava repleta de jovens; os dois sexos em confraternização, uma modernidade. Os carros em menor número, e mesmo uma raridade. Experiência única equilibrar o corpo e comandar tão elegante mecânica. A tecnologia começava a deslumbrar o mundo, e me fazia feliz nos meus onze e doze anos, a desafiar a gravidade numa bicicleta, sem levar tombos.

Andar de bicicleta e de bonde era uma delícia, veículos dos meus primeiros passeios públicos. Também podia fazer passeios intelectuais, introspectivos, nos livros, guardados naquele imponente edifício de arquitetura neoclássica. Minha intenção era ler todos os livros. Teria tempo? Devia apressar-me. Mas o certo é ler durante a vida bons livros, de acordo com a idade, e se possível relê-los sempre, o que aprendi. A família sempre residindo em local nobre; durante décadas perto da Igreja, até a morte prematura dos  chefes, em duas gerações seguidas, quando então a morada-inteira em frente à encantadora Praça Odorico Mendes foi deixada para trás antes de eu nascer. A herdeira era uma tia-avó que, por questão financeira, alugava a casa, local  onde hoje funciona um colégio. Com as perdas a família passou a habitar uma meia-morada, a poucos passos do lar antigo. A mudança de endereço condizia com os novos tempos, e se devia tirar proveito do saber dos livros, que recebiam em São Luis especial abrigo. Do jardim de casa observara a formação dos alicerces para o prédio dedicado à lavra das letras, logo apelidado de “bolo-de-noiva”, devido a graciosidade do prédio, que se harmoniza com o belo casario imperial, revestidos de azulejos portugueses, eleito Monumento Universal de Arquitetura e Urbanismo.

Ter treze anos não é o mesmo que ter onze, doze, a vida quase uma miragem. Aos treze as aspirações começam a se manifestar, o amor chegando ao coração. Deusdete de olho em Leila desde o domingo no cinema. O amigo Vicente dedicando-se com afinco aos estudos, lendo em inglês e francês, o que me impressionava. Mas longe ainda os namoros de verdade.  Da rua vinha aquele cheiro de chão molhado das tardes de chuva, quando então eu ficava a cismar olhando a água cair das telhas. Lia e relia Louisa May Alcott, autora preferida da minha juventude, após o encantamento da infância com Monteiro Lobato. Da autora americana meu avô trouxe de Portugal os dois primorosos volumes de capa vermelha, para minha mãe  se habituar a ler, o que ela me disse ao passar-me o presente dos dois volumes: As Quatro Raparigas e Alguns Anos Depois. Atualmente conhecidos como Mulherzinhas. Quatro jovens em seus anseios: Jô, a menina intelectualmente  talentosa, quer ser um menino, certamente por conta do desprezo ao talento feminino na época; a doce Guida, desde cedo com o dom de ensinar, até se casar com um homem de caráter, por ela mesma escolhido para fazê-la esposa e mãe, ideal abraçado de coração; May, a criança voluntariosa, que se transforma em adorável mulher e casa com amigo de infância Lourenço, capaz de lhe satisfazer a ambição, menos  de sucesso artístico, por lhe faltar talento, o que ela tinha de sobra para brilhar em sociedade. No meio da narrativa a fatalidade da morte prematura de Beth, o anjo da família, quando então chega ao fim, silenciosamente, a inocência, representada por essa irmã, contraponto ao desejo de realização pessoal e liberdade das outras. Com Beth a intenção da autoria é trazer o sentimento de devoção e caridade presentes na jovem para o confronto com suas irmãs que seguem lépidas e fagueiras, desejosas de progredirem. Uma heroína cristã e católica (a decantada pobreza de espírito?). E quem mais admira Beth é a irmã Jô – o seu oposto – espírito inquieto, que recusa Lourenço, um par perfeito, não para ela,  que se casa mais tarde com o professor alemão Baher, filho do prático e resoluto país do protestantismo, ou do ideal racionalista.

Ainda da minha infância e da minha mãe, guardo a preciosa herança dos três livros da Condessa de Ségur: Os Desastres de Sofia, As Meninas Exemplares e As Férias. Que bom se eu fosse como Camila, Madalena, ou Margarida, crianças virtuosas, pensava com os meus botões. Metáforas das virtudes teologais: a fé, a esperança e a caridade? Já Sofia seria a desastrada mente humana, infantil, curiosa, filosófica e cheia de arte. Martirizava-me ser parecida com a menina  que é capaz de experimentar por a boneca de cera – presente do seu querido pai – para aquecer ao sol, e  que se derrete. Limites que a mente criativa deixa de  observar nas suas experiências. Trágica personagem, que procede como mitológico Pégaso, no seu desejo de alcançar o sol com asas de cera, mas que se desfazem ao calor do astro rei. A certa altura Sofia parte do interior da França com os pais para residir na América, na companhia do primo  Paulo e sua devota família. Sofrem um naufrágio, onde morre a mãe de Sofia,  sobrevivendo ela e o pai.  No novo mundo, sem mais notícias de Paulo, acontece o casamento do pai com a malvada Fichini (feiticeira?). Logo depois, morre também o pai, deixando Sofia sob a tutela da madrasta, ao lado de quem ela vai sofrer toda sorte de desditas, até que na idade adulta retorna à Europa, ou às origens.

Ao ler O Tronco do Ipê  repleto de mistérios, fiz o paralelo entre a bondade do pai Benedito e a maldade da Fichini. O escravo, guardião dos segredos da fazenda Boqueirão, era a imagem do “feiticeiro bom”, sob as bênçãos de quem Alice se casa com Mário. Para o naturalismo de José Alencar, o bem estaria na natureza, e o mal perto do homem civilizado, como o barão, pai da moça. Ao contrário do que acontece com a narrativa da Condessa de Sègur, que faz Sofia retornar à Europa, onde ela se casa com outro amigo de infância, o civilizado João de Rugès, que lhe dará paz à alma inquieta, dentro da tradicional fé católica. O Novo Mundo, todavia, mais virtuoso que bárbaro, foi o que testemunhou Nazária, sobre meus antepassados europeus no Brasil, filha de escrava  alforriada com pai branco, tendo acompanhado o tranquilo sucesso financeiro da família, assim com sua elegante decadência.

Gonçalves Dias em A Canção Dos Tamoios canta que “A vida é combate/ que os fracos abate/ que os fortes, os bravos/ só pode exaltar”. Os fortes e bravos de espírito. Mas a robustez física torna-se apreciada, após uma geração em que bonito era ser frágil e morrer em plena juventude.  Minha avó a se gabar da própria fragilidade. Após a morte prematura do marido, comerciante próspero, foi uma mulher exemplar no caráter e determinação. O trabalho para a viúva torna-se um bom combate, não sendo adepta da ideia da dor como um bem, falsidade ideológica, que levava à cultura do sofrimento, da passividade, diante dos revezes da vida. A dor não seria o melhor aprendizado, nem o prazer coisa inconsequente. “Só é feliz de verdade quem se sente bem consigo mesmo!” diziam minha avó e minha mãe, certas de que o sofrimento prolongado avilta, assim como a luxúria, de que são possuidores os escravos das honrarias e dos prazeres, pessoas suscetíveis de tornarem-se vítimas do medo, da inveja e da cobiça.

Convenção, modismo, numa geração de mulheres que jamais admitiam ter saúde. Quanto à minha intrépida avó – nem gorda, nem magra, e com boa saúde – mesmo assim, se gabava de estar com a vida por um fio. Algumas mulheres obrigadas à inatividade - não minha avó. Talvez se dissessem doentes para legitimar sua fraqueza, e serem interessantes, até para se livrarem das sucessivas gestações. As mulheres nos desmaios escondiam  sua fortaleza, geração após geração sem vontade própria, nem disposição para enfrentar a vida. Discriminadas, aceitavam, o que acontecia antes da emancipação feminina. O que ainda se vê nos dias atuais, a justificar que se apregoe como real vocação da mulher a utópica tranquilidade do lar, o que contraria os ideais de modernidade. Quanto à nossa geração, éramos uma fortaleza em todos os sentidos, e podíamos até nos orgulhar da nossa capacidade mental sem sofrer grande   censura.

Telefonia e telegrafia precárias, e minha avó recebendo mensagens telepáticas, como a notícia da morte de uma amiga que acabara de falecer a léguas de distância, sem acreditar que fosse coisa do outro mundo. Havia poucas maneiras de nos livrar da dor, contra a qual o homeopata receitava a Nazária, seus incipientes medicamentos tirados de uma preciosa maletinha de doutor. Não muitas as dores da nossa infância, até  mesmo as inventadas para impressionar e sermos tratados com mimos, o que mais importa em caso de doença. A farmácia aperfeiçoando-se para combater as doenças, e nada mais alvissareiro que a promessa de uma vida prolongada e quase sem sofrimento. Nossa condição de seres racionais, que deve pautar seus atos na reflexão. As decisões tomadas conscientemente, sobre o que se quer da vida, não obstante muitas coisas aconteçam independentes da nossa vontade. Trabalhar a nosso favor e não contra, ter responsabilidade para conosco e para com os outros seres, principalmente, nossos semelhantes. Seria uma resposta sobre o sentido da vida humana. Ainda não bem acordada, uma voz feminina me fala,  certamente vinda do passado, que por um bom tempo escutei, mesmo sem entender. Aquela voz amiga me dizia algo importante, e penso que ela refletia todas as vozes que me falaram durante minha vida, na vida real e na ficção. Concluí que  ainda esperavam muito de mim, pelo que me deram, e não foi pouco.”



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