domingo, 16 de janeiro de 2022

                                                                        

                                                                 RAÍZES 

PRAÇA DEODOR. Também conhecida como PRAÇA DO PANTEON

 Andar de bonde era uma maravilha, assim como dar voltas de bicicleta em torno do imponente edifício da praça Deodoro, a Biblioteca Benedito Leite, a poucos passos da minha casa. A bicicleta emprestada da minha colega-amiga, futura médica, competente para dar nome a hospital em S. Luís. Vendo a biblioteca, minha intenção era ler todas os livro ali guardadas. Teria tempo? Devia apressar-me. Mas o importante é ler durante a vida bons autores e relê-los. A residência da família sempre em local nobre e perto da Igreja dos Remédios. A morada-inteira ficava em frente à encantadora Praça Odorico Mendes, onde eu nasci,  pela mão da parteira Celeste. Depois fomos morar na meia-morada,  perto do lar antigo. A mudança de endereço por conveniência, e de acordo com os novos tempos, que se devia tirar proveito do saber dos livros, que recebiam em São Luís especial abrigo. Do jardim de casa eu observara a formação dos alicerces do prédio dedicado à lavra das letras, que ao surgir parecia um bolo-de-noiva, daí seu apelido, o estilo neoclássico a se harmonizar com o belo casario imperial, revestidos de azulejos portugueses, eleito em 1959 Monumento Universal de Arquitetura e Urbanismo.

 Ter treze anos não é o mesmo que ter onze, doze, a vida quase uma miragem. As aspirações começam a se manifestar, e o amor chegando ao coração. Laila de olho em Deusdete, desde que o avistou no cinema. Seu amigo Vicente a impressionar-me por suas leituras em inglês e francês. Mas longe ainda os namoros de verdade.  Da rua vinha aquele cheiro de chão molhado das tardes de chuva, quando então eu ficava a cismar vendo a água cair das telhas. Lia e relia Louisa May Alcott, autora preferida da minha juventude, após o encantamento da infância com Monteiro Lobato. Da autora americana meu avô trouxe de Portugal os dois primorosos volumes de capa vermelha, para minha mãe habituar-se na leitura o que ela me disse ao passar-me o presente dos dois volumes: As Quatro Raparigas e Alguns Anos Depois. Obras atualmente conhecidas como Mulherzinhas, sobre quatro irmãs em seus anseios. Jô, a menina intelectualmente  talentosa, quer ser um menino, certamente por conta do desprezo ao talento feminino na época; a doce Guida, desde cedo com o dom de ensinar, até casar-se com um homem de caráter, por ela mesma escolhido para fazê-la esposa e mãe, ideal abraçado de coração; May, a criança voluntariosa, que se casa com amigo de infância Lourenço, capaz de lhe satisfazer a ambição, menos  de sucesso artístico, por lhe faltar talento, o que ela tinha de sobra para brilhar em sociedade. No meio da narrativa a fatalidade da morte prematura de Beth, o anjo da família, silenciosamente chegando o sentimento de devoção e caridade presentes na jovem em confronto com suas irmãs que crescem lépidas e fagueiras, desejosas de sucesso pessoal. Quem mais admira Beth é a irmã Jô – o seu oposto – espírito inquieto, que recusa Lourenço, um par perfeito, não para ela,  que se casa mais tarde com o professor alemão Baher, filho do prático e resoluto país racionalista.

 Da infância guardo ainda na minha estante a preciosa herança dos três livros da Condessa de Ségur: Os Desastres de Sofia, As Meninas Exemplares e As Férias. Imaginava o quanto adoraria ser como Camila, ou Madalena, ou  Margarida, metáforas das virtudes teologais católicas: a fé, a esperança e a caridade. Menos exemplar era a menina Sofia, eu a temer ser parecida com essa personagem desastrada, que  coloca a boneca de cera – presente do seu querido pai – para aquecer ao sol, e tem os pés derretidos. A mente humana criativa, mas infantil, que não observa seus limites. Trágica personagem, que procede como mitológico Pégaso, no seu desejo de alcançar o sol com asas de cera, mas que se desfazem ao calor do astro rei. A certa altura Sofia parte do interior da França com os pais para residir na América, tendo como companhia o primo  Paulo e sua devota família. Sofrem naufrágio, a mãe de Sofia morre,  sobrevivendo ela e o pai.  No novo mundo, Sofia não tem mais notícias de Paulo, e acontece o casamento do viúvo com a malvada Fichini (a feitiçaria no novo mundo), que ao morrer, deixa a menina sob a tutela da madrasta, ao lado de quem Sofia vai sofrer toda sorte de desditas, até que retorna à Europa, ou às origens.

 Ao ler José de Alencar, autor do Tronco do Ipê, fiz o paralelo entre a bondade do pai Benedito e a maldade da Fichini. O escravo, guardião dos segredos da fazenda Boqueirão, era a imagem do “feiticeiro bom”, sob as bênçãos de quem Alice se casa com Mário. O naturalismo do ator brasileiro aponta o bem presente na natureza, enquanto o mal estaria mais perto do homem civilizado, como o barão, de origem europeia, pai da moça, contra o enlace. Já na narrativa da Condessa de Sègur,  Sofia retorna à Europa, para se casar com outro amigo de infância, o civilizado João de Rugès, que lhe trará paz à alma inquieta, ou a cultura europeia greco-romana em suas conquistas além-mar. O Novo Mundo, todavia, virtuoso em sua inocência. Cito Nazária, nascida na lei do “ventre livre”, que acompanhou o tranquilo sucesso financeiro de uma família de imigrantes portugueses, assim como seu elegante empobrecimento. Minha raiz fincada no Brasil para sempre, gratidão que devo os meus avós. 

Para a avó que me criou ser grata tinha essência de civilidade e de obrigação.

 

 

 


Nenhum comentário:

Postar um comentário