quarta-feira, 3 de abril de 2013


 VEJAM  ESSAS MANGAS!



A Lição de Música é um quadro surpreendente pela modernidade. Apresenta uma jovem de pé a dedilhar um piano, enquanto mira a própria imagem no espelho de dimensão invulgar para a época, fabricado apenas em Veneza detentora da especialíssima técnica. Outros objetos de valor estão ali expostos, para serem negociados ou fazem parte da coleção particular de alguma família abastada. Trata-se de um membro da elite comercial, a fortuna que ela possui e o foco dos seus desejos. No tampo do piano uma frase sintomática: Musica Laetitiae Comes Medicina Dolorum (Música Companheira da Alegria e Bálsamo para o Sofrimento). A elegante veste da jovem com mangas que dão ilusão de asas preste a alçar voo, um estilo de roupa que, em 1678, mereceu uma nota ao pé de uma gravura: “Vejam essas mangas, posso assegurar que nunca houve mangas como essa ante”, o que anunciava o famoso comentarista de moda  Donneau de Vise. À época, difunde-se a crença nos anjos, ou nos sentidos que criam asas através da música. Também o sonho moderno de consumo de bens para satisfação pessoal.
A busca pela riqueza e realização de cada um individualmente, acontecia na recém-criada República protestante. A mulher educada, instruída, com segurança financeira, estaria apta a realizar melhorias no plano social. Por estar de pé no quadro, ela finge interpretar uma música, acompanhada por um mestre, ou o próprio artesão do instrumento musical e seu vendedor, apoiado numa bengala, os dois personagens estrategicamente colocados no fundo da sala. Um terço da cena tomado pelos objetos agrupados à frente, alicerce da vida financeira das cidades urbanas, que se modernizam. São produtos do trabalho contínuo, competente, com que os comerciantes ganham dinheiro e as famílias conceito ao negociar, ou possuir em casa, o que fabricam os artesãos, em suas várias especialidades. Aposta-se no comércio e no intercâmbio material e cultural entre as nações, propiciador da consciência burguesa. Sólidos burgueses, cultores de valores espirituais, para que os bens materiais amealhados não levem ao egoísmo, à ambição desmedida, mas se tenha reais interesses pelo mundo.
O trabalho artístico e artesanal de objetos de consumo com valor intrínseco e conceito. A dialética burguesa ao lado da dialética das coisas. Os objetos com sentido abstrato embutido, além do que eles representam como arte. Utilitários   do comércio, também fontes da transcendência. Para Espinosa “a ordem e a conexão das ideias é a mesma que a ordem e a conexão das coisas.”  A cadeira que aparece nesse quadro de Vermeer era objeto que merecia cartas decantando suas qualidades.  Por estar vazia e voltada para o expectador, diz que a atenção deve se dirigir ao objeto de consumo ali exposto. A arte como veículo de propaganda, principalmente, no desejo de chamar atenção para os comportamentos, sujeito à admiração ou censura, estando em curso a evolução da sociedade, a liberdade.
O que sabemos dessa mulher do passado, não tão distante de nós, a dedilhar um instrumento musical? A felicidade real ou imaginária que ela busca, bem como outras mulheres nos quadros de Vermeer, ainda é a nossa, na superação das adversidades, para não sermos vítimas do destino. O processo de emancipação e realização concentrado em grandes ambições, mas que pode, de súbito, se transformar em equívoco, no dizer de Ronaldo Lima Lins em seu livro A Indiferença pós-Moderna, para quem o equívoco do caráter da fé no amor, ou do romantismo, já estava sendo preparado no século XVII, do amor na fé, que estaria figurado na imagem tosca da vidraça em outro quadro de Vermeer. Emma Bovary de Flaubert, na ânsia de atender aos seus desejos, por querer demais satisfazê-los, caminha para a ruína. Os excessos da personagem Emma, ou do próprio autor da obra literária que, na ânsia de desejo de sucesso, pode se perder, e chegar mesmo à prisão, como aconteceu com o célebre francês. E sabemos muito bem que grandes vitórias e grandes prazeres podem não trazer felicidade e aprisionar a alma. Como calvinista, Vermeer parece avisar da importância do bem material, que está à frente do palco da vida, desde que reservado o melhor papel ao espiritual.
O quanto de mal pode provocar o excesso ou escassez. O quanto pode nos afetar negativamente se não temos desejos, ou se os temos muito intensos. Muito confiar não nos fortalece, assim acontece se perdemos de todo a confiança. A força que ganha o mundo com a moderna liberdade de ação, mas faz com que se corra graves perigos.  Na pós-modernidade pode acontecer o desastre de se querer saciar desejos sem limitação e sem o real interesse pela vida. Instalada a desagregação, perde a família, a sociedade o mundo como um todo. Os excessos do mundo contemporâneos, como no passado romântico, podem fazer o mundo sucumbir outra vez à barbárie. No século XVII Vermeer pinta seus belos quadros do barroco alegórico, mensageiro da paz e da prosperidade. Quase na mesma época Leibniz fala no melhor dos mundos possíveis. Hoje temos apenas o possível. Ou já chegamos ao impossível? 


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