terça-feira, 30 de abril de 2013


       TRABALHOS DE AMOR E FORTUNA






Os povos ibéricos, de fé católica preponderante, desprezavam os ofícios mecânicos, o que não ocorria na parte setentrional do continente europeu. Tanto na intransigente Alemanha, quanto na condescendente Holanda, duas laboriosas nações, de maioria protestante, foi adotada a ética do trabalho. A Rendilheira exalta de modo claro o trabalho feminino, tecendo o fio, comodamente sentada. O mesmo acontece em A Leiteira que está de pé derramando leite no tacho para fazer o pão de cada dia. Além do que está oculto nas duas pinturas. Concentradas em suas tarefas, as mulheres transmitem dignidade pessoal e ao trabalho a que se dedicam,  em cada ação embutido valor moral e econômico. O ethos do trabalho nos dois quadros para libertar as pessoas de poderes arbitrários, consoante o que determina a sociedade utilitarista protestante. As duas mulheres em atividades que podem até subjugá-las, vulgarizá-las, mas também pode torná-las livres de cair nas tentações do mundo. A robusta leiteira está vestida de modo simples, com as mangas da blusa arregaçadas, deixando ver a alvura do antebraço, a pureza do seu corpo, que tem a mesma cor do leite, o que certamente não se trata de racismo.
Questionamos ainda se a rendilheira não seria uma mágica ledora de renda, dessas que foram queimadas como bruxas, torturadas. No século das almas, além do trabalho nas oficinas, havia o de cunho espiritual, mágico, e o quanto as mulheres foram perseguidas por isso, precursoras que foram da ciência moderna. Fruto de especial magia, por exemplo, é a moderna técnica psicoterápica de “reinstalar a fiação” (rewied), como remédio contra a depressão, e que é usada para provocar “mudanças metabólicas cerebrais regionais adaptativas”. O trabalho de “mentalização” capaz de curar o cérebro depressivo.  O trabalho como método de cura, uma vez que a mente ocupada pode prevenir contra os males psicossomáticos. Exemplares as personagens de Vermeer habilitadas nos ofícios, quando menos, para fugirem do vazio existencial, pelo bem estar que oferecem a si próprias e a outras pessoas. A saída honrosa contra a miséria estaria na rotina do trabalho, tanto do corpo quanto da alma, o que Calvino incentiva para as mulheres. O aprendizado dos ofícios seguindo rígida disciplina, uma vez que a insegurança se faz presente mesmo no melhor dos mundos.
A ética protestante, segundo Max Weber, é por um ideal de vida que exige autocontrole e precisão de conduta. Assim, por trás das duas trabalhadoras, as paredes estão nuas, apenas um prego denuncia que algo esteve suspenso ali e foi retirado, e poderia ser algum mapa geográfico, uma tela de cupido, uma paisagem, ou mesmo um famoso quadro da fé católica, que servem de fundo em outros quadros de Vermeer. Todos varridos do local, por representar aos puritanos e calvinistas coisas de ímpios, de desonestos. Intrigante o pontilhado luminoso que aparece no azul-escuro da manta de lã ao lado da redilheira. O mesmo pontilhado do pão produzido pela leiteira, salpicado de pequenos pontos dourados. Exprimem obscuridades que vêm à luz. O invisível quer se tornar visível e fazem parte da natureza e suas leis; humanidades saídas da obscuridade, tornadas mais claras possíveis. Diz Aristóteles em sua Metafísica: “Indicar a substância de uma coisa nada mais é do que indicar o ser próprio dela”. O pontilhado de Vermeer, uma tentativa de revelar o sentido oculto das coisas, metafísico e moral, também, as ínfimas partículas da matéria, que a ciência não tardaria a revelar, tal como o valor vitamínico dos produtos, necessário para o bom funcionamento do corpo, o que os valores espirituais representam para a alma. Na Holanda, à época, o inventor Leeuwenhoek de Delf deixa todo mundo abismado, principalmente os humanistas, ao fazer as primeiras observações sobre a natureza dos tecidos, servindo-se a princípio de uma lupa, depois com um microscópio rudimentar por ele inventado.

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