terça-feira, 15 de janeiro de 2019


CONTO

                     
                   SENTIR A VIDA









       - O que é que você disse?

       - Eu não disse nada.

        Um breve diálogo entre duas irmãs,  que passavam as tardes uma em frente da outra. Além do sangue, tinham em comum o gênero, e a idade entre elas não era problemas, poucos anos de diferença. Tinham tudo para se darem bem, mas faziam força para serem diferentes. Aposentadas, vivendo sob o mesmo teto, mas pouco se falavam, mesmo agindo em sincronia. E onde iriam morar qualquer uma delas, a não ser na casa que herdaram? A convivência parecia imperiosa, incomodava. 

       Melhor o silêncio do que se atritarem. Logo depois que a mãe morreu - o enfarte pegou-as de surpresa - a questão que surgiu entre as duas foi se compravam um novo jazigo, para onde também elas iriam ser enterradas, ou colocavam a mãe junto aos demais parentes mortos, já apenas ossos. Venceu a segunda opção, por interferência do irmão, coisa rara, ele cerimonioso para com as irmãs. Um quase desentendimento surgiu quanto à partilha das joias, a cunhada reivindicando mais do que lhe era devido. Respeitosos, logo chegaram a um acordo

     Aos setenta, tinham vivido num tempo em que a mulher não podia alcançar um nível intelectual além do mediano, que seria para não prejudicarem seus órgãos reprodutores. A procriação seria a vocação da mulher, e aquelas duas nunca procriaram, do que nunca se queixavam, nem de nada. Além da televisão, tinha a internet; a mais velha escutava novelas, a outra ligada nas redes sociais. Quando juntas à mesa das refeições comentavam qualquer coisa sem muita importância. Depois cada uma ia para seu canto, até o cair da noite, por fim o quarto de dormir. Detestavam darem incômodo a quem quer que fosse, evitando incomodarem-se mutuamente.

       Escutaram alguém dizer: “Deus dá nozes para quem não tem dentes”. E o que Maria da Paz e Maria das Dores podiam fazer dessa paz estranha e aguda, que começara a doer no silêncio das horas. E nem pensavam a quem doar aquela tranquilidade que começava a lhes rasgar o peito, desde que a mãe morreu. Preferiam uma vida que elas conheciam a apostarem no desconhecido. Eis que um dia se pegaram rindo de suas infelizes e fatais escolhas. Ou não tiveram escolha?  Das Dores, como era chamada a mais velha, tinha sido flagrada pelo noivo andando “serelepe” pela rua Grande, deixando de avisá-lo que ia sair, e nem os cinco anos de convívio aliviou a dor que o rapaz sentiu daquela traição.

      Da Paz caiu de amores por um desconhecido, alguns anos mais velho que ela, até que descobriu que o dito cujo abandonara uma jovem grávida, isso logo depois de conhecê-la, era costume dos machos predadores, nesse caso  o violador denunciado a tempo. Irmãs em dia de reminiscências, pós-orfandade, quando então sentiram fundo a dor da saudade. Ainda tinham uma a outra, melhor aproveitarem o convívio mútuo e, em especial, tivessem um encontro prazeroso com a vida. Fugir, ou trombar com a vida é, no mínimo, de muito mau gosto. Não ter medo da vida, senti-la mais de perto, absorver seus encantos e solucionar os problemas, o quanto for possível.


Amelié Poulan tem prazer em ajudar 

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