quarta-feira, 25 de setembro de 2019




CONTO

                                           CURVA NA ESTRADA








Havia a intenção das sobrinhas de d. Marieta e sr. Isac virem do interior para morar em Natal. Ver dois rostos  pálidos e olhares ansiosas diante de si à espera do veredito era para nunca mais esquecer. As meninas tinham onze e treze anos, não jovens demais para ajudar nos pequenos afazeres domésticos, e com  boa idade para serem educadas, conforme sua capacidade. Conscientes disso, o casal, com os filhos já criados, não hesitaram em recebê-las em casa.

“Depois do almoço vou pedir ajuda a Marilda, que é psicóloga e  pode orientar-me em algumas questões ".  Falou d. Marieta, e assim fez. Uma visita inesperada da mãe em seu consultório foi de assustar. Já recuperada do impacto da novidade, a filha não hesitou em dar sua opinião, como profissional e membro da família. Colocar alguém em sua casa, mesmo que seja parente, mas que pouco se conhece, por mais boa vontade que haja, não esquecer os direitos de cada um, em especial, as crianças. É  saber lidar com quem está sob seus cuidados, e não cair na cilada de querer ajudar quem não quer ser ajudado. Mas se tudo correr bem e o resultado for bom, é levantar as mãos para o céu, e agradecer.

D. Marieta sabia, sim, que o melhor para a criança é não se afastar do lar onde nasceu, e deva crescer com os pais biológicos, o que nem sempre é a realidade. Pensava nos orfanatos cheios de menores abandonados, fora os que têm família, mas perambulam pelas ruas. A porta de sua casa   estaria sempre aberta para quem quisesse entrar. Não faltou gente boa e receptiva para d. Marieta  acolher, parentes em sua maioria, e nunca se arrependeu. Suas duas filhas, Marilda e Verita, lembravam disso e chegaram a uma conclusão, que o dom de fazer o bem era inato em sua mãe. Fechada a questão, as meninas foram morar com a bondosa, ou corajosa esposa de sr. Isac.

“Não queria estar na tua pele”, falou d. Enira para d. Marieta ao tomar conhecimento das novas habitantes da casa vizinha. Ouvira falar em casos reais de crianças, que cometeram atos criminosos, um garoto havia queimado a casa, e a menina de nove anos envenenara os pais adotivos. Na realidade as crianças é que mais riscos corriam de serem discriminadas, exploradas por sua situação financeira e origem, e até mesmo sofrerem abuso sexual.

“O perigo que corres por conta de tua bondade”, lastimou outra amiga, que d. Marieta pouco conhecia, mas convivia, sem desconfiança, a quem respondeu, que perigo há em tudo, e se fosse para ter medo nem se podia sair de casa. “É saber lidar com as pessoas, ter discernimento”, retrucou a futura mãe adotiva de Lucimar e Lindalva. 

Bem verdade que as duas meninas não iam deixar de ser uma provação para d. Marieta, que era exemplar em tudo, leitora assídua, boa dona de casa e exímia cozinheira. Lucimar mostrou-se um desastre  na cozinha, ao tentar fazer um bolo, esqueceu o fermento e o mesmo "solou", e por aí vai. Lindalva, por sua vez, quis ser freira, mas desistiu depois que d. Marieta já havia falado com um convento para recebê-la, dizia escutar vozes, e ver coisas estranhas. Jovens de inteligência mediana, que iam se diplomar, se profissionalizar, como a maioria dos brasileiros. O Brasil deficiente de cérebros bem formados, e sem condições de competir com o mundo lá fora.    
  
Algum tempo depois daquele dia em que d. Enira desconfiou das sobrinhas de d. Marieta, ela chegou esbaforida com o calor, e bem depressa sentou seu corpanzil na primeira cadeira que encontrou vazia. De pronto, falou que estava arrependida do que dissera tempos atrás, mas continuava não acreditando que as mulheres tivessem obrigação de  ir para a faculdade, como os rapazes, uma vez que a matemática e as ciências seriam  demais para suas cabeças. Era voz geral a inferioridade feminina no campo do conhecimento.

O tempo passou.

Lucimar, depois de se despedir de d. Enira, em uma de suas costumeiras visitas, ficou algum tempo do lado de fora de casa, pensando quando ali chegara muito jovem. As ruas  do centro da cidade, antes tão calmas, estavam tomadas pelo trânsito, mas a casa pouco mudara. Mudanças aconteceram, sim, de dentro para fora, muitas e decisivas. E nada poderia tirar o que é da pessoa por direito: sua ambição, seus sonhos. Assim é para todos. Lindalva acabara de ser contratada para trabalhar na prefeitura, e estava de casamento marcado. Lucimar nomeada professora universitária numa cidade vizinha da capital. 

Quando o marido de d. Marieta faleceu tempos depois, sua esposa disse que ia "fechar o barraco". Aceitara o convite para morar com sua filha mais nova, que ressaltava a importância da presença dos avós para o desenvolvimento dos netos. Verita era dona de casa, vivia com o marido e um casal de filhos numa ampla casa de praia, com o mar de um lado e a pródiga natureza do outro. Nada melhor para um fim de vida, que d. Marieta esperava se estender por alguns anos mais, estava com oitenta anos.

Há uma curva na estrada, que ninguém sabe o que há depois, mas é ter fé em Deus, fé na vida e seguir em frente.









Nenhum comentário:

Postar um comentário