sexta-feira, 20 de setembro de 2019




FICÇÃO


                                       OLHAR PARA O ALTO
                                                






           Incrível como a casa se esvaziava, seus habitantes, um após outro, a deixavam. Para aquela que ficou parecia que  tinha o lugar exclusivamente para si. Meira estava sozinha e com medo. Os fantasmas sempre presentes, mas só aparecem quando chamados. Antigos habitantes da casa, que nunca a abandonam, numa perene comunicação por via natural, ou sobrenatural, que é a mesma coisa. Tempo em que se olhava para alto em busca de uma inspiração divina. E ter a graça de poder ver uma santa Mãe, a Virgem Maria. Hoje, uma geração de deslumbrados, que buscam no alto o brilho dos flashes e dos fogos. A ilusão do artifício. Como assim? Ainda se orgulham da cegueira? Não sabem o que  perdem, se pudessem ver de verdade!...

        Meira lembra quando tempos atrás a noite calma caia suavemente sobre a velha casa, silenciosa e tranquila, a avó deitada dentro do caixão na sala de estar, com seus cabelos grisalhos emoldurando o rosto plácido no qual se via um leve sorriso, de quem em vida cumpriu sua missão, e fez mais, procurou ajudar a muitos à sua volta. Havia flores, algumas trazidas do seu pequeno jardim que ela cuidara até o fim. Era a última coisa que Meira podia fazer por sua avó. A morte fora instantânea, e provavelmente indolor, estava às vésperas de completado setenta anos.

          Alguns dias depois Meira encontra seu tio-avô Aquim, que pouco via. Ficou feliz em vê-lo muito bem disposto, ele aproveitou para contar à sobrinha que acabara de concluir uma pesquisa sobre os antepassados. Estava orgulhoso de ter feito a árvore genealógica da família, tendo seu pai vindo do Porto como investidor para o Brasil. Meira estava no momento tentando a cidadania portuguesa, coletando os documentos necessários, sua intenção era passar um boa temporada em Porto, ou numa daquelas simpáticas vilas de Portugal. O tio incentivou-a a prosseguir:
          
         - Minha pesquisa pode ser útil para seu intento.
         
        Meira penou para receber o documento que lhe dava direito a viver, ou, simplesmente, visitar no tempo que quisesse, o país de origem dos seus avós. Acontece que a certidão de batismo da mãe estava desaparecida, a igreja onde foi batizada havia sido demolida na sanha de modernidade da antiga cidade. O registro foi parar numa igreja em bairro distante, e, ao ser localizado, verificou-se que havia um erro com o nome próprio do batistério, que estava diferente da certidão de casamento.  Feito a correção, a escrevente encarregada da transcrição, coloca na certidão de batismo o sobrenome de casada da requerente. O erro só percebido depois. Parecia uma trama diabólica.
         
          O tio que Meira havia prometido visitá-la e dar-lhe a aconhecer sua pesquisa, infelizmente, faleceu pouco dias depois daquele encontro, não dando tempo para a sobrinha conhecer sua árvore genealógica. A pesquisa do tio acabou no lixo, o filho dele alegou ter se desfeito de muita papelada "inútil". Meira lastimava não ter gravado os dados do tio no computador. Ele bem que merecia o reconhecimento pelo trabalho, que se perdeu.   




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