sábado, 6 de junho de 2020




CONTO DA QUARENTENA




              QUARENTENA 2020  


  


  Cibele está na livraria do bairro, para conferir as novas publicações, comprar um ou mais livro, ler um pouco, e saber das notícias literárias. É seu lugar preferido de quase todas as tardes, naquele dia fica  sabendo que ia fechar as portas para cumprir a quarentena determinada pelas autoridades sanitárias. Decretada a pandemia do novo coronavírus pela OMS, as atividades públicas seriam suspensas em todo o país, como acontecia no resto do mundo. Apenas farmácias, padarias, mercados, e demais atividades essenciais podiam continuar funcionando, até que baixasse a curva dos infectados, que já ia na casa dos milhares.

Mesmo com a estante de casa cheia, alguns livro ainda por ler, Cibele resolve comprar mais exemplares para atravessar o confinamento bem munida. Ler e escrever seria sua ocupação, fora os trabalhos domésticos, lógico. Trocara a Odontologia pelo curso de Letras, ao percebe que não seria uma boa profissional na área escolhida sem critério, enquanto lhe sobrava talento para a nova escolha. 

Cibele está no empenho de joeirar suas próximas leituras, foi avistada por seu colega de trabalho. Aroldo aproxima-se, tendo em mãos o livro Úrsula (1859) de Maria Firmina dos Reis, surpreso com a descoberta da homenageada pela FLUP-18. Quer saber mais sobre a escritora, recorre à amiga, e ainda quer aproveitar a oportunidade de expor sua paixão por esse extraordinário século XIX, época em que o livro da maranhense foi publicado. Faz a abordagem:

- Cibele, penso que você já leu Maria Firmina, uma descendente de escravos, negra, como nós dois, e a maioria dos nascidos no estado nordestino. Como historiador, digo que o século XIX foi extraordinário, de onde vieram as  invenções, que iam ser imprescindíveis para o mundo atual. Finda a escravidão, a justiça devia reger a vida civilizada, tendo como motor do progresso a ciência e a tecnologia. Um mundo até então desconhecido se revela, vertiginosa a perspectiva de vida. A ciência aplicada à técnica, inimaginável que pudesse promover tamanhas transformações na coletividade e na vida de cada um em particular. 

Ele faz uma pausa e continua: 

- As máquinas de utilidade crescente a produzir cada vez mais e mia coisas, e o consumo, virou consumismo, do qual ficamos inconsciente e irremediavelmente sujeitos. O homem tornou-se anônimo,  parte de uma massa atônita. De surpresa em surpresa chega-se ao coronavírus, entre outros vírus. E não há ciência que deles nos livre, com os quais temos de conviver. O novo coronavírus  o pior de todos.

Cibele aplaude o amigo, e com prazer fala sobre sua conterrânea, e tudo o mais:

        —Justa homenagem concedida a Maria Firmina, seu livro de estreia conheço bem, é uma narrativa ultrarromântica, que conta a paixão de um casal de jovens brancos, contendo personagens de origem africana a refletirem sobre a escravidão. A escritora considerada a primeira romancista brasileira e seu livro de estreia o primeiro texto abolicionista publicado no país. Nos termos atuais, poderia se considerar "empoderada." Para a época o que mais importava era o pertencimento, e não o chamado “empoderamento”, como acontece com as mulheres no presente momento, fruto do que você acaba de expor.  Ortega y Gasset fala da "ascensão vertical dos bárbaros". Com audácia sobe ao palco o espírito laico, melhor dizer, ateu, que prometia matar Deus, acabar com religião.

Aroldo retorna a falar:

-A elevação feita através da tecnologia. E se há uma coisa que a pandemia do novo coronavírus nos pode ensinar é que, sem o saber, e mais ainda, sem o consolo da fé, sem amor e sem compaixão não podemos viver.
                
A livraria estava cheia. Depois do diálogo que provocou, Aroldo sai satisfeito para pesquisar mais um pouco, também prepara-se para a leitura na quarentena. Perde Cibele de vista. Ela está tentando tirar um livro do alto da estante, alguém aproxima-se:

          — Deixa que eu pego para você.

               Cibele agradece com um amável sorriso:

               -  Muita gentileza sua, Dalva. Obrigada!

            As duas mulheres frequentam o mesmo Clube do Livro, e depois um papo ligeiro sobre literatura, e ainda falarem um pouco de suas vidas,  Dalva despede-se, indo em direção à saída. Com a volta de Aroldo, que já dera outra vista d`olhos pelo local, Cibele comenta sobre a moça que se afasta, e acaba de contar-lhe da dificuldade que sente em viver longe da família que ficou na tranquila Itapipoca. "Mais que tudo, Dalva estranha a vida trepidante e poluída da capital" diz por fim Cibele para seu amigo historiador, psicólogo e comentarista do jornal mais prestigiado da cidade.

A dona da livraria aproxima-se, e lhes fala da sua preocupação, com o comércio fechado, as falências que podiam ocorrer. "Todos estavam apreensivos", responde Aroldo. Certo que a natureza ia agradecer a trégua dada pelos humanos. E quando fica só, reflete sobre a freguesa que acaba de entrar: "Rosalva é filha de português abastado com uma descendente dos índios Tapuias. A barreira social que ainda há nas relações inter-raciais. O racismo que persiste, fruto da escravidão, também da colonização. E esse mortal vírus chega para nos mostrar que estamos todos igualmente no mesmo barco."

        Cibele já estava de saída, encontra Otávio  e seu irmão gêmeo, Otílio, que conversam ao pé do ouvido. Se chegasse mais perto ia saber que abordam o assunto do momento, a pandemia. Ambos médicos, foram convocados para a guerra contra o maior inimigo da humanidade no momento, o Covid-19.
       

                   Alguns anos depois

             A pandemia demorou o tanto que demora qualquer pandemia. Certo que a vida continua sem maiores alterações, além das que eram determinadas pela vida de modo geral e de cada um, com suas experiências, ambições e tudo o mais. Cibele torna-se professora, reconhecida como boa escritora, pertencente a várias Academias de Letras, sempre a dizer: "Escrevo para crianças por prazer, e trato dos demais assuntos para sofrer como adulta " Observadora arguta dos comportamentos para colocá-los em seus textos. Chegou a mudar de curso, para não ser medíocre numa profissão sem o devido talento. Casou-se com um professor, também no ramo da letras. Notícias do amigo Aroldo ela continuava a ter através da sua coluna social. E dos irmãos Otávio e Otílio, que notícias tinha Cibele deles? Dedicados profissionais, ainda hoje recordam as pessoas salvas, felizes e agradecidas por saírem do pior confinamento que é um leito de hospital. 

Cibele relembra, com lágrima nos olhos.                  

              

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