domingo, 24 de março de 2013


LEMBRANÇAS DA AVÓ                                           

Na casa da rua das Hortas a avó Carmelita cuidava do seu jardim. Lá para o fim da tarde fazia sua lista de compras com um lápis de ponta rombuda, o ouvido grudado no zumbido do rádio, centro das atenções na casa. Sempre confiante no aconselho divino: “Faz, que eu te ajudarei!” Filha de pais abastados, casada com comerciante promissor, cedo enviúva, quando então se pôs a trabalhar em doces e salgados finos para festas. Acontecia na Europa o segundo e último conflito mundial do século XX e o país inteiro ligado nesse quase instrumento de guerra que era o rádio. Não tardaria estarmos todos diante da TV, esse extraordinário veículo de comunicação. As novas transmissões ao vivo e a cores, prova do espetacular progresso humano, também da sua barbárie, nossa barbárie. As guerras, por exemplo, não deixariam de acontecer, vistas hoje no momento mesmo em que acontecem. Do mais pobre ao mais rico, em qualquer idade, quase todos de telefone celular em punho, objeto imprescindível na comunicação moderna, imediatista e ansiosa, num mundo que muda a cada passo, sem que se saiba se para melhor. O computador a consumir boa parte da vida das pessoas que passaram a se comunicar através de e-mail e nas redes de relacionamento, como o Facebook.


                                   


– Nada de novo no Front! – Falou minha avó.
Ia começar o blackout. O jeito era se recolher aos braços de Morfeu.
– Esqueceu vó? Amanhã começa o retiro, vou passar o dia no colégio. Bênção!
– Deus te abençoe!
Eram três dias de silêncio para escutar o voz de Deus e do palestrante. Só retornávamos para casa após a última palestra do Arcebispo Dom José, já no fim da tarde. Toda minha vida escolar fiz no Colégio Santa Teresa, do primeiro ano primário ao científico, a fé piamente cultivada naquele estabelecimento de ensino, para que tivéssemos um futuro sem grandes percalços, no que acreditava, e ainda acredito. Não me via como religiosa, apenas abençoada pela paz interior que a religiosidade proporcionava. As mestras exigentes com as alunas para a nota máxima em religião, comportamento, civilidade e ordem, sinal de que não havia complacência com nossa natureza original. O boletim escolar dando destaque aos itens necessários para uma vida correta, e nos tornarmos pessoas civilizadas, evoluídas. A evolução um tanto custosa para alguns temperamentos, não muito afeitos à santidade preconizada pelas Irmãs; os desejos quase todos julgados negativos, e se alimentados no íntimo, causariam feridas. O saber considerado insuficiente para uma vida social e familiar santa. Importava, todavia, nos livrarmos da ignorância na língua portuguesa, na matemática, história, geografia e outras matérias. A sociedade patriarcal e paternalista evoluía para o exercício da cidadania em nova ordem de justiça social e progresso.

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O ano de 1945 e meu irmão com seus soldadinhos de chumbo, em pleno ataque, quando soube do fim de Hitler, consequentemente, término da guerra. Tio João disse indignado: “Aquele lá era uma besta quadrada”. Estava encerrada no cenário mundial a ação ridícula e perversa de um louco. Ano especial, o de 1945, e eu toda feliz caprichava na caligrafia com meu lápis ponta afinada. Já sabia ler e escrever, e tudo de bom me podia advir do grande feito. Aos sete anos, o trunfo civilizador da palavra escrita, depois da evolução de andar e falar. Tinha entrado na idade da razão, o que disse a avó, entusiasmada comigo. A explicação que deu era que se perdia o suposto paraíso para, em contrapartida, adquirir discernimento para assumir responsabilidades. As crianças sob os cuidados das mães; ora austeras, ora de uma sofrida benevolência. Mães instintivas, ainda não adeptas de ideologias permissivas, como a da autodeterminação das crianças, coisa para futuras gerações. E que tipo de gente sairia do rolo compressor que então se formou?

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A fina flor da sociedade carioca disputava palmo a palmo os salões do Clube Militar, ornamentados em homenagem a Baco deus do vinho e da alegria. Chegamos quando a orquestra brindava o seleto público com o hino carioca: Cidade Maravilhosa /Cheia de encantos mil/...Coração do meu Brasil.  De arrepiar! A prima com sua extravagante cor de cabelo, recém-pintado de acaju, por erro do cabelereiro. Temerosa, a dizer que não conseguiria nem um pião de obra para dançar, se aparecesse algum por ali.  Acontece que logo de início Lenita atraiu a atenção do simpático rapaz que vagava entre os foliões a procura de um par. Não teve dúvida, achara. E não desgrudou da moça de cabelos de fogo durante os três dias de folia, e também nas sessões de cinema no Metro Tijuca. Ele não era pião, mas filho de militar graduado.
A certa altura refugiei-me na sacada do Mezanino, dali ver o movimento, saudosa dos carnavais maranhenses. A folia no auge, e minha animação em baixa. Ainda na cidade natal Vicente se despedira friamente ao partir de muda para Recife com pais e irmãos. Teria notado a decepção em meu rosto? O pessoal cada vez mais animado no salão. Pensava na avó Carmelita que sentiu o desânimo da neta e veio consolar: “Ninguém mais deseja que sejas feliz, e faz tempo que eu planejei essa viagem, quero que me acompanhes.” Fiquei surpresa: “Tão depressa assim?” A avó prosseguiu: “Já está tudo acertado, vou visitar parentes, que estão contentes em nos receber. Podes continuar os estudos.” Abracei-a com gratidão: “Você acha que sou uma boba e egoísta?” Recebi resposta tranquilizadora: “Não, pois não há quem deixe de passar por momentos assim, de desesperança. Precisas saber o que queres para tua vida. Dá tempo ao tempo.” Segurava minha mão, como se temesse que fugisse dela, precipitadamente, como fizera a filha tempos atrás.
Em pleno baile de carnaval pensava no passado e também no futuro. Quando vi minha avó e sua irmã arremessadas para além da sacada de onde os mais velhos acompanhavam os filhos naquele alvissareiro e, também, perigoso reino de momo, brigas sempre aconteciam. Despertada do meu torpor, desci apreensiva, para logo recomeçar meus saracoteios ao som das marchinhas, misturado com o barulho característico do assoalho antigo. A dança proporcionava um prazer imenso naquele momento, e havia a esperança da folia carnavalesca transbordar para outra, a matrimonial. Uma coisa não tendo nada a ver com a outra, mas tudo na vida é tão paradoxal! 

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