sexta-feira, 22 de março de 2013


O MOVIMENTO DAS MISSÕES


Vermeer em homenagem ao jesuíta Francisco, o primeiro papa das Américas.


Com as descobertas marítimas e a ocupação das terras conquistadas, a Igreja assume a missão de preservar a fé e educar os colonizadores, dever que se estendia aos povos nativos para convertê-los e livrá-los da exploração. No século XVI o missionário espanhol Bartolomeu De las Casas elaborou as primeiras defesas dos direitos humanos. Ao saber das ações cometidas pelos espanhóis contra os nativos nas Américas declara: “Todos os homens são iguais no que diz respeito a sua criação.” Os primeiros europeus que embarcaram para viver no Novo Mundo eram vítimas das perseguições religiosas nos países ibéricos e na Inglaterra. Mais tarde, colonizadores  atravessaram o oceano em busca de terras para viver ou comercializar com os nativos o ouro, a prata, o fumo. Na tela de Vermeer Mulher com a Jarra de Água o que mais seduz o espectador é a expressão de felicidade daquela que pode ser uma noviça segurando uma jarra ao mesmo tempo que olha com devoção para o pálido vitral renascentista da janela do mosteiro, de onde ela vai partir na segurança que lhe dá a fé cristã. Vai vivenciar o novo, no trabalho educacional, missionário, atividade que lhe proporciona realização, lhe dá oportunidade de mostrar o próprio valor. O humanismo medieval constituído pela fé existente, herética ou não, que teve início com as missões nestorianas, coptas e cristãs célticas.
A mulher, a civilização, renovada pela fé cristã. A renovação pelo espírito, que purifica o sangue derramado na conquista do poder político e territorial, comercial, aquém e além-mar, inclusive do “além”. A Europa, saída das trevas das superstições e perseguições religiosas, vendo possibilidades no mundo em expansão. A jarra de água difere dos vasos fechados de cerâmica em outros quadros de Vermeer, contendo produto destilado, oculto. A água é do batismo cristão. A origem da vida nas águas. Sem água e sem luz não existiria vida. Capaz de se transformar em matéria sólida ao frio e voltar a se liquefazer, ou evaporar ao calor, a água é substância vital, que constitui um terço do corpo, sem a qual ninguém sobreviria mais que três dias. O mesmo se pode dizer da fé, que tanta falta faz ao espírito, a ponto de não haver felicidade sem ela. Próxima da abstração pela transparência, a água pura do batismo cristão. A prata da jarra servindo de metáfora para a fé missionária, tridentina, contrarreformista.
A noviça sorri feliz por pertencer a algo que lhe dá  uma boa consciência e sentido à vida, compromissada com a sociedade, com a família, com o mundo em que vive. Importa a realidade que vai além da simples vontade e liberdade, tanto para a fé, quanto para o gênero feminino, sujeito a valores, e não aos próprios desejos, nem aos quereres dos outros. A mulher retratada no quadro goza da felicidade de ter uma missão a desempenhar, em   sincronia com o mundo, fruto da ação católica, que passa a atuar fora dos mosteiros. Há um caminho novo a percorrer, abertos pelas Missões em todo o mundo, daí o mapa pendurado na parede. A fé renovada, em ação de caridade, após a ruptura protestante e lutas religiosas. Luminoso despertar para quem tem uma fé que a protege, com a qual pode ver o mundo, as outras pessoas, as coisas, como são de verdade. Conjurado o fantasma da angústia, da dúvida, do medo.
Ao sair do confinamento do lar, ou do convento, para enfrentar a vida, emerge uma nova mulher, que tem consciência de si mesma, e que vê o mundo de modo mais límpido, transparente. As armas que vai usar contrapõem-se às de fogo das guerras, ou das coisas que exacerbam as paixões na alma. São as dos valores cristãos e seus conceitos. Em vez de ideias sombrias, de fogos-fátuos, as obras missionárias ancoradas na fonte viva da espiritualidade cristã. A trajetória do espírito em missão evangelizadora faz companhia à mente em busca do conhecimento racional, científico. Velhas certezas e incertezas, acrescidas de novas esperanças que chegam à Europa através dos navegadores, dando notícia da natureza exuberante. O mundo mágico da América, decantada por Pero Vaz de Caminha em sua carta, sobre as riquezas da terra brasílica, recém-descoberta, “em que se plantando tudo dá”.
 Para o confucionismo, a principal meta da existência é o desenvolvimento do caráter. Na doutrina de Confúcio (600-500 a.C.) o pessoal é o social. O taoísmo de Lao-tsé (VI-V a.C.) prega que o “pessoal é a relação com a cultura”. O caminho do Tao é para que se forme uma sociedade harmoniosa com fé na natureza humana e tolerância para com os homens sem instrução e cultura, pois o que importa é a sintonia com o ritmo da vida, de acordo com o que lhe é próprio. Todavia, o taoísmo discorda da ideia da bondade inerente ao ser humano. A Europa seduzida pela filosofia oriental, quando os missionários da Companhia de Jesus foram acusados de irem longe demais ao condescenderem com as superstições, não só chinesas, mas dos povos nativos do Novo Mundo, no trabalho das Missões. Acusação feita pelos jansenistas contra os jesuítas que teriam adotado as superstições com uma boa vontade suspeita. Heroicos missionários, de quem Vermeer teria absorvido ensinamentos. Vizinhos de sua casa, os jesuítas lhe encomendaram um quadro sobre a fé. Fez dois: “Alegoria da Fé” e “Moça com Jarra de Prata”. Heroica a trajetória humana, suas paixões, a par de um conhecimento que se quer racional, científico. 
No limiar dos tempos modernos encontram-se razão e fé. A busca é por uma vida interior rica, ao lado do também rico existir cotidiano, mundano, transoceânico. Grande parte das mulheres europeias boas religiosas, prontas para prestar serviço à Igreja como missionárias, ou no exercício de outras funções sociais. Catarina de Gênova dirige um hospital com rara competência e santidade, dentro da fé católica, preocupada com a melhoria de vida material e com a conversão das almas. O grande padre missionário Antônio Vieira acreditava na conversão universal a cargo da Coroa lusitana, em sua aventura pelo mundo afora, seguindo o desiderato de um destino venturoso, após a derrota na batalha na África em que morreu o rei de Portugal, dom Sebastião. Em sua “História do Futuro” o jesuíta, considerado “apóstolo das navegações”, abençoa o trabalho missionário. No Brasil, diz Vieira aos maranhenses: “Os homens de quem aqui fala Davi são aqueles que estão nos dois últimos extremos da terra onde nasce o dia e a noite; uns nos confins do Oriente, que são as Índias Orientais, outros nos confins do Ocidente, que são as Índias Ocidentais.” Lá no fim do mundo, de onde teriam buscado o papa Francisco para Roma, conforme suas próprias palavras.
 Motivo de otimismo os europeus tinham com tanto ouro, prata e pedras preciosas, exploradas na América espanhola, depois no Brasil português, a partir de 1700. “Um Eldorado achado nos trópicos”, como diziam. A fé caminhando ao lado do poder temporal, onde são travadas lutas tenebrosas na disputa das almas e das riquezas, no mar, na terra e no “céu”. Parece que tudo de bom e de mal da modernidade começou a vicejar no século XVII. Aos grandes educadores jesuítas devemos o bom costume da leitura, quando o pioneiro padre Vieira fez chegar ao Brasil as primeiras publicações. Vieira, grande propagador da fé católica, também dos nativos, contra o massacre cultural e o trabalho escravo. Grande a paixão pelas Missões. No Brasil, os missionários fundaram o primeiro colégio em São Paulo, dedicado ao “ensino dos rudimentos”, ou elementar, de ler, escrever e contar, justamente por onde a evangelização se efetiva, ou seja, através da educação.




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