domingo, 24 de março de 2013


                 O MUNDO POSSÍVEL




Mais pagã que cristã a imagem feminina que admiramos no quadro A Mulher da Balança. Uma representação da justiça, com poder para equilibrar as forças da natureza, tanto quanto avaliar os vícios históricos do homem. O prumo da balança, o da consciência humana diante dos desejos, fortemente ativo no mundo moderno. Acredita-se no peso justo dado às ações humanas, a todas as coisas, o que livraria do medo infundado e também dos excessos. Na ideologia tripartite indo-europeia a primeira das três funções é a justiça, espaço “sagrado”. A Delft holandesa de Vermeer como Delfo. Em plena Grécia clássica, a velha aristocracia cede lugar a polis-democrática, em que Apolo é vencido pela deusa da sabedoria. O poder de Atena direcionado às artes, ao comércio, que deu vida à primeira mulher, Pandora, a Eva dos gregos, que recebeu uma caixa fechada de presente, inadvertidamente aberta, fazendo com que os males se espalhassem pelo mundo. Mas restou a esperança para que não se acredite no inexorável, e sim nos deuses, ou num só Deus, ao lado dos homens, na alegria e no sofrimento.
A mulher da balança está diante de sua mesa de trabalho, coberta por um tecido no tom azul escuro, parte amassado, dando ideia do mar, o que se confirma na figura estilizada do animal marinho alinhado logo baixo, uma sutil presença do abstrato, imagem surrealista. O mar navegado de lá para cá e de cá para lá; a vida transitando entre o alto e o baixo, entre o abjeto e o sublime. A caixa paira sobre o mar de Vermeer, e faz a vez de embarcação, da qual pende uma corrente de ouro e um colar de bolas de prata. Prisão ao solar e ao lunar? Caixa de Pandora, que carrega as riquezas explorados no continente americano, e vão despertar o apetite, agitar a alma, pesadas as consequências. O ouro e a prata que serviam de troca no comércio europeu em forma de moedas, quatro delas sobre a mesa. Também ali se encontra boa quantidade de pérolas extraídas dos bancos de ostras no golfo de Paria na região que hoje faz parte da Venezuela, reservas que se exauriram após intensa extração, e serviam para enfeitar o colo e a cabeça das moças europeias. Ao lado da riqueza e vaidade a miséria do tráfico nrgreiro, também de mulheres.  A esperança feita de sangue a cor do fundo da caixa.
A realidade moderna na experiência individual do conhecimento, da comunicação e dos prazeres, do que trata a arte de Vermeer. O rosto doce e sereno da mulher, ou da civilização, com sua balança, e diz do juízo de autoridade da mulher, por um poder recém-conquistado. A própria humanidade que tem o poder para medir, conciliar, em equilíbrio dos sentidos e das ações. Intriga a segurança e tranquilidade dessa figura, como em estado de ataraxia, do grego ataraktos, ou seja, sem inquietação, o que Epicuro compara ao mar tranqüilo, quando nada vem revolver a superfície, ou agitar as ondas, diferente do outro mar, o tenebroso. Típico da cultura helênica a sanidade, a consciência, o limite, e em especial a modéstia e o sentimento do dever, que alerta sobre os males da intemperança, dos excessos daqueles que cultivam a irracionalidade. 
O importante é acreditar na vida, ter esperança, fruto do desejo de viver, de perseverar como autêntico ser humano. Nada como um dia após o outro, o que se diz quando as coisas não vão como a gente quer, sempre havendo esperança, fé, de superação das dificuldades. As dores que podem ser de uma perda, ou da queda em desgraça por qualquer motivo. O tempo sempre fluindo a favor, e não contra nós, se quisermos que seja assim. A esperança ás vezes feita de sangue.  Não o sangue das guerras, da escravidão, da violência, pois, por mais desastrada que seja a civilização, a individuação, em qualquer tempo, se deve acreditar na capacidade humana para superar adversidades, vencer os obstáculos surgidos à frente. É a esperança que alimenta a alma, e nunca devemos desistir de nós mesmos, dos nossos sonhos, quase sempre possíveis, já que os criamos na mente, e não ter pensamentos negativos que nos afetam, de nós mesmos e dos outros. A sabedoria a nos dizer que tem quem acredite em nós. E se há os que nos desprezam, e ameaçam desistir da gente, não podemos seguir por esse caminho.
O esboço do Juízo Final serve de pano de fundo no quadro, drama histórico de um passado de medo, na atmosfera dos tenebrosos dias do século XVI, quando estava ainda em jogo o próprio destino da humanidade e da civilização. O quadro dentro do quadro para lembrar a ideia cristã da culpa e respectivo castigo, sinal de que o mal existe no mundo, e não se deve relaxar. Em Vermeer não há, todavia, noção de fatalismo, mas de destino humano, sua busca pela razão, pelo juízo, que não seria final ou do outro mundo, mas aqui mesmo na terra.  Os valores conceituados universalmente, levando-se em conta cada sociedade em suas particularidades, cada pessoa em sua individualidade, afastada a ideia do julgamento fatal que pode trazer inquietude. Mas se deva apelar para o juízo que faça valer a pena viver sobre a terra. A cabeça da mulher  paralela à imagem iluminada de Cristo ressuscitado no painel de Miguelangelo. O modo esperançoso de ver o mundo através do Cristianismo.
O aqui e agora decepciona por não se querer olhar à frente, mas agir aleatoriamente, imaturamente, sem ter aprendido nada com o passado, sem ver as perspectiva futuras, e desse modo sair atirando em todas as direções, até que se entregar ao desânimo. Aprender a saborear a existência com gosto de viver o presente, que deve ter em vista o futuro. É o que de melhor o jovem pode fazer, mesmo em qualquer idade, em qualquer tempo. Um trabalho de paciência e, principalmente de persistência. Ser feliz depende da fé em nós mesmos, na nossa natureza racional, respeitado o irracional, que não se deve negar, nem explorar inadvertidamente. O século XVII e XVIII da promoção do ser humano, em espírito e matéria. Havia esperança de se viver melhor, eliminada a opressão, o sofrimento das mulheres, dos negros, dos trabalhadores, todos os responsáveis pela riqueza que transbordava no mundo.
 No mundo moderno homens e mulheres no luxo; outros oprimidos no trabalho indigno, mal remunerado, o que é uma violência contra a dignidade humana. Tantas pessoas ainda vítimas do abandono, sofrendo com os vícios, que priva as pessoas da felicidade, da cidadania. Essa pouco conhecida na época de Vermeer, que também desconhecia a ideia de civilização e progresso, como se pensa atualmente, sem se levar em conta as condições de bem-estar para todos. Cidadania significa educação, acesso à cultura, e consequentemente ao trabalho e lazer, necessários à realização pessoal e social.  O descaso com a educação, a falta de políticas públicas eficazes, é desastroso para o ser humano, que deve se desenvolver como ser biológico e psicológico.  O mundo que sonha com o progresso, principalmente, no sentido de justiça para todos, quando muitos ainda padecem por ignorância, desesperança. Sangue derramado, mas que ele tenha a força da redenção, sob pena de sermos tomados pela descrença na própria humanidade, e não passaríamos de bichos, monstros, e não gente de verdade.
Aconteceu o milagre da esperança nos povos pagãos que acreditavam nos deuses, como nós acreditamos em um só Deus, capaz de ofertar grandes bens a todos, sem discriminação. Os cristãos acreditando na força do sofrimento redentor. Por outro lado grandes são os males que decorrem da falta de ética, dos desacertos pessoais e sociais, da ausência do bem no mundo. É necessário capacitar as pessoas para que elas construam, modifiquem coisas erradas, mas sem destruir o que existe de bom. Não se destrua a natureza, a civilização, a si próprio, a razão de viver e ser feliz. O homem contemporâneo se valendo da ciência e tecnologia. Mas, nos avisa a santa experiência - que dá cobertura à nossa santa ignorância - que se deve ter parcimônia, e adotar a caridade, virtude humana por excelência. Sem sermos  muito duros, nem benevolentes demais. Nobre e heroica humanidade que desde sempre vem lutando pelo conhecimento, pelas luzes do saber que liberta.  Nosso passado histórico, mitológico, em evolução até o universalismo cristão.
No medieval as mulheres a fazerem suas simpatias, bruxarias, colaboradoras do conhecimento alquímico, subsidiário da ciência. Para Hipócrates “há um sopro comum a todas as coisas, e que estão em simpatia.” Ou em espelhamento, como diz atualmente a ciência. Fluxo social de ação e reação, num acordo que deve existir diante dos fatos e exigências do momento. No século XVI, Século das Almas, santas mulheres renovam a fé católica, ao constituírem mosteiros, congregações, abrigos, ao se engajarem na melhoria de vida para suas irmãs.  Às portas de uma nova Era, Santa Verônica de Giuliana(1660-1727), irmã clarissa, exerce no mosteiro de Cittá Del Castello todos os ofícios, desde cozinheira, enfermeira, professora das noviças, até abadessa. Personalidades femininas fundamentais na reconstrução da Igreja,   exemplos de vida no amor e na fé. Luisa de Torelli, condessa de Guantala, em 1530, funda as “Angélicas de S. Paulo”, dedicadas às moças órfãs, ditas da vida, que merecem uma oportunidade de vida melhor. Outra grande figura a se destacar é Ângela de Mereci (1474-1537) que, inspirada em Santa Úrsula, funda as “Irmãs de Caridade”, reunindo moças que iriam viver para louvar a Deus, na pobreza, castidade e obediência. As ursulinas tornam-se responsáveis pela educação das jovens de todas as classes, enquanto os jesuítas ocupam-se da instrução dos rapazes. Religiosas e religiosos que grandes serviços prestaram e prestam até hoje à educação, à fé. Por conta disso, nossa modernidade é mais luminosa que sombria ao se perseguir a luz da razão. As pessoas livres do medo infundado, e possam acreditar na justiça. A fé servindo de mediadora da renovação, ao obrar na caridade. O mundo que necessita mais que nunca da força espiritual, que se renova, assim como da razão no sentido de paz, de justiça.

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