domingo, 6 de dezembro de 2020

 

 

 

ficção

                        PRECIOSA IDADE


        


 

 

           O chá da tarde na melhor confeitaria da cidade é um acontecimento especial para as duas octogenárias senhoras, que se reencontram depois de muitos anos. Estão de máscara, devido ao Covi-19, e o estabelecimento comercial funcionando dentro do protocolo. As horas passaram céleres na troca reminiscências, até que Maria confessa:

— Incrível, como estou mais contida, perdi o interesse de antes por compras, e deixei de pensar em viajar todo ano para o exterior depois da aposentadoria, coisas proibitivas devido à pandemia do “vírus chinês”, como disse o presidente Trump. Nem penso mais em voltar a bela Paris, rever Londres da nonagenária Rainha Elizabeth, que parece mais jovem que anos atrás, os tais annus horribilis, como expressou em novembro de 1992 a monarca inglesa. Horrível também esse 2020 para todo mundo, e que venham os próximos annus mirabilis

Rosinha também conta de suas andanças pelo mundo:

- Ano passado fiz o Caminho de Santiago, de carro, para acompanhar filha e genro ciclistas, e encontrei uma cidade de ruas antigas e extremamente conservadas e limpas, por onde andei com uma charmosa bengala, coisa de turista, mas os joelhos pediam apoio. Em Portugal, visitei vária vezes o Santuário de Fátima, hoje assisto as missas pelo Youtube. Parece pouco um único passeio pelos jardins de Giverny, ver de perto as flores de Monet, mas devo parar por ai. Já conheci meio mundo, basta. Com a pandemia e as limitações da minha idade não tem sentido estar presente em todos os lugares, e não sofro por isso.

Maria tem mais confissões a fazer:

—A velhice, minha amiga, chega sorrateira, etapa da vida para ser curtida em outra dimensão. Depois de tanta correria no trabalho, nos afazeres domésticos com os filhos em casa, férias com a família, viagens, hoje também posso dar adeus a muita coisa, sem mágoa, e aproveitar os bens espirituais acumulados. As simples alegrias que a alma proporciona fazem muito bem. Evitar esse modo de viver desgastante, já dizia minha tia. O fascinante mundo atual, deslumbrante de se ver e viver, mas assustador, melhor se aquietar, no máximo, desbravar os arredores. Logo ali encontramos o que possa interessar, ou afligir, uma ameaça a cada esquina. Ademais, é preciso evitar as perturbadoras notícias via televisão, e que nos chegam por qualquer outro meio de comunicação. No meu caso,  quero que me deixem ficar longo tempo vendo nada mais que o tempo passar, e possa emergir as ideias para eu escrever e publicar no blog.

Rosinha é poeta desde jovem, aproveita para falar dos atuais meios de comunicação:

—Antes de tudo quero dar-lhe parabéns pelo seu trabalho intelectual, sua paciência em escrever quase diariamente. A importância de formar as consciências, a moçada hoje informada além da conta, e carente de boa formação. Uma enganadora privacidade essa, de estar todo o tempo diante de uma tela, expondo-se como nunca através das redes sociais. Certas notícias nos deixam pasmos, e costumamos dizer: “Pensei que já tinha visto tudo“. Ou então falamos que “no nosso tempo não era assim”, e não era mesmo. Você não acha que as coisas estão piores, Maria? Fico impaciente com tanta ignorância, tanta maldade. E enquanto a pobreza e a miséria aumentam, observamos uma torrencial exibição de luxo e vaidade. Minha preocupação, todavia, é não me tornar por demais pessimista, nem otimista, mas ser “uma realista esperançosa”, como diz o grande Ariano Suassuna.

Maria olha o rosto da senhora ao seu lado, e encontra quase o mesmo sorriso de quando colegial, apesar dos problemas que possa ter enfrentado. A vida requer paciência, bondade e dedicação, pensa. É hora da despedida, são breves nas suas últimas palavras:

—Sorte nossa, Maria, estarmos vivas e termos alguém especial esperando em casa por nós.  Bem "conservadas", sim, e gozando essa nossa melhor idade, com nossos maridos, e, o que é melhor, mentalmente saudáveis.

—Sim, temos que agradecer a Deus por tudo, e agora pela graça de chegarmos a essa idade preciosa, na superação das doenças e tudo o mais. Até o próximo encontro, querida Rosinha. Lembranças ao João.

—Até muito em breve, se Deus quiser, Maria. Lembranças ao Mariano.

 

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