segunda-feira, 17 de junho de 2013



               SEM SER COITADINHA

                                                                                    conto

Mara, tia de Maria, vivia os últimos dias da belle époque. A renda deixada pelos pais deu para ela esnobar, depois, sem ser coitadinha, com apenas o suficiente para uma vida modesta. Suas duas irmãs casadas, com quem compartilhava os olhos claros, moças bem aquinhoadas pela natureza quanto à beleza e inteligência. Quanto a Mara, tinha posto fim ao noivado, por uma razão imprescindível, que ele lhe fosse fiel. E teve aquele rapaz, recém-chegado da Europa, belo e culto, apresentado a ela por amigos. Os pais dele portugueses, como os dela. Uns poucos encontros e, de repente, Nestor some de vista, só restando aquele retrato dos dois em passeios pela Praça Odorico Mendes, que excitava a curiosidade da sobrinha-neta, quando então insistia para ela contar um pouco daquele retrato, imaginando muita coisa por conta própria. Solteira, sim, mas nunca infeliz. Diferente da amiga Bertolina, de longo convívio com um noivo, sem enxergar os abusos dele, que haveria de romper o compromisso para casar com outra. Essa não se cansava de lembrar o tal noivo, sempre à beira de um ataque de nervos, por esse ou aquele motivo, enquanto as irmãs Madeira eram contidas, reservadas.
       Carmelita, a mais velha, Judite, a do meio, e Mara, se divertiam juntas, mas também brigavam entre si, mas sem que apelassem para as lágrimas, livres de qualquer poder advindo do sentimentalismo e seus exageros, conforme pregavam. Nazária, todavia, instigava escrúpulos às consciências, quase a desesperá-las, ou imobilizá-las, sem de todo conseguir. Os românticos a dizerem que os burgueses gozavam seus prazeres – se por acaso os tivessem – de modo muito respeitoso, tanto na cama quanto na mesa. Todavia, uma classe responsáveis pelo progresso econômico, da produção e do consumo, que se transformara em gente acomodada, sóbria e soberba. A burguesia, que teria domado seus instintos com a educação e também - diziam os detratores - com muita hipocrisia, era uma classe que se aprimorava, mas susceptível de pisar em falso, ou na bola, como se diz atualmente. Já os emergentes burocratas em ascensão social, era a nova classe responsável pela consolidação das instituições. A revelia de tudo isso o mundo, populoso e injusto, despontava com multidões a se movimentarem, o mundo a correr daqui para ali, na tentativa de realizar algo para garantir o futuro. Mas o que aconteceu? Muitos dos jovens que vemos hoje em passeatas, quebradeiras, dizem que aderem a esses protestos violentos para espantar o tédio burguês. Descrente de Deus e ao mesmo tempo em guerra com a razão. Em crise de consciência? Ou querem mais é amadurecer, o que lhes tem sido poupado? Bem verdade que há um descompasso entre a sociedade que trabalha e produz e a política. E o que se vê são políticos que só pensam em usufruir benesses, roubar. O povo mesmo não se manifesta e, quando o faz nas urnas, não corresponde ao que é melhor para a sociedade como um todo. Falta educação, saúde, empenho de todos para que a nossa democracia funcione de verdade e não se perca um tempo tão bom como esse no Brasil.
      Diderot havia declarado do alto do seu iluminismo: “Tudo deve ser sacudido, sem exceção e sem timidez”. As três irmãs - meio burguesas, meio aristocratas, até certo ponto românticas -  não se deixavam atingir pelo iluminismo redivivo da época muito menos pelo comunismo que despontava. Pouco dispostas à rebeldias, nem a ceder aos instintos.  Também não colocavam a cabeça na janela para ver os moços passarem, que só eles saíam para trabalhar e se divertir. As cabeças femininas que se mostravam na janela para os homens que passavam, algumas delas, passando da idade de casar; o tempo que corria e elas dispostas a correr riscos. A vizinha acabou casando com um jogador, daqueles apelidados de pernas de pau. Sedução que tivesse Mara pela cabeça masculina, e algo mais, não lhe roubava a serenidade da face, quase lívida, uma autêntica figura para ser pintada por Auguste Renoir, sem a ousadia das suas modelos. As mulheres em Paris desde os fins do século XIX já podiam ser vistas em público, saídas, como no quadro O Primeiro Passeio, do pintor parisiense. Mais extraordinária ainda é a modernidade das mulheres dos quadros de Jan Vermeer no século XVII, que o holandês de Delft pintou perto das janelas abertas, semiabertas, ou fechadas, elas sempre em alguma atividade intelectual, lendo e escrevendo cartas. Quando não se comunicavam com os homens, de modo nada discreto. As moças de Vermeer, mesmo restritas ao ambiente privado, estariam em melhor situação que as mulheres na Saída da Fábrica, do primeiro filme produzido no mundo? Na virada do século XX, Lumiére exibe as operárias francesas saindo apressadas do trabalho. Já no século XVII, a moderna Paris exportava progresso, adotado com parcimônia pelas moças, que logo saíram da janela de onde viam a vida passar, para sentir as coisas mais de perto.
     No século XIX o burguês Darwin marcou o mundo com sua teoria da evolução, contendo alerta sobre a competitividade selvagem, típica dos seres humanos, possuidores de egoísmo e crueldade inatos. Os evolucionistas tentaram prevenir a consumação de catástrofes, como a Segunda Guerra, e não teve quem barrasse a ignorância e maldade de um louco a comandar um povo humilhado, enlouquecido de ódio, coisas que vinham de uma derrota anterior. E quando se perde o elo com o melhor de si, e do que a sociedade construiu de mais importante, o selvagem que existe em cada um pode aflorar. Em vez de iluminismo do passado, o comunismo redivivo, mais recente, na ilusão de frear o capitalismo. O certo é que dentro de cada ser humano também habita um pacificador, um santo, como creem os católicos). Mas o demônio é que parece às vezes, querer dominar tudo, o mundo todo. O progresso de hoje, como nunca se viu, mas um fiasco toda essa festa, se levarmos em consideração as calamidades que acontecem. 

       Mara pouco preocupada com guerras de verdade, que as de vaidades ela às vezes participava. Com alguma autonomia individual – um pouco mais que as irmãs casadas – Mara viveu sua longa vida, sem alegar necessidade de nada, embora deva ter sentido, sim, falta de muita coisa, inclusive de um companheiro. Mas sem dar o braço a torcer. Perdera algumas chances na vida, como a de aprimorar mais sua cultura, o que pouco lhe teria valido naquele tempo, a não ser o prazer pessoal. Era companhia agradável nos poucos eventos sociais a que comparecia, e com menos frequência ainda passava no confessionário do frei Policarpo. Aos domingos de missa obrigatória lá estava Mara cumprindo o compromisso que tinha com Deus. Gozara de alguma liberdade, mas sem se afastar demais daquilo que fora engendrado pela família, por seu meio social, pela religião, poderes tutelares. Mas por acreditar principalmente em si mesma, Mara podia dizer que era livre da condição de simples tutelada.  A certa altura da vida comprou uma casa num lugarejo praiano perto da capital maranhense, onde por muito tempo viveu tranquila sua vida solitária. Teria se fartado da intimidade com as pessoas, do convívio frustrante que a vida às vezes oferece. Nas férias escolares os sobrinhos ficavam alguns dias em sua companhia, e ela sempre os visitava. Simples e bem cuidada, a casa de praia, bem localizada, típico de quem sabe escolher as coisas, foi um bom lugar para a sobrinha-neta namorar o futuro marido, sempre com a parentada em volta.









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