sábado, 8 de março de 2014

                                                         
Homenagem ao Dia Internacional da Mulher - 8 de março


                                   
                            

                       







                     

                AMÁLIA E SUAS IRMÃS


                                                              conto


  1.     Diderot havia declarado do alto do seu iluminismo no século XVIII: “Tudo deve ser sacudido, sem exceção e sem timidez”. As três irmãs, Maria Carolina, Maria Judite e Maria Amália, meio burguesas, meio aristocratas, até certo ponto românticas, não se deixavam atingir pelo iluminismo redivivo da época em que viviam, meados do século próximo passado. Rebeldes a maneira delas; mais pacíficas que amorosas. Acompanhavam de longe e com simpatia, diga-se a bem da verdade, a revolução feminista, mas sem se disporem à ceder aos instintos. Os românticos, nostálgicos da aristocracia, zombavam dos burgueses por gozarem seus prazeres – se por acaso os tivessem – de modo muito criterioso, soberbos e sóbrios até no vestiário. Não queriam, isso sim, ficar à mercê do destino, revidava a burguesia, que dera largada ao progresso econômico da produção e do consumo. Mas tornou-se uma classe de acomodados e pacatos partícipes da evolução dos costumes, voltavam as críticas. Recebiam tréplica, as exibições eram coisas para os emergentes burocratas corporativos, que almejavam ascensão social de qualquer jeito. A burocracia que viria a ser útil ao processo de consolidação das instituições, e se impunha, como a burguesia, mais para o bem que para o mal.
  2.          Tempos das cabeças femininas na janela, o local mais público onde as mulheres podiam se deleitar em ver e serem vistas pelos homens. Tantas calças masculinas pelas ruas, que elas iriam usar um dia, e nem desconfiavam o quanto, assim como adotariam o trabalho fora de casa. Só eles saíam da casa para trabalhar e se divertir no Brasil. No início dos tempos modernos, no século XVII, Jan Vermeer retratou as mulheres perto das janelas; abertas, semiabertas, ou fechadas, o olhar voltado para fora, enquanto liam e escreviam cartas. Moças que tinham suas atividades cotidianas restritas ao ambiente privado, isso até meados do século XX para a maioria das mulheres. Já em Paris as mulheres desde os fins do século XIX podiam ser vistas em público, “saídas”, como no quadro O Primeiro Passeio, de Auguste Renoir. Com a industrialização elas passaram a ser arregimentadas para o trabalho, as operárias, filmadas por Lumiére, saindo apressadas do trabalho, o que o público assistiu estupefatos em 1895, o primeiro filme produzido no mundo, A Saída da Fábrica. Acontece que em 1857, em Nova York, operárias haviam morrido carbonizadas dentro da fábrica de tecido onde estavam reunidas em greve por melhores condições de trabalho. Incêndio criminoso, cuja data passou a ser comemorado como “Dia Internacional da Mulher” a partir de 1910 por recomendação da ONU. 
  3.       As três Marias não eram janeleiras, nem alienadas, tinha plena consciência do que acontecia no mundo e pensavam em melhores dias para as mulheres, que sofriam privações, sem trabalho e mal assistidas, mesmo perseguidas. Todas sofriam o descaso para com o gênero feminino. As duas mais velhas logo casaram, ficou Amália que foi em passeio ao Rio, nossa Paris, para "arejar' a mente. Se brigavam entre elas, era sem relevância, e nunca recorrerem às lágrimas, o que seria fraqueza humana, nem se dobravam aos instintos. No século XIX o burguês Darwin, que marcou o mundo com sua teoria da evolução, alertou sobre a competitividade, típica dos seres humanos, possuidores de egoísmo e crueldade inatos. E a burguesia, que teria domado seus instintos com a educação e também - diziam seus detratores - com muita hipocrisia, via o mundo moderno se movimentar, ou correr para novos tempos. O progresso avassalador num mundo que logo entraria em crise, descrente de Deus e ao mesmo tempo em guerra com a razão. A Segunda Guerra fez a humanidade viver uma barbárie sem tamanho, a do nazismo, o que havia sido previsto pelos evolucionistas ao tentarem prevenir a consumação de tais catástrofes. Darwin... Rousseau...! As irmãs Dias eram reticentes com as elucubrações do Dr. Filogônio, médico e amigo da família. Achavam por bem guardar distância desses ateus, com medo de suas ideias, que podiam contaminar o espírito cristão. Todavia, possuíam uma fé religiosa sem grandes entusiasmos; mais prosaicas e humanistas que poéticas e sublimes. Da religião admiravam seu lado ético e estético.
  4.        Teve aquele rapaz simpático, recém-chegado da Europa, tão tímido quanto culto, apresentados por amigos, com quem Amália, que já havia rompido um noivado por falta de fidelidade do pretendente, conversava sobre a vida, sobre no mundo. Os pais dele portugueses, como os dela. Uns poucos encontros, e de repente Nestor some de vista, só restando aquele retrato dos dois em passeio pela Praça da República no Rio, o que excitava a curiosidade da sobrinha-neta, que insistia para ela contar um pouco sobre aquele retrato, imaginando muita coisa por conta própria. O certo é que depois dos dias ao lado do amigo, quase namorado, o rapaz volta para o velho mundo, o que Amália soube por terceiros, que ele ia cumprir nova missão intelectual, e nunca mais se veriam. Nestor não tinha espaço a ceder, atarefado em sua criação literária, que a amiga lia de relance, pouco interessada em poesia, mas querendo se interessar. Quanto ao poeta, ele teria lastimado por aquela alma inculta e tão ingênua, quase a desprezá-la por isso. Teria resistido a ter a alma violada por aquele poder feminino? Amália, nada romântica, inofensiva, estava mais preocupada com a família e a guerra, o sobrinho aquartelado, a quem ela visitava para saber o estado de saúde do jovem, que escapou do pior, ir para o front, a guerra chegou ao fim sem sua participação. Quanto a Amália e Nestor, nunca eles tiveram um gesto maior de aproximação mais íntima um para com o outro. A moça, mais esperançosa, não ficou desiludida, desde o início adivinhando o que estava escrito em algum lugar para eles, o destino de solteiros a vida toda. O destino era brabo naqueles tempos...
  5.        O romantismo de Amália e suas irmãs poderia ser classificado como racional. Jamais seriam românticas sexuais ou transcendentais. Esclarecidas, e convictas de que os encantamentos místicos, assim como os ensinamentos por demais dogmáticos, eram coisas do passado; nefasta tanto a crendice quanto a extremada racionalidade. A ciência com sua real importância, mas também merecedora de restrições e controle. Inegável os feitos extraordinários na ciência e nas artes, o que as tias de Maria acompanharam, até o dia em que viram o homem a pisar na Lua. Mais extraordinário ainda, ver os passos do astronauta aqui da terra através de um veículo chamado Televisão. Na casa da sobrinha Deizinha, Amália acompanhava tudo o que se passava em volta, e não era pouca coisa o que acontecia na família e no mundo em transformação. As notícias de fora sabia através do rádio, enquanto as da família de viva voz, ou  lhes chegavam por cartas. Telefone ainda não existia, mas a telepatia que funcionava em casos extremos, por exemplo, quando a tia recebeu a notícia da morte de um parente. Na época as pessoas sem demonstrar grandes medo, nem preocupações exageradas, o que seria prova de fraqueza humana, já que se devia confiar acima de tudo na ajuda divina.
  6.         O importante era não voltar atrás o relógio do tempo, coisa para bobos, dizia Amália, que viveu com alguma autonomia individual – mais que as irmãs casadas. Viveu sua longa vida sem alegar necessidade de nada, embora deva ter sentido, sim, falta de muita coisa, inclusive de um companheiro. Perdera ainda a chance de aprimorar mais sua cultura, o que pouco lhe teria valido naquele tempo, a não ser o prazer pessoal. Tempos avançados já naquela época, mas o assunto era tabu, o caso de uma alta funcionária, prima de uma amiga da família, que morava no Rio, Adelaide, e vivia com uma francesa, coisa que a tia de Maria não queria comentar, pouco convivendo com elas durante sua estada na capital federal. Era hóspede da outra prima, solteira, que não dividia a cama com ninguém. Na terra natal, Amália pouco frequentava o confessionário de frei Policarpo, mas aos domingos lá estava cumprindo humildemente seu compromisso maior com Deus. Gozava de alguma liberdade, sem se afastar demais daquilo que fora engendrado pela família, por seu meio social, pela religião, poderes tutelares. Mas por acreditar principalmente em si mesma, acontecia de ser livre da condição de simples tutelada.  A certa altura da vida comprou uma casa no campo, onde por muito tempo ainda foi viver tranquila sua vida solitária. Estaria cansada da intimidade com as pessoas, e vice-versa. As frustrações que acontecem no convívio constante. Nas férias escolares recebia os sobrinhos, e a tia sempre visitava a família. Alguém poderia dizer que Amália serve de exemplo para o naturalismo de Rousseau. Ledo engano.
  7.  



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